Observatório Constitucional

Direito Constitucional espanhol perde um de seus maiores nomes

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30 de janeiro de 2016, 12h24

No último sábado, 23 de janeiro, morreu aos 85 anos o jurista Francisco Rubio Llorente, certamente um dos maiores nomes da história do Direito Constitucional da Espanha. Recebi a triste notícia nestes dias em Madrid, quando a coluna de hoje já estava sendo preparada. Imediatamente, não tive dúvidas em mudar o tema para tentar fazer, em breves palavras, uma singela homenagem a esse grande constitucionalista espanhol.

Rubio Llorente foi um jurista com sólida formação acadêmica, diplomado, por exemplo, pelo Instituto de Sociologia e Psicologia da Universidade de Colônia (Alemanha) e pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris. Foi um dos discípulos do professor Eduardo García de Enterría e, assim como o mestre, também influenciou toda uma geração de constitucionalistas espanhóis. Destacou-se como publicista e ganhou notoriedade no período mais crucial para a formação das instituições democráticas da Espanha, entre os anos de 1977 e 1980, com a transição do regime. A implementação da nova Constituição de 1978, em meio a um processo político à época imprevisível, requeria a argúcia e a sensatez de grandes juristas, e Rubio Llorente foi um deles, assumindo uma das tarefas mais complexas, que seria a construção do Tribunal Constitucional previsto pelo texto constitucional. Além de participar ativamente da elaboração da Lei Orgânica que daria os contornos institucionais ao tribunal, Rubio Llorente integrou o primeiro grupo de magistrados nomeados com a difícil missão de colocá-lo em pleno funcionamento. Integrou o tribunal até o ano de 1992. Foi também presidente do Consejo de Estado, entre 2004 e 2011. Nos últimos anos, continuava exercendo a diretoria da conhecida Revista Española de Derecho Constitucional, além de outras atividades acadêmicas.

Apesar da idade já avançada, Rubio Llorente se mantinha atuante no debate público. Não raro seus influentes artigos podiam ser contemplados nos principais jornais semanais. Opinava, com a sua forte autoridade e respeitabilidade políticas, sobre diversos assuntos. Em tempos mais recentes, demonstrou preocupação com os efeitos econômicos e sociais da intencionada separação da Cataluña[1]. Refletia criticamente sobre a política econômica europeia[2]. Sobre o Tribunal Constitucional, nunca deixou de ter olhos atentos a seu desenvolvimento institucional e não se furtava a tecer duras críticas quando lhe parecia haver algum tipo de desvirtuamento. Em artigo simbólico publicado no contexto vivenciado pelo tribunal no ano de 2012, afirmou contundentemente: “En mi opinión, la raíz última de los males del Tribunal está en el uso que las minorías parlamentarias hacen del recurso de inconstitucionalidad para continuar allí el debate político. De ahí su afán por contar con magistrados 1sensibles a sus planteamientos', cuantos más mejor, y de ahí también la visión que nuestra sociedad tiene de él como órgano político, una especie de tercera Cámara[3].

Em outubro de 2013, estive pessoalmente com Rubio Llorente, em sua sala na Fundação Ortega y Gasset, em Madrid. Tivemos uma longa e prazerosa conversa sobre a história concreta do Tribunal Constitucional espanhol, um dos objetos da tese de doutorado que naquele momento eu estava elaborando.

Entre vários relatos interessantes, impressionou-me a cuidadosa preparação do desenho institucional do tribunal feita pelo primeiro grupo de magistrados, do qual fazia parte o próprio Rubio Llorente, ao lado de outros grandes nomes como Manuel García Pelayo e Francisco Tomás y Valiente. Nomeados em fevereiro de 1980, em vez de colocarem logo em funcionamento o tribunal, destinaram pelo menos dois meses a refletir e debater sobre a melhor organização institucional possível. Em palestra proferida em 1994, Francisco Tomás y Valiente fez um relato desses primeiros trabalhos preparatórios e concluiu: “Aquellos meses entre febrero y el final del verano fueron de un trabajo fértil y de una intensa y fecunda actividad organizativa”. E aqui é preciso fazer um parêntese para recordar e enfatizar que, em 1996, Tomás y Valiente foi assassinado pelo grupo terrorista ETA em sua sala na Universidad Autónoma de Madrid, fato que até hoje é considerado um dos acontecimentos mais tristes da história político-institucional espanhola.

