Diário de Classe

No jogo processual, é importante conhecer o fator Julia Roberts

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30 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
O fator ou efeito Julia Roberts é o nome dado à necessidade de superação do argumento de autoridade da Corte Suprema, invocado[1] a partir da festejada atriz de cinema que protagonizou o filme Dossiê Pelicano (de 1993, dirigido por Alan Pakula, do livro de John Grishan). Sobre os limites da privacidade e a criminalização da sodomia pelo estado da Geórgia, nos EUA (Bowers v. Hardwick), a Corte Suprema americana, em 30 de junho de 1986, por apertada votação (5 votos a 4), decidiu pela constitucionalidade. Na película, em vez de explicar e debater os argumentos, o professor afirmou que o “precedente” estava dado, no que Darby Shaw, a aluna interpretada por Julia Roberts, diz que a Corte Suprema errou.

A paternidade ou maternidade da interpretação pelo Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça não pode implicar canonização do sentido conferido. A batalha de argumentos precisa convencer com fundamentos democráticos. Aceitar o contrário seria coroar cada juiz como rei de seu feudo-tribunal. De um lado as normas jurídicas e de outro o devido processo legal deveriam ser limites à atribuição de sentido. Em face da complexidade em estabelecer os critérios para decisão, especialmente diante a multiplicidade de princípios (muitos inventados ad hoc), sendo o mais totalflex o da proporcionalidade, por sua compreensão inautêntica, acabamos reféns de subjetividades.

Aliás, a cruzada pela democratização da decisão não é recente, ainda que alguns monarcas-magistrados queiram permanecer no trono do decisionismo e do “livríssimo convencimento” [2], sem peias nem amarras democráticas de motivação e respeito à argumentação dos jogadores. Eu tenho medo de quando o juiz escreve que “entende assim e pronto”, naquilo que já disse, com André Karam Trindade, tratar-se do “princípio do porque sim”[3]. A bastilha togada em alguns lugares precisará ser derrubada para levarmos a sério o artigo 489 do novo CPC?

Moreso também acolhe a doutrina Julia Roberts[4], segundo a qual o fato de os tribunais fixarem um sentido, não é sinônimo de infalibilidade e, no futuro, com novos argumentos, revisar as razões do passado. Aliás, está é a situação da Corte Suprema dos EUA em diversos casos, valendo destacar, por todos, a questão da sodomia (Lawrence x Texas anulou Bowers x Hardwick). Aliás, o “precedente” merece respeito em face do caminho argumentativo, mas não é tombado/intangível hermeneuticamente. Pode ser revisitado em face de novos argumentos ou distinguido no caso em julgamento (mecanismos de superação e afastamento no caso).

No Brasil, por exemplo, o STF decidiu muitas vezes que a Lei de Crimes Hediondos era constitucional e depois modificou sua compreensão, assim como na Lei de Drogas (regime inicial, tráfico privilegiado etc.). O Supremo ainda que seja o último a falar, pode e erra muito, especialmente porque é composto por magistrados que não conseguem compreender todos os campos do Direito.

Recentemente, por exemplo, na esfera penal, a reabertura da discussão sobre a Súmula 444 do STJ, para o fim de se considerar processos penais em andamento como maus antecedentes (CP, artigo 59), em franca violação à presunção de inocência, é o sintoma da atualidade do efeito Julia Roberts no STF, já que o julgamento se encerrou por maioria, mantida a lógica da Súmula 444 (RE 591.054): “Ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais”. Com esse indicativo, em tempos de recrudescimento, o aroma de regimes mais gravosos (fechado e semiaberto) nas penas se fez presente em nome da individualização às avessas da pena.

O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, implementa políticas para que os magistrados possam compreender que a prisão cautelar é a exceção e que o sujeito deve ser considerado inocente (Resoluções 213, 214 e Protocolos I e II), enquanto alguns dos ministros do STF sinalizaram, no julgamento do RE 591.054, de que se é inocente, porém não muito. Há um curto-circuito nas orientações em sentidos variados. A desordem se potencializa porque, afinal, embora ministros da maior corte do país, são reconhecidos em campos diversos do penal e processual penal. Vivemos tempos de critérios incongruentes da mais alta corte do país.

Logo, por mais que tenham a última palavra, não são infalíveis e quem sabe possamos demonstrar os equívocos das premissas, especialmente no campo do processo penal. A sinalização contraditória e desprovida de sustentação teórica chegou a patamares fronteiriços com o direito penal do autor e do inimigo desde o julgamento da Ação Penal 470, quando se usou a “teoria do domínio do fato” onde não era cabível. Parece, com o maior respeito, que o STF, em alguns casos, assume a atitude da “cegueira deliberada”[5] ou de uso instrumental de teorias.

Precisamos, então, cada vez mais saber estabelecer as expectativas de comportamento a partir do mapa mental dos ministros e de quem dá a retaguarda penal (existem assessores, magistrados convocados etc.). Mostra-se relevante acompanhar o que estão lendo, citando e estudando.

O fator ou efeito Julia Roberts decorre da responsabilidade democrática da doutrina em apontar os equívocos de argumentação, a superação dos argumentos e a distinção de contextos que não se submetem ao precedente. Vale anotar que precedente não se confunde com mero julgado e, diante da aplicação da lógica dos recursos repetitivos e do incidente de resolução de demandas repetitivas, próprios do novo CPC , seu manejo parece complexo. O tempo da subserviência alienada já se foi. Precisamos saber o fundamento do fundamento.

Uma orte suprema se respeita pelo lugar que ocupa e pelo conteúdo de suas decisões. Infelizmente no campo penal e do processo penal os tempos são complicados, demandando maior capacidade de jogo por parte dos jogadores, conforme tenho defendido na leitura do processo penal via Teoria dos Jogos[6]. Daí a importância de compreender o fator Julia Roberts.


[1] STRECK, Lenio Luiz. O fator Julia Roberts ou quando o Supremo Tribunal erra. MORESO, José Juan. La Constituición: modelo para armar. Madrid: Marcial Pons, 2009, ensaio 9; TRINDADE, André Karam. “A ‘doutrina’ de Paolla Oliveira e a lição de Julia Roberts. In: MORAIS DA ROSA, Alexandre; TRINDADE, André Karam. Precisamos falar sobre Direito, Literatura e Psicanálise. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015, p. 81-84.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012.
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre; TRINDADE, André Karam. Precisamos falar sobre Direito, Literatura e Psicanálise. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015, p. 113-115: “A fundamentação das decisões precisa ser levada a sério. A sentença que se nega a responder os argumentos formulados pelas partes, na verdade, alimenta-se da lógica infantil – cuja imagem emblemática é a de ‘sua majestade o bebê’ (Freud), posição que pode ser assumida através de uma postura egocêntrica tanto por um ditador quanto por um jurista”.
[4] MORESO, José Juan. La Constituición: modelo para armar. Madrid: Marcial Pons, 2009, ensaio 9.
[5] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.
[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015.

Autores

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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