Opinião

MP 703 é conveniente, mas apresenta problemas a serem corrigidos

Autor

  • Rogério Fernando Taffarello

    é advogado criminalista sócio de Mattos Filho Advogados professor de Direito Penal e Processo Penal da pós-graduação em Direito Penal Econômico da FGV-SP e mestre em Direito Penal e criminologia pela USP.

20 de janeiro de 2016, 14h46

Tem rendido inusitada polêmica o texto da Medida Provisória 703, de 18 de dezembro de 2015, a qual alterou o regramento do acordo de leniência previsto nos artigos 16 a 17-B da Lei 12.846/13, a Lei Anticorrupção. Uma leitura atenta da MP, porém, parece demonstrar a conveniência política e a correção jurídica de seu teor, malgrado contenha problemas a serem corrigidos.

Políticas de leniência são aquelas em que o Estado, ante as dificuldades historicamente verificadas em punir infrações associativas caracterizadas pelo encobrimento de sua prática e pela ausência de vítimas ou testemunhas que poderiam noticiar os fatos às autoridades — como o cartel e a corrupção —, abre mão de reprimir severamente uma empresa em favor do ganho que terá no descobrimento de novos fatos e na conseguinte punição de outros entes. Robustecidas no início dos anos 90 na legislação antitruste dos EUA, obtiveram rápido sucesso, influenciando já a partir de 1996 a legislação da União Europeia, bem como a de muitos outros países.

O instituto da leniência anticorrupção está previsto na lei desde sua redação original, de 1ª agosto de 2013, vigente já há quase dois anos completos. Todavia, mesmo em tempo de intensas investigações e receios do empresariado como o atual, inexiste qualquer acordo de leniência sacramentado no âmbito da Controladoria-Geral da União.

Na cena corporativa, subsiste há um ano e meio um contexto de elevados e continuados prejuízos a grandes empresas que, além do rompimento de contratos públicos, têm enfrentado restrições bancárias, vencimentos antecipados de obrigações, danos reputacionais incalculáveis e numerosas ações judiciais no Brasil e no exterior em virtude do alegado envolvimento em casos de corrupção. Esses fatores, interligados entre si e que se retroalimentam, já levaram algumas delas às barras da recuperação judicial e deixam outras à beira da insolvência, e administradores e advogados entreveem no acordo de leniência a possibilidade de salvação da empresa, ainda que não a isente de enormes abalos e perdas.

Lembre-se que o instituto da leniência não constitui novidade absoluta em nosso direito, porquanto previsto na legislação antitruste desde o ano 2000, tendo rendido ao CADE meia centena de acordos realizados até hoje — 27 deles nos últimos quatro anos. Por que, então, o número de acordos de leniência anticorrupção na CGU permanece na estaca zero?

Se, de um lado, as autoridades brasileiras entendem os programas de leniência como uma política pública benfazeja, e, de outro, o setor privado neles vislumbra uma saída possível para parte dos problemas enfrentados por empresas ameaçadas de desaparecer, parece razoável crer que a inefetividade do instituto em sua modalidade anticorrupção deriva de problemas que não se verificam em seu homólogo antitruste — cuja implementação, citada acima, é bastante satisfatória. E o que a iniciativa privada precisa para aderir a políticas de leniência pode-se reduzir a uma palavra: incentivos, dentre os quais, certamente, a segurança jurídica é o mais importante.

A leitura da MP 703 evidencia a preocupação em obter-se um regramento mais detalhado do instituto, cuja vagueza na redação original da lei gerava uma insegurança criticada nos meios forenses e corporativos, mais desincentivando do que incentivando a adesão.

Como primeira novidade relevante, passou-se a prever a presença do Ministério Público (artigo 16, caput, da Lei 12.846/13 em sua nova redação), atendendo não só a uma demanda de seus membros como também da advocacia especializada na matéria, visto que propicia um maior grau de atendimento aos diferentes interesses estatais implicados — inclusive no âmbito penal — e oferece maior segurança jurídica ao particular. Também se possibilitou a participação da advocacia pública (artigo 16, caput), de forma a que os acordos contemplem a sua visão em prol dos interesses patrimoniais do Estado, com o que se evita a propositura de ação própria por esse órgão e se poupam tempo e recursos públicos e privados.

