Opinião

O papel do jurista em face da crise política e institucional brasileira

Autores

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

  • Ziel Ferreira Lopes

    é doutorando em Direito Público pela Unisinos bolsista Capes.

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo DASEIN — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

25 de janeiro de 2016, 9h17

Em um ano cujo início já se mostra tenso para o Direito brasileiro, é hora de discutir perspectivas para a atuação dos juristas. É lamentável o hodierno panorama jurídico, permeado por um escancarado ativismo judicial, nota característica em 2015 (leia aqui). A crise político-econômica acendeu o alarme da crise institucional. Todos somos testemunhas de inacreditáveis personalismos nos altos escalões do poder, a colocar em teste a frágil experiência democrática brasileira. São momentos assim que fazem com que o direito ganhe relevo e seja solicitado com urgência, obrigando-nos a indagar sobre o papel do jurista neste nefasto cenário de deterioração político-institucional.

O nascimento do Estado de Direito ocorreu a partir de disputas políticas violentas entre súditos e monarcas europeus durante as revoluções liberais. Apesar das especificidades de cada movimento ocorrido nos séculos XVII e XVIII, as Revoluções Inglesa e Francesa tiveram em comum a luta contra o despotismo monárquico. É verdade que, na França, os distúrbios acabaram ganhando contornos mais radicais após o rei Luís XVI ser guilhotinado em 1793. Não se pode esquecer, contudo, que também na Inglaterra executaram o rei Carlos I em 1649, após os puritanos liderados por Oliver Cromwell assumirem o poder. A partir daí começaram a ser forjadas instituições políticas responsáveis por imporem limites ao exercício do poder.

Foi nesse contexto que o constitucionalismo ganhou força, atravessando as três fases conhecidas (Liberal, Social e Contemporânea). Muitas vezes, quando se fala da modernidade e do processo de racionalização do poder na Europa e nos Estados Unidos, certos setores políticos e acadêmicos assumem o discurso ingênuo de imaginar que nesses países haveria uma personalidade ascética superior à nossa “cordialidade”. Uma grande bobagem que insiste em se fazer presente na inteligência brasileira, como bem demonstrou Jessé Souza em sua recente obra, A tolice da inteligência brasileira [1].

Se por um lado o Estado de Direito surgiu para se impor contra qualquer forma arbitrária de apropriação do poder público, por outro é preciso destacar que nenhum povo possui o “monopólio da maldade” e que, portanto, as arbitrariedades que ocorrem em solo brasileiro têm sua raiz em nossa experiência institucional. A institucionalização de uma divisão social separada entre casa-grande e senzala e os constantes golpes de Estado prejudicaram a construção de uma república democrática no Brasil e permitiram a sacralização de alguns cargos da burocracia cujos ocupantes, até hoje, sentem-se como verdadeiros donos do poder. É a partir dessas condições que se deve analisar as peculiaridades do ativismo judicial brasileiro.

Os juízes daqui apostam excessivamente na discricionariedade não por estarem propensos ao “jeitinho cordial”; o fazem porque o Estado de Direito brasileiro se forjou num ambiente onde escravismo e predominância de regimes autoritários perdurou tempo demais. De lá para cá, desde épocas remotas da história do país, foi se apinhando e intensificando certa desconfiança institucional, a razão maior pela qual, em vez de exercer a magistratura a partir de uma forte noção de responsabilidade política, muitos dos nossos juízes, adotando postura discricionária, acreditam que sua função lhes permite “fazer escolhas”, não raro em atropelo aos próprios limites semânticos balizados pelos textos legais. É como se a interpretação jurídica fosse nada mais que ato de vontade, a depender unicamente do pendor (cultural, ideológico, etc.) daquele que decide, perspectiva solipsista cujo resultado é o surgimento de um cenário relativista que só faz fomentar a insegurança e falta de previsibilidade.[2]

Muitas das intervenções da magistratura no debate público (com honrosas exceções, claro) estão comprometidas, infelizmente, com o propósito de se assenhorear do texto (e, consequentemente, da norma), do processo, da jurisdição… Haveria até um “direito de julgar”, expressão frequente na fundamentação de julgados, espécie de referenda velada ao “livre convencimento” que resiste às investidas da doutrina e, desgraçadamente, conserva-se entre nós.[3] É por igual reveladora a insurgência encabeçada por algumas entidades (ler aqui) contra o artigo 489, parágrafo 1º, do CPC/2015, a partir do frágil e insustentável argumento de que as exigências nele previstas — que apenas concretizam o artigo 93, inciso IX da CF — estariam na verdade restringindo o conceito de fundamentação (leia aqui). Se há um “direito de julgar”, exigir fundamentação consistente implicaria em restrição ao livre exercício desse mesmo direito. Em uma perspectiva pragmática, a impressão que se tem é que julgar tornou-se quase um direito fundamental e nem a lei tem autoridade para suplantá-lo.

