Olhar Econômico

Jurisdição civil sob o prisma da estraneidade em tempos de globalização

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

21 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]A primeira vertente internacional do direito a surgir no tempo, por volta do século XII, foi o conflictum legum (conflito de leis), como era então chamada e continua sendo nos países anglo-saxões; mais tarde passou a ser denominada direito internacional privado, nos Estados de tradição latina. Tratou-se inicialmente de um método para a determinação de lei aplicável quando um ato ou fato apresentasse elemento de estraneidade, ou seja, ligações com mais de um sistema jurídico [1].

O direito internacional privado, que inobstante seu nome é direito interno, existe em todos os sistemas jurídicos nacionais, tendo a partir do século XIX, alcançado autonomia didática, sendo prelecionado como matéria autônoma no currículo das escolas de direito. Os tópicos passíveis de ser contidos por essa disciplina são: conflito de leis (determinação da lei aplicável), conflito de jurisdições (determinação da jurisdição competente), nacionalidade e condição jurídica do estrangeiro. Exemplificativamente, o direito internacional privado francês engloba os quatro tópicos; enquanto que o alemão se circunscreve apenas ao primeiro deles. Ressalte-se que os dois primeiros possuem normas indicativas, que permitem a escolha do direito aplicável (também chamadas normas conflituais); ao passo que os dois últimos contêm normas substanciais.

É verdade que por largo tempo, estudou-se muito mais a problemática do conflito de leis (determinação da lei aplicável). Contudo uma série de progressos tecnológicos permitiram a globalização e obrigaram perquirição mais profunda sobre a temática da jurisdição, vista sob o prisma do direito internacional privado.

Poucos são os especialistas em direito internacional privado no Brasil, o que explica o avanço diminuto dessa disciplina no país [2]: a evolução legislativa é pequena, a doutrina é modesta e a jurisprudência beira a inexistência. Há assim, um verdadeiro círculo vicioso. Mesmo dentro desse quadro minimalista, único na América Latina, os operadores do direito conhecem parcamente o direito internacional privado; a ponto de não raro haver questões que poderiam ser resolvidas com a aplicação desse direito, que passam sem que se note tal possibilidade. Caso típico de daltonismo jurídico! Esse estado de coisas não pode ser visto como mera curiosidade, por ser altamente prejudicial às pessoas e ao país (incluindo sua balança de pagamentos), pois o direito internacional privado é a janela pela qual o sistema jurídico e judicial brasileiros podem-se comunicar com os demais.

Nesse contexto, é auspicioso o fato de ter havido concurso para professor titular na disciplina em questão na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na passada semana [3]. Tanto mais que nessa escola e nessa disciplina pontificaram Oscar Tenório e Jacó Dolinger. A alentada tese apresentada pela candidata vencedora, professora Carmen Tiburcio, versou justamente sobre tema do exercício da jurisdição em matéria civil, sob a ótica do direito internacional privado; tema esse pouco estudado no Brasil e que necessita de teorização segura a respeito, para iluminar as regras e os princípios gerais aplicáveis.

Perpassar as principais conclusões da tese intitulada Extensão e Limites da Jurisdição Brasileira: O Estado-Juiz e o Estado-Parte, da lavra da novel professora titular serve não somente de ilustração para todos nós, como também pode contribuir para o aumento da produção científica brasileira em tema de processo internacional.

É mínima a doutrina brasileira sobre o exercício da jurisdição quando presentes elementos de estraneidade; sendo a jurisprudência pequena e, por vezes, contraditória. Isso é de se verberar pois grande número de estrangeiros vivem no Brasil e a economia brasileira não para de se internacionalizar, com todos os corolários daí decorrentes.

A comparação do tratamento dado à jurisdição no CPC de 1973, ainda vigorante, e no CPC de 2015 (que entrará em vigor em março de 2016), no que tange à competência concorrente e à competência exclusiva, nota-se que o último diploma legal previu de maneira específica a jurisdição brasileira do domicílio e residência do alimentando e consumidor; perfilhando assim, a orientação internacional de salvaguardar as partes mais débeis da relação jurídica.

Inovação relevante foi o código ter trilhado as mesmas águas do direito internacional e do direito estrangeiro, ao aceitar, de maneira explícita, os efeitos da eleição de foro; tanto positiva (Judiciário brasileiro eleito pelas partes, para decidir a controvérsia), quanto negativamente (Judiciário estrangeiro indicado pelas partes para decidir a controvérsia, mesmo em face da competência concorrente do Judiciário brasileiro).

