Opinião

A geopolítica das drogas e o morticínio
nas periferias

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24 de janeiro de 2016, 7h42

Droga é toda substância psicoativa que, usada pelo ser humano, pode irradiar alterações de comportamento e percepção. Nesse sentido, engloba desde elementos ilícitos, como o crack, a cocaína e a maconha, até substâncias de uso corriqueiro, como o álcool, o cigarro e o cafezinho, além de todos os medicamentos, sejam de uso restrito ou de livre acesso.

Dentre as inúmeras classificações existentes para as drogas, a jurídica, que divide tais substâncias em lícitas, controladas e ilícitas, é a mais reconhecida socialmente. Tal definição, que acolhe a noção de drogas como substâncias psicotrópicas e proibidas (ideia massificada pela política internacional de “guerra às drogas”, deflagrada no decorrer do século XX, institucionalizada por três convenções internacionais: Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, e Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988), implica numa natural dedução de que o uso de drogas está necessariamente vinculado à transgressão jurídica, criminalizando-se a visão sobre o assunto, levando-se a crer, por exemplo, que o aumento do nível de violência, drama comum às metrópoles modernas, está intrinsecamente relacionado ao consumo de drogas. É a contramão da orientação que deve nortear Estados comprometidos com a valoração da dignidade humana, de que drogas, por si só, não consistem em problema; que o uso dessas substâncias psicoativas a título de recreação, a título religioso ou mesmo a título medicinal é recurso histórico e cultural, que remonta às origens da sociabilidade humana; que o uso problemático das drogas, eventualmente traduzido em dependência química, é que se converte numa questão de atenção social, porém, não necessariamente de violência, mas de saúde pública, em especial de atenção psicossocial; que apenas em última hipótese, no tocante ao enfrentamento do narcotráfico, a atenção estatal deve ser de segurança pública.

Porém, nada contribui mais com o fortalecimento do narcotráfico, soberano no comércio mundial das substâncias ilícitas, que a própria “guerra às drogas”. No livro Geopolítica das Drogas, Alain Labrousse descreve como guerrilhas se locupletaram de taxas cobradas sobre o narcotráfico, casos das Farc e do Sendero Luminoso; como governos negociaram clandestinamente com o mercado ilícito para financiar insurreições antidemocráticas, vide relações dos Estados Unidos com o Cartel de Medelín (monopólio da cocaína), para financiamento de contrarrevolucionários na América Central, e com a Al Quaeda (monopólio do ópio), na contraofensiva à presença soviética no Afeganistão; como governantes e exércitos, corruptos e corruptíveis, passaram a manter suas próprias relações com o narcotráfico, em troca de dinheiro, que o diga o ex-ditador panamenho Manuel Noriega.

Em resumo, conflitos armados foram deflagrados no mundo inteiro, em função do proibicionismo ao comércio das drogas, numa guerra que existe em termos macrogeopolíticos e, outrossim, em sua extensão regionalizada, dentro de favelas, morros, cracolândias etc., pelo controle da distribuição e da circulação local das substâncias, levando em seu rastro outros mercados ilícitos, como o tráfico de armas e pessoas, além de mafiosos de toda natureza, milícias abjetas, esquadrões da morte etc.

No Brasil, o proibicionismo ao uso de drogas há de ceder, caso o Supremo Tribunal Federal mantenha voto-relatório já proferido no RE 635.659, favorável à descriminalização do uso individual recreativo de drogas. Se isso ocorrer, espera-se que, em passo eventual, o Estado imponha-se sobre o mercado ilícito, monopolizando, ele próprio, o controle da produção, da distribuição e da venda das substâncias porventura liberadas. No Uruguai, notícias dão conta de que a experiência da liberalização do porte e do consumo da maconha tem se mostrado exitosa: de uma só tacada, ordenou-se o comércio, racionalizou-se o uso da substância, feriu-se de morte o narcotráfico com concorrência e reduziu-se o morticínio impingido pela “guerra às drogas” nas periferias pobres do país.

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