Opinião

A indevida restrição ao Simples para as sociedades unipessoais de advocacia

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30 de janeiro de 2016, 12h05

Considerado um regime tributário favorecido e privilegiado, o Simples sempre foi tratado pelo legislador de forma restritiva, permitindo-se sua adoção apenas por contribuintes que explorassem certas atividades econômicas e com faturamento até determinado patamar legal. O afrouxamento dessas restrições foi lento e paulatino, em movimento legislativo que postergou ao máximo a adoção desse regime pelos advogados.

Após grande esforço da advocacia, viabilizou-se a opção pelo Simples por duas alterações legislativas recentes. A primeira permitiu expressamente a adoção pelas sociedades de advogados, ao contemplar o serviço de advocacia textualmente na lei do Simples. A segunda alterou o Estatuto da Advocacia para autorizar a constituição de pessoa jurídica composta de um único advogado.

A repercussão tributária de tais medidas é extremamente relevante.

Para os advogados antes organizados em sociedades compostas de mais de um sócio, a carga tributária pode reduzir para cerca de um terço caso se migre do regime de apuração do lucro presumido para o Simples.

Para os que atuavam individualmente, a constituição da sociedade unipessoal deveria representar redução da carga tributária ainda mais substancial, na medida em que seria possível abandonar-se o regime de tributação do Imposto de Renda da Pessoa Física, que conta com alíquotas de até 27,5% dos rendimentos, para ingressar em modelo em que, para receitas de até R$ 180 mil anuais, a carga tributária para os principais tributos federais, além do ISS, equivale a 4,5%. A redução, nessa hipótese, corresponde a cerca de 80% da carga tributária anterior.

Quando o panorama legislativo indicava que o advogado estaria, finalmente, sujeito às mesmas regras tributárias das demais sociedades, recente interpretação da Receita Federal do Brasil tende a restringir esse avanço para as sociedades unipessoais. Segundo o Fisco, a adesão ao Simples poderia ser promovida por sociedades unipessoais de qualquer espécie (constituídas na forma de Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada), com exceção dos advogados.

A controvérsia tem origem na interpretação do artigo 3º da Lei Complementar 123/2006, que disciplina o Simples. Tal dispositivo estabelece que, “para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o artigo 966 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) […]”.

Segundo a Receita Federal do Brasil, apenas as sociedades expressamente contempladas no rol acima transcrito seriam elegíveis ao Simples. A lista faz alusão aos modelos tradicionais de sociedade, compostas de mais de um titular, além da recente Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli). Não alude textualmente à nova figura da sociedade unipessoal de advocacia.

A interpretação do Fisco merece reparos.

Esta não é a primeira oportunidade em que Fisco e contribuinte litigam quanto à possibilidade de eleição do Simples para determinadas atividades profissionais.

No passado, ainda sob o regime já revogado do Simples (Lei 9.317/96), a legislação autorizava a adesão pelas sociedades prestadoras de serviços com exceção de extenso rol, em que figuravam as atividades de “corretor, representante comercial, despachante, ator, empresário, diretor ou produtor de espetáculos, cantor, músico, dançarino, médico, dentista, enfermeiro, veterinário, engenheiro, arquiteto, físico, químico, economista, contador, auditor, consultor, estatístico, administrador, programador, analista de sistema, advogado, psicólogo, professor, jornalista, publicitário, fisicultor, ou assemelhados, e de qualquer outra profissão cujo exercício dependa de habilitação profissional legalmente exigida”.

A questão foi conduzida ao Supremo Tribunal Federal, que veio a reputar legítima a restrição imposta pela lei. Segundo restou decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.643-1, “não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do Simples aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado”.

Embora à primeira vista essa orientação pareça dar amparo à interpretação fiscal no sentido de que a sociedade unipessoal de advocacia não poderia aderir ao Simples porque não expressamente contemplada na lista do artigo 3º da Lei Complementar 123/2006, uma análise criteriosa do julgado aponta conclusão diversa.