A novidade mais importante do código, que nós colocará entre os países que se situam na vanguarda da matéria foi a equiparação dos efeitos da convenção de arbitragem à eleição de foro estrangeiro. Na verdade, é paradoxal a posição de nossos tribunais superiores em aceitar a extinção do processo sem julgamento do mérito por força do acordo de arbitragem; e deixar de dar idêntico efeito a acordo por meio do qual as partes entregam um litígio ao exame de Judiciário estrangeiro.

Entretanto não merece encômios, o fato de o novo código, ao prever competência exclusiva do Judiciário brasileiro para a confirmação do testamento particular, ter adicionado situações relativas ao inventário e partilha inter vivos; e, no caso de inventário e partilha mortis causa, à competência internacional exclusiva.

Afirma o professora Carmem Tiburcio que certos princípios relevantes são suscetíveis de fundamentar o exercício da jurisdição em casos não previstos legislativamente; bem como são capazes de afastar jurisdição mesmo quando previstas em lei. Da mesma maneira que princípios (reenvio, qualificação, ordem pública, direitos adquiridos, fraude à lei e questão prévia) tem o condão de afastar a norma indicada pelos elementos de conexão; pode acontecer o mesmo com as regras de direito internacional privado fixadoras da jurisdição.

Ademais dos casos consagrados no CPC de 1973 (e no de CPC de 2015), em tratados ou em leis internas específicas, a jurisdição pode ser efetuada, quando as partes elegeram o foro; na inexistência de Judiciário internacional competente; ou quando, embora existente tal Judiciário, for ele inacessível; ou ainda em havendo interesse da boa administração da justiça.

Ao contrário, princípios podem fazer com que a jurisdição deixe de ser exercida. O processo será extinto sem julgamento do mérito, caso as partes tenham eleito foro estrangeiro ou pactuado convenção de arbitragem. Quando não for conveniente que a jurisdição local seja exercida, inobstante seja internacionalmente competente, por força da busca da boa administração da justiça.

O princípio da efetividade não deve ser esquecido. De que adiantará o exercício de jurisdição, caso sua execução não for possível? Como no caso de lugar da execução que não reconheça sentença estrangeira (competência internacional exclusiva local).

Com referência à litispendência, o código de 2015 manteve a posição tradicional e mais cautelosa de não reconhecimento. Inobstantemente, foi aceito, de maneira expressa, pelo legislador, com base nos princípios da segurança jurídica e estabilidade, a extinção do processo em curso no Brasil, quando houver decisão transitada no exterior, devidamente homologada. Dessa forma a jurisdição não será exercida.

Igualmente não haverá exercício de jurisdição nacional, mesmo em face de hipóteses de competência concorrente e exclusiva, se estiver presente a imunidade de jurisdição. Contudo é necessário ser lembrado, que no direito internacional e no brasileiro, houve relativização da imunidade, que passou de absoluta para relativa. Tal sucedeu primeiramente no direito estrangeiro. Por exemplo, no Brasil a imunidade de jurisdição em matéria trabalhista passou a ocorrer somente a partir de 1989. Atualmente há várias situações em que uma pessoa estrangeira pode ser submetida à jurisdição nacional.

No decorrer da tese, foram lembrados casos em que tribunais internacionais preferiram proclamar a imunidade, deixando de lado o direito da pessoa ao acesso à Justiça. A Corte Internacional de Justiça da Haia e a Corte Europeia dos Direitos Humanos, tem adotado posições merecedoras de críticas, em favor dos Estados nacionais ou organizações internacionais. Também não tem havido flexibilização, tanto por parte do direito internacional, quanto do direito brasileiro, quando há graves violações de direitos humanos. Isso demonstra a existência de grande distância a ser palmilhada em matéria de imunidade de jurisdição [4].

A obra da professora Carmem Tiburcio contribuiu fundamentalmente para a doutrina brasileira sobre o processo civil internacional e, certamente, influenciará o aumento, em número e em qualidade, da doutrina pátria sobre essa importante questão, bem como inspirará a jurisprudência nacional.


1 Ver Rodas, João Grandino, Direito internacional privado fornece solução para o ‘estudo de caso, Revista Eletrônica Conjur, 3 de setembro de 2015.

2 Ver Rodas, João Grandino, Princípios da Haia evidenciam insegurança brasileira em contratos internacionais, Revista Eletrônica Conjur, 11 de junho de 2015.

3 Ter participado como membro da comissão organizadora desse concurso (ao lado dos Professores Ricardo Lyra, Heloisa Helena Barbosa, Ricardo Perlingeiro e Paulo Borba Casella), realizado de 11 a 14 de janeiro, foi um privilégio.

4 Tiburcio, Carmen, Extensão e Limites da Jurisdição Brasileira: O Estado-Juiz e o Estado-Parte, tese de titularidade apresentada à Faculdade de Direito da UERJ, janeiro de 2015, p. 614/618.

Autores

  • Brave

    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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