Interessante notar que um dos aspectos que requereu maior atenção foi o estilo redacional das decisões. Desde os primeiros anos de funcionamento, o Tribunal Constitucional adotou práticas próprias de redação de suas decisões, bastante peculiares e distintas das existentes nos órgãos do Poder Judicial espanhol. O estilo redacional foi objeto dessas primeiras comissões de trabalho para a organização da instituição. Rubio Llorente lembrava que o tema foi objeto de discussão em um final de semana inteiro, no qual a comissão se reuniu em um local fora de Madrid. Partiram da constatação de que o modelo do Tribunal de Garantias Constitucionais da Segunda República espanhola não poderia servir, pois havia sido uma experiência desafortunada na história constitucional daquele país. E como não podiam inovar, pois não tinham condições de fazê-lo naquele momento, utilizaram como modelos de referência os que à época poderiam ser observados no Direito Comparado, especialmente nas realidades norte-americana, francesa e alemã.

O modelo redacional francês, caracterizado pela excessiva concisão e rigor técnico dos textos, foi considerado inadequado, não apenas por ser de difícil aplicação em culturas jurídicas cujas características não fossem exatamente aquelas observadas peculiarmente na realidade francesa, mas, sobretudo, por não permitir algo que naquele momento se fazia fundamental para a instituição do novo tribunal espanhol, que era o fator didático e pedagógico que deveriam revestir as suas decisões a respeito dos valores e princípios da ordem constitucional recém-inaugurada.

A adoção de um estilo próprio, fundado essencialmente na clareza, didatismo e profundidade da argumentação jurídica, caracteriza um discurso que não somente está orientado à fundamentação das decisões, mas também à persuasão dos diversos auditórios do tribunal. Como afirmou Rubio Llorente, as decisões assim adquiriram tom e dimensão que são mais próprios de artigo de doutrina que de um ato de poder[4].

A opção por textos com nuances mais doutrinárias estava justificada pela necessidade que o tribunal tinha, pelo menos em seus primeiros anos de existência, de tornar seus contornos de órgão constitucional e suas funções institucionais efetivamente conhecidas e compreendidas pelo maior número possível de cidadãos e pela opinião pública em geral (em especial os meios de comunicação).

O resultado não poderia ser outro. Apesar das dificuldades inerentes ao processo de criação e instituição de um Tribunal Constitucional, o tribunal espanhol, logo nos seus primeiros anos de funcionamento, adquiriu elevado prestigio e respeito por parte dos demais poderes constitucionais (que acataram suas decisões e lhes deram imediata execução, sendo muito poucos os casos de dificuldade ou conflito institucionais) e especialmente por parte da sociedade espanhola, que reconheceu a autoridade e legitimidade do Tribunal como intérprete supremo da Constituição e, dessa forma, protetor da nova ordem constitucional.

Francisco Rubio Llorente sempre será reconhecido como um dos principais responsáveis por essa sólida construção institucional do Tribunal Constitucional da Espanha. Por isso e por toda a sua vasta e diversificada contribuição para a fundação política das instituições democráticas espanholas, seu pensamento permanecerá entre nós.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] “Un referéndum que nadie quiere”. El Pais, 11/02/2013.
[2] “No es el Bundesbank, son los jueces”. El País, 27/06/2013.
[3] “Los males del Constitucional”. El País, 10/08/2012.
[4] Assim explicou o magistrado emérito Rubio Llorente: “(…) el enfoque con el que el Tribunal abordó su tarea le llevó también a construir un discurso más orientado hacia la persuasión que a fundamentar su decisión, más preocupado por destruir (o reforzar) los alegatos de las partes en el proceso, que a explicar las razones de su propia decisión y muy proclive por eso mismo a los razonamientos generales, más o menos abstractos, pero casi siempre muy alejados de la cuestión concreta a resolver. Las sentencias adquirieron así un tono y unas dimensiones que frecuentemente resultaban más propios de un artículo doctrinal que de un acto de poder. Incluso la propia fórmula que adoptó para dar cuenta, en el encabezamiento de las sentencias, de quién había sido su autor, parece indicio de que para el Tribunal las sentencias son más actos de conocimiento que de voluntad”.  RUBIO LLORENTE, Francisco. El Tribunal Constitucional. In: Revista Española de Derecho Constitucional, año 24, n. 71, mayo-agosto 2004, p. 22.

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