Opinião

Habeas Corpus de ofício não é ginástica, mas garantia processual

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado criminalista mestre e doutor em Direito Penal pela USP ex-diretor do Conselho Federal da OAB; ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (95/96); membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e professor de Processo Penal da Faap.

4 de julho de 2016, 10h27

Quem leu o instigante artigo “Medalha de ouro para o habeas corpus” (Folha de S.Paulo deste domingo, 3 de julho), assinado por dois festejados Procuradores da República, membros da força-tarefa da Lava Jato, não teve dúvidas: a concessão do habeas corpus para o ex-ministro Paulo Bernardo na Reclamação 24.506 representou uma ginástica olímpica (no mau sentido); verdadeira mágica; fato inédito e inacessível para brasileiros comuns (ordinary people).

Argutamente, o artigo não fala dos fundamentos que levaram o ministro Dias Toffoli a conceder a medida liberatória. Critica a forma, dando a entender que houve privilégio para o marido da senadora e que as instâncias anteriores (TRF e STJ) não se manifestaram. Erra nas duas pontas.

Primeiro: juízes e tribunais podem conceder habeas sempre “que verificarem que alguém sofre coação ilegal”. Não há necessidade de pedido da parte. Está no Código de Processo Penal promulgado em pleno Estado Novo, portanto há mais de 70 anos! Aliás, disso já cuidava o artigo 342 do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, ainda ao tempo do Império.

Trata-se de um dever do magistrado zelar pela liberdade do cidadão, como assinala Guilherme Nucci no seu Habeas Corpus[1], também citado pelo ministro Toffoli na sua bem cuidada decisão. Mais importante: o deferimento da ordem de ofício, que se reputa uma espécie de “mágica”, vem apoiado em inúmeros precedentes da própria Suprema Corte que, também em Reclamações, procederam da mesma maneira. São citados: Rcl 2.636/RJ, Pleno, relator o ministro Gilmar Mendes, DJ de 10/2/06; Rcl 21.649/SP-AgR, Segunda Turma, de minha relatoria DJe de 18/3/16; Rcl 1.047/AM-QO, Pleno, relator o ministro Sidney Sanches, DJ de 18/2/2000; e Rcl 412/SP, Tribunal Pleno, relator o ministro Octavio Gallotti, DJ de 26/2/93.

Portanto, sob o aspecto estritamente formal, não houve nenhuma ginástica olímpica e, tampouco “mágica” na concessão da ordem do habeas corpus de ofício. A medida é possível e tem sido concedida. Para o leitor comum ___ que não tem afinidade com a técnica do processo ___ é preciso esclarecer que o que foi apontado como uma ginástica, supostamente inacessível ao homem comum, é mais frequente de ocorrer do que se possa imaginar.

É bom lembrar que a 1ª Turma do STF, pela voz dos ministros Roberto Barroso e Luiz Fux, cujas posições restritivas ao writ são de todos conhecidas, concedeu a mesma medida sem que as instâncias anteriores houvessem apreciado as matérias. No primeiro caso para absolver um deputado não reeleito, mesmo quando a Corte já não detinha competência para julgá-lo (Ação Penal 568) e, no segundo, para colocar em liberdade uma presa com excesso de prazo (HC 120.436).

O artigo dos procuradores da República, pesa constatar, lança uma espécie de suspeição sobre a decisão e, pior, instila o veneno do ódio aos que não são pobres ou estão na miséria, ao dizer que só um privilegiado consegue tal benefício. Com isso, esconde a discussão sobre a ilegalidade praticada pelo juiz de primeiro grau. É como se os desmazelos que recaem sobre a população carcerária mais pobre devessem se repetir sobre os novos personagens do mundo do crime porque “sempre foi assim”. Uma espécie de isonomia perversa, justo quando as Defensorias Públicas dos estados e da União começam, com vigor, a agir em prol dos desvalidos. Na verdade, quer-se a prisão a qualquer custo; como forma de punição antecipada, com roupagem de prisão preventiva.

Se, pela forma, vê-se que a decisão questionada não ostenta nenhum ineditismo, o seu conteúdo revela pleno acerto. É que o magistrado de primeiro grau justificou a prisão preventiva com base na ideia de não ter sido localizada “expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos”, o que representaria “risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção”.

Ocorre —disse o ministro Dias Toffoli — que a prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento para compelir o imputado a restituir valores ilicitamente auferidos ou a reparar o dano. Para isso há outras medidas cautelares de natureza real, como o sequestro ou arresto de bens e valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com sua prática. Tampouco serve para punir antecipadamente, sem o devido processo. Daí a lembrança, na decisão de antigo ensinamento do decano da Corte, ministro Celso de Mello, no sentido da impossibilidade de se utilizar a prisão preventiva como instrumento de antecipação de pena:

“Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar (“carcer ad custodiam”) – que não se confunde com a prisão penal (“carcer ad poenam”) – não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar “em benefício da atividade desenvolvida no processo penal” (BASILEU GARCIA, “Comentários ao Código de Processo Penal”, vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense), tal como esta Suprema Corte tem proclamado:

“A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU.

– A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.

A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal.”
(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

A ilegalidade era manifesta na decretação da prisão. Deveria o juiz da Suprema Corte, por amor ao juiz de primeiro grau, manter a preventiva? Deveria, por apego ao espírito burocrático, deixar o sujeito preso até que as instâncias inferiores se pronunciassem? A resposta parece intuitiva.

Todavia, como em geral a grande população não distingue entre ‘prisão-castigo’ e ‘prisão-processual’, cria-se um alarde em torno da soltura, que parece ser uma declaração de inocência, quando não é! No mensalão a totalidade dos acusados ficou solta durante o processo, mas a maioria veio a ser condenada e, após o trânsito em julgado da condenação, cumpriu pena (alguns ainda cumprem).

Ao criticar o excesso de prisões preventivas, o colunista da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman (Constrangimento prisional, 2/7) advertiu que boa parte destas não atendem, “senão sob interpretação forçada, as hipóteses em lei”. É o caso da prisão revogada em boa hora.


[1] Rio de Janeiro: ed. Forense, 2014, p. 160.

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    é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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