A tônica do voto condutor de tal acórdão, na ocasião, foi no sentido de justificar a distinção promovida pelo legislador ao alijar do Simples as sociedades que exerciam atividade de profissão regulamentada. Entendeu a maioria da corte, na ocasião, que os prestadores de serviços não sujeitos a regulamentação própria teriam, sob a perspectiva objetiva, condições econômicas menos favorecidas, a justificar tratamento tributário menos oneroso.

Em outras palavras, o critério da isonomia foi considerado legítimo pela corte, que se ocupou em analisar o contexto daquelas restrições que haviam sido levadas a julgamento. No confronto entre as atividades elegíveis ao Simples e as excluídas de tal regime, entendeu-se que o legislador adotou critério de discrímen pertinente, tratando desigualmente os desiguais.

A discussão se centrou justamente na controvérsia a respeito da existência de tal discrímen. Houve dissidência expressa dos ministros Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, que acentuaram opinião no sentido de que dita distinção feriria a diretriz constitucional de isonomia tributária.

Aplicando-se tal orientação ao caso das sociedades unipessoais de advogados, vislumbra-se contexto bastante distinto do enfrentado naquela ocasião. A interpretação levada a efeito hoje pela Receita Federal do Brasil não distingue sociedades de profissão regulamentada das demais.

Bem ao contrário, a distinção se dá entre profissões de semelhante desenvoltura econômica, tais como a medicina e a advocacia. Ilustrativamente, enquanto para os advogados constituídos sob o regime das sociedades unipessoais não se autoriza a adoção do Simples, para os médicos constituídos sob a análoga figura da Eireli não haveria esse impedimento.

Essa discrepância de tratamento ocorre com as demais profissões de natureza regulamentada, conduzindo, ao final, a discriminação pautada unicamente em função da atividade profissional desempenhada pelo contribuinte.

Esse expediente encontra obstáculo expresso no inciso II do artigo 150 da Constituição, segundo o qual “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

Desta vez, portanto, ao contrário do que sucedeu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.643-1, não se está diante de tratamento desigual na medida da desigualdade dos contribuintes. As sociedades unipessoais de advocacia não denotam ter capacidade contributiva superior às demais pessoas jurídicas dedicadas ao exercício de profissões regulamentadas. Logo, não havendo tal desigualdade, não há como se justificar a correspondente discrepância no tratamento tributário.

A par de não ter conforto constitucional, a interpretação do Fisco vem em rota de colisão com os novos ideais societários hoje vigentes no país.

De fato, desde o advento da Eireli, o legislador tem externado sua intenção de eliminar distorções societárias causadas pelo anterior desestímulo à empreitada profissional individual. Até então, mesmo os que se dispusessem a desempenhar suas atividades de maneira singular eram exortados pelos atrativos fiscais, societários e cíveis a estruturar-se sob a forma de sociedade com mais um indivíduo ao menos. Por vezes, como se sabe, incluía-se sócio apenas no plano formal, pois a atividade era efetivamente desempenhada de maneira individual. A Eireli buscou outorgar paridade de condições entre aqueles que exercem suas atividades de forma individual ou plural, permitindo que cada optasse pelo regime que mais lhe conviesse.

A sociedade unipessoal de advogados tinha o mesmo predicado. A vontade pessoal restaria preservada, na medida em que cada advogado poderia optar por se associar a colegas em função estritamente de afinidade profissional, independentemente de critérios outros, como os de natureza tributária, cível ou societária.

Hoje, apenas no estado de São Paulo, há cerca de 10 mil sociedades compostas de dois advogados. Muitas delas representam genuína comunhão de esforços entre colegas, dispostos a exercer a profissão de forma integrada; algumas possivelmente teriam mais ventura se a escolha pela atividade individual não fosse tão penosa, sobretudo em seu aspecto tributário.

Dado esse contexto, mostra-se necessária a revisão da opinião fiscal que impede a adesão ao Simples pela sociedade unipessoal de advocacia, sob pena de se legitimar tratamento tributário muito mais oneroso ao profissional que se dedica a exercer a profissão de forma individual, em flagrante confronto com o Princípio Constitucional da Isonomia e com a recente tendência de respeito legislativo à atividade profissional desempenhada de maneira singular.

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