Garantias do Consumo

Direito protege consumidor e livre concorrência de aumento abusivo (parte 2)

Autor

  • Bruno Miragem

    é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

20 de janeiro de 2016, 7h00

Em nossa última coluna, nos debruçamos sobre espécie de prática abusiva definida pelo artigo 39, X, do Código de Defesa do Consumidor, que proíbe a conduta de “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Embora com origem na tradição legislativa do Direito da Concorrência no Brasil, e associando, inicialmente, às noções da elevação sem justa causa de preços e aumento arbitrário de lucros com o abuso da posição dominante de mercado, a definição da prática abusiva prevista no Código de Defesa do Consumidor assume autonomia, em vista dos interesses dos consumidores. Isso faz com que a identificação e a sanção da prática de elevação sem justa causa do preço de produtos e serviços prevista no CDC não dependa, necessariamente, da identificação do abuso de posição dominante, tampouco do aumento dos lucros do fornecedor.

O que se pergunta é quais critérios permitirão identificar — em uma economia de mercado, de livre iniciativa — as situações em que a elevação de preços de produtos e serviços pelo fornecedor desborda dos limites da autonomia privada e passa a ser considerada prática abusiva, pela ausência de justa causa.

Duas noções são de interesse na definição do tema. Há larga tradição, no Direito ocidental, na definição jurídica de justa causa e justo preço. A noção de causa, em Direito Privado (e aqui seja concedido tornar mais simples elaborações teóricas mais sofisticadas, em vista dos objetivos da coluna e de sua natural limitação de espaço[1]), embora tenha sentido plurissignificativo, mereceu maior acolhida em nosso sistema a partir da noção objetiva, funcional — sobretudo no exame da causa dos contratos. De modo a identificar-se como a razão objetiva pela qual se reconhece dada solução de direito, ou o ajuste e prestações das partes nos contratos (causa sinalagmática). Nessa visão, a causa dos contratos é identificada segundo sua função. A noção de uma justa causa, em matéria de elevação de preços, contudo, vai associar-se à formação do princípio da equivalência material, que acompanha todo o desenvolvimento do Direito Privado, com fases de maior ou menor destaque ao longo da história[2].

As origens do princípio da equivalência material associam seu desenvolvimento filosófico (especialmente em Aristóteles e sua noção de Justiça distributiva) e o reconhecimento pelo próprio Direito. Já no Direito romano, a partir do século III d.C., o imperador Deocleciano admite a lesão enorme (laesio enormis) para a proteção dos vendedores em relação ao comprometimento do preço da coisa, sustentando-se o conceito na consideração de que cada bem tem seu preço justo (iustum pretius)[3]. Essa noção será depois desenvolvida na Idade Média[4] — especialmente a partir da influência da doutrina cristã sobre o pensamento jurídico, servindo como conhecido exemplo da aversão da igreja às atividades que visavam o lucro e a usura[5]. Em termos conceituais, afirma-se pela necessidade de guardar uma relação de equivalência entre o valor do produto e o valor do que se pode adquirir com o dinheiro pelo qual foi vendido, de um estimado comum entre as partes.

Atualmente, a violação do princípio da equivalência material dos contratos associa-se às noções de desvantagem exagerada ou desequilíbrio significativo[6]. Essa ideia de desequilíbrio significativo admite duas compreensões: uma moral, outra econômica. A primeira exigirá um abuso da posição por parte daquele que tem o poder de impor o preço, normalmente em um comportamento desleal, violador da boa-fé. A compreensão econômica, de sua vez, concentra-se na identificação do desequilíbrio centrado nos custos e riscos da operação[7].

No Direito do Consumidor, em uma primeira visão, percebe-se a ausência de justa causa caracterizadora da prática abusiva proibida, como uma elevação de preços que não seja justificada pelo respectivo aumento dos custos da atividade. Conforme Antônio Herman Benjamin, “em princípio, numa economia estabilizada, elevação superior aos índices de inflação gera uma presunção — relativa, é verdade — de carência de justa causa”[8].

Em um regime de livre iniciativa, contudo, frente à ausência de controle direto de preços, não se pode, a priori, retirar do fornecedor a possibilidade de readequar os preços de seus produtos e serviços, inclusive para — se entender correto — aumentar sua margem de lucro. O abuso estará presente quando isso se der de forma dissimulada, ou ainda, quando haja claro aproveitamento da posição dominante que exerce frente ao consumidor (aqui bem entendido, em sentido que lhe reconhece no Direito do Consumidor e dos contratos em geral — desigualdade de posição contratual — e não exatamente aquele desenvolvido no Direito da Concorrência). Identifica-se no comportamento do fornecedor a deslealdade em sua relação com o consumidor. Aliás, práticas abusivas de um modo geral o são, em razão da deslealdade em face do consumidor considerado individualmente ou em grupo[9].

Não podem ser considerados abusivos, por igual, os aumentos de preços que se justifiquem por propósito de diferenciação entre consumidores motivados objetivos de política tarifária (seja para suportar maiores custos/investimentos, ou para promover objetivos de solidariedade social)[10].