Aumentou-se o incentivo econômico para as empresas, permitindo a total exclusão da multa para a primeira que colaborar sobre um determinado conjunto de fatos (artigo 16, § 2º, III) e afastando possíveis restrições ao direito de licitar e de contratar com o Poder Público (artigo 16, § 2º, I), sem prejuízo de manter a obrigação de a empresa “reparar integralmente o dano causado” (artigo 16, § 3º). Conferiu-se maior segurança ao processo de negociação do acordo — da qual, aliás, ressente-se o atual regramento da colaboração premiada em âmbito penal —, prestigiando os interesses públicos e particulares envolvidos, mormente no que toca ao sigilo das informações prestadas e quanto à suspensão de prazos prescricionais (artigo 16, §§ 6º, 7º e 9º; artigo 17-B). Instituiu-se o controle dos acordos pelos Tribunais de Contas (artigo 16, § 14), a se realizar no momento próprio ao exercício do controle externo — após a celebração do acordo —, obedecendo, assim, às competências estabelecidas pela Constituição Federal para cada órgão.

No que respeita às condições a serem cumpridas, mantiveram-se a necessidade de plena e eficaz cooperação da empresa — com a identificação dos demais envolvidos e a apresentação de informações e documentos para fins probatórios — e a da presença, às expensas próprias, a todos os atos a que chamada (artigo 16, I a III e § 1º, III). Ainda, adicionaram-se-lhes as obrigações de a empresa cessar a sua participação nas infrações desde a propositura do acordo (artigo 16, § 1ª, II) e, talvez ainda mais importante, de implementar mecanismos internos de integridade e auditoria (compliance), impondo-se a aplicação rigorosa de código de ética e incentivando mecanismos internos de denúncia de irregularidades (artigo 16, IV).

Como visto, o novo regramento do acordo de leniência atende ao interesse público no aprimoramento de suas regras e no estabelecimento de medidas preventivas para que infrações não se repitam. Improcedem, portanto, muitas das críticas dirigidas a seu conteúdo. Ante as condições impostas aos acordos — que não excluem outras, circunstanciais, a serem apostas pelos órgãos de controle —, supor que uma “anistia plena, geral e irrestrita” a “empreiteiras corruptas” (Modesto Carvalhosa, O Estado de S. Paulo, 29 de dezembro de 15) não passa de desconhecimento do instituto, agravado pelo desprezo à implementação de programas de integridade e pela afirmação, contrária à literalidade do texto normativo, de que “nenhuma multa, ressarcimento ou outra penalidade serão aplicados” (ibidem).

Tampouco faz sentido o reclamo do procurador oficiante no TCU, porquanto não se subtraíram — ao contrário, prestigiaram-se — as competências do órgão. É preciso compreender-se que um sistema multiagências de controle (interno e externo) da corrupção distribui e coordena atribuições, não sendo o caso de disputar protagonismos.

Criticáveis remanescem, sobretudo, a facultatividade da intervenção do Ministério Público — a necessidade de sua presença cabe ser reconhecida pela CGU e demais órgãos de controle e, não obstante, há que ser exigida por advogados no interesse de suas clientes — e a falta de limitação ao número de empresas autorizadas a participar de acordos envolvendo os mesmos fatos, o qual deve ser baixo sob pena de desnaturar o instituto. Isso, porém, enquanto não venha a ser legislado (e convém que o seja), pode perfeitamente ser exigido em situações concretas: nada obsta que a CGU e o MP condicionem a realização de novos acordos à abertura de informações sobre novos fatos.

Aqui, pois, divirjo em parte do posicionamento defendido pelo procurador Carlos Fernando dos Santos Lima (Valor Econômico, 4 de janeiro de 2016; O Globo, 5 de janeiro de 2016) em relação à previsão normativa, para com ele convergir na questão de fundo: se, com base na experiência da força-tarefa da operação lava a jato, essa é uma condição de que o Ministério Público Federal não prescinde, bastará que o órgão assim se manifeste por ocasião da negociação de cada acordo, o que, vale dizer, contribuiria para o aprimoramento da cultura de negociação que o instituto pressupõe — e que tanto estranhamento ainda tem gerado entre promotores e advogados habituados à inflexibilidade tradicional do direito brasileiro.

Por fim, cumpre apontar a inconstitucionalidade de um específico ponto da MP 703: a revogação, prevista em seu artigo 2º, inciso I, da proibição à celebração de acordo ou transação contida na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92, artigo 17, § 1º), norma de natureza processual civil — matéria vedada ao escopo de medidas provisórias (CF, artigo 62, § 1º, I). É verdade que, conquanto haja errado na forma, também aqui a intenção da MP foi correta, na medida em que tal previsão da Lei de Improbidade não se coaduna com a lógica dos acordos de leniência, dificultando-lhes a celebração; recomendável, pois, que o Congresso Nacional proceda a essa atualização legislativa, editando lei em sentido estrito com esse teor, com a brevidade possível a fim aprimorar o regramento da leniência anticorrupção.

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  • Brave

    é advogado, mestre e doutorando em direito penal pela USP, especialista em fraudes fiscais e lavagem de dinheiro pela Universidad de Castilla – La Mancha; pós-graduado em direito penal econômico e europeu pela Universidade de Coimbra.

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