É preciso ressaltar, contudo, que o problema não está circunscrito à magistratura. Basta um passar de olhos nas notícias jornalísticas diárias para se concluir que “operadores do Direito” de diversas áreas, liderados pelas entidades que lhes representam, alimentam esse sistema distorcido (ler aqui) e dele também se alimentam. Enfim, tentam se assenhorear de algo, sejam auxílios, independência orçamentária, poderes, atribuições… e as carreiras jurídicas privadas vão junto, comendo na mesma mesa, ganhando nichos de mercado. No vácuo político, as instituições jurídicas lançam campanhas e mobilizam a sociedade a fim de ajudar a “limpar” a política, sugerindo-se até mesmo o aproveitamento de provas ilícitas quando os benefícios decorrentes forem maiores do que o potencial efeito preventivo [4]. O que se prega é um “tapar de olhos”, àquela “forcinha” endereçada à flexibilização do devido processo legal, moralmente justificada para atender a um “bem maior”, em absoluto desdém à característica contramajoritária que protege todo e qualquer direito fundamental de maiorias eventuais [5]. Agiganta-se alguma instituição e todos ganham! Em última análise, a opinião pública é instrumentalizada em prol da concretização de soluções juristocráticas.

Ainda são poucos os juristas a desempenhar o papel de intelectual. Esta figura surgiu na modernidade, junto com a ideia de racionalização do poder e nascimento da esfera pública (Habermas): instâncias de reflexão sobre o exercício do poder, como cafés, clubes e salões, potencializados por jornais, revistas, etc.. A partir daí, desenvolveram-se vários modelos do que deveria ser um intelectual. Em comum, estavam a serviço da publicidade crítica. Só que, desde então, escassearam os intelectuais, declarou-se a decadência da esfera pública, e procura-se até hoje seu revigoramento — em meio a vlogs e textos com cento e poucos caracteres. E, frente a tudo isso, o que dizer do jurista enquanto intelectual no Brasil? Seriam pensadores servis ao poder (como sugere Jessé Souza), numa inversão dessa figura moderna? Talvez até pensadores em busca de poder…

De nossa parte, apostamos num modelo de intervenção intelectual do jurista no sentido de “constranger epistemologicamente” [6], de fomentar o controle público do exercício do poder, articulando a comunidade de intérpretes, atentando para os limites semânticos, o “mínimo é” dos textos legais, em atenção aos princípios que podem nos orientar na democracia ao estabelecer nosso “chão comum”. Não lhe cabe nem vanguardismo, tampouco omissão. Seu papel é relevante, pois como especialista que é, domina o dialeto jurídico, o que não quer dizer que seja falante de uma “linguagem privada”. Muito pelo contrário: vive da mediação, da tradução entre dialeto jurídico e dialeto comum.

Certamente é um papel bastante delicado, e ainda carece de muitas discussões sobre o que deveria ser. E não se negam as boas intenções, o republicanismo e o caráter sinceramente desinteressado de muitas das propostas criticadas. Ocorre que o fenômeno transcende à mera intenção dos agentes, tomando outra dimensão.

Por fim, não queremos “fulanizar” a discussão, dizendo que o jurista brasileiro é isto ou aquilo, retomando nesta área a busca pela “natureza” do brasileiro. O que se pretendeu foi refletir abertamente sobre o fenômeno de como nosso arranjo sócio-institucional funciona, dos riscos envolvidos e do que se pode fazer para melhorar o funcionamento do Estado de Direito. Sobretudo, quis-se denunciar descomedimentos por parte dos juristas na atualidade, algo paradoxal se pensarmos que ações, como as aqui indicadas, só fazem ferir os alicerces sob os quais nossa república encontra-se edificada.


1 Dante Moreira Leite, aliás, já na década de 1950, havia criticado essa ingenuidade responsável sobremaneira pelo “complexo de vira-lata” do povo brasileiro.

2 Não é de hoje que um dos articulistas deste ensaio (Lenio Streck) vem se posicionado fortemente contra todos os tipos de desvios discricionários que ocorrem no âmbito do Poder Judiciário. Por meio de uma discussão teórica sofisticada, situada na matriz hermenêutica, a reivindicação feita é no sentido de obter uma maior responsabilidade dos juristas no enfrentamento do velho problema do ativismo judicial. É nesse contexto que sua teoria da decisão foi formatada.

3 Sobre esse “direito de julgar”, confira-se o seguinte excerto de recente julgado do STJ: “Ademais, vale lembrar que em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual o juiz pode julgar dispensável a produção de prova testemunhal, quando as provas carreadas são suficientes para julgamento do feito. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.”(STJ, AgRg no REsp 1504544/PB).

4 Nesse sentido, é emblemática a campanha do Ministério Público Federal intitulada “10 medidas contra a corrupção”, que vem gerando muitos debates. Como noticiado pelo Conjur, falava-se até em “aproveitar provas ilícitas ‘quando os benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo’. Diante da má repercussão, o MPF recuou e passou a defender ‘novos parâmetros para definição da prova lícita’ (RODAS, Sérgio. Propaganda do MPF: Procurador da "lava jato" vira garoto propaganda de campanha contra corrupção. Conjur. São Paulo, 29 jul 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-29/procurador-apoio-estancar-corrupcao-sangra-pais. Acesso em: 17/01/2015). Agentes públicos tem dado rosto a tais campanhas institucionais, como procuradores e policiais. Outros tantos são espontaneamente buscados pela mídia para estampar capas de revista. Há até quem seja cotado para ocupar a Presidência da República.

5 O juiz responsável pelos casos da “Operação Lava Jato” e o presidente de importante entidade de classe assinaram artigo intitulado “O problema é o processo”, pleiteando, dentre outras coisas, a “atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos” (MORO, Sérgio Fernando; BOCHENEK, Antônio Cesar. O problema é o processo. Estadão. São Paulo, 29 Mar 2015. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-problema-e-o-processo/. Acesso em: 17/01/2016.

6 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — decido conforme minha consciência. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

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