Em uma proposta de sistematização dos critérios para interpretação da hipótese de elevação sem justa causa de preços, deve-se ter em conta a anormalidade da conduta do fornecedor que leva à violação do princípio da equivalência material. Essa anormalidade revela-se: a) pelo excesso quantitativo do aumento, o que se apura por sua extensão e dissociação do aumento de custos para a produção do produto ou execução dos serviços; b) pelo excesso qualitativo, revelando prática desleal de dissimulação do aumento de preços sob falsas justificativas, ou ainda se aproveitando de uma dependência ou catividade do consumidor em relação a um determinado produto ou serviço. Dissimula aquele que se utiliza da repercussão do aumento de certos custos e tributos em percentual significativamente maior do que efetivamente impactam na formação do preço final. Aproveita-se de uma situação de dependência ou catividade do consumidor que, tendo ciência ou mesmo dando causa a obstáculos para que obtenha a resolução do contrato de duração, ou para que possa conseguir outro produto ou serviço que atenda seus interesses, disso se serve para aumentar seus preços. Em ambos os casos, há um ato que modifica o sistema de preços até então praticados, majorando-os. Não se deve examinar, contudo, a motivação desses atos, senão a objetividade da conduta do fornecedor.

Retomando os exemplos mencionados na coluna anterior, o vendedor de telhas que aumenta em 1.000% o preço de seus produtos, aproveitando-se da elevação da demanda causada por um vendaval, revela em sua prática um excesso quantitativo que merecerá reprovação pelo Direito. Por outro lado, o fornecedor de combustíveis que aumente seus preços sob a justificativa do aumento de tributos, porém falseie sua repercussão sobre o preço final, demonstra um comportamento desleal (espécie de excesso qualitativo).

Não se perde de vista que outra função do preço também é tornar atrativa a atividade para quem a desempenha, visando o lucro legítimo. O controle apriorístico de preços apenas se admite em vista de interesses sociais bem delimitados e no interesse do equilíbrio e do acesso dos interessados a determinados produtos ou serviços — com os riscos conhecidos de causar disfunções no mercado em face de equívocos de regulação. Já no caso do controle a posteriori, como ocorre pela incidência artigo 39, X, do CDC, há de se estabelecer as necessárias precauções para que o intérprete, ao concretizar o preceito, não exceda em sua discricionaridade. Não se trata, naturalmente, de achar-se demasiado ou não o aumento, senão se ele se apoia ou não em motivações sustentadas na racionalidade econômica de modo a serem reconhecidas pelo Direito.

A jurisprudência brasileira se preocupa, corretamente, com a demonstração adequada da inexistência da justa causa em matéria de elevação de preços. Sinaliza-se em muitos julgados a necessidade de produção da prova pericial para a identificação do excesso, para além apenas da identificação da margem de lucro[11]. Não se afasta, contudo, também aqui, a possibilidade de inversão do ônus da prova, presente as hipóteses do artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor[12]. Já no caso da atuação fiscalizadora do Estado, trata-se de elemento de prova do cometimento da infração pelo fornecedor.

As situações nas quais há prática de elevação sem justa causa de preços se dão pela alteração de certo curso normal da atividade do fornecedor. Entretanto, não encerram todas as situações em que há proteção da equivalência material. Além das hipóteses do controle de cláusulas abusivas que imponham vantagem exagerada ao consumidor (artigo 51, IV c/c parágrafo 1º, do CDC), no próprio rol de práticas abusivas há outras que se orientam no mesmo sentido. É o caso do inciso V, do artigo 39, que proíbe a conduta de “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”. Embora observe certas distinções quanto à hipótese do aumento sem justa causa de preços (inciso X), em ambas as práticas está presente a ideia do excesso, de modo que possuem elementos comuns de interpretação e aplicação. E, sobretudo, compartilham esse critério para delimitar o que se considere vantagem excessiva, também em razão da ausência de justa causa.

Um bom exemplo é o da possibilidade ou não da cobrança de preços diferenciados para pagamento em dinheiro ou por intermédio de cartão de crédito. De um lado, sustenta-se que o cartão de crédito, ao reduzir os riscos de inadimplência para o fornecedor e servir como forma de ampliação da clientela, mediante facilitação do pagamento, oferece vantagens negociais cujos custos não podem ser transferidos diretamente ao consumidor que se disponha a pagar por esse modo — daí a impossibilidade de praticar preços diferenciados. Em sentido oposto, o argumento que prevalece é o de que a adoção de preços diferenciados, devidamente informados ao consumidor, permite que os custos maiores do pagamento com cartão de crédito — representado especialmente pela remuneração devida pelo fornecedor ao administrador do meio de pagamento — sejam repassados apenas aos consumidores que efetivamente façam uso dessa facilidade. Embora contraditórios, ambos são argumentos defensáveis segundo premissas racionais. Trata-se de definir se o pagamento a maior deve ocorrer apenas no caso de utilização do cartão de crédito, ou se o seu custo deve ser internalizado pelo fornecedor e distribuído no preço de todos os seus produtos e serviços. Registre-se que o Superior Tribunal de Justiça inclina-se pelo reconhecimento da existência de prática abusiva no caso de cobrança de preços diferenciados, invocando as hipóteses do artigo 39, incisos V e X, sob o fundamento de que se trata de uma transferência indevida de custos ao consumidor, considerada a vantagem obtida pelo fornecedor[13].

Mencione-se, por fim, que a interpretação sobre o excesso na fixação do preço e de vantagens pelo fornecedor, a par de seu desafio interpretativo, ganha novos contornos em vista da crise econômica que se acentua. A elevação da inflação em patamares consideráveis, com a consequente elevação dos custos da atividade econômica e a pressão para seu repasse ao consumidor destaca a necessidade do atento estudo da questão. A distinção entre situações admissíveis de elevação de preços ao consumidor e outras revestidas de abusividade assume ainda maior importância nestes tempos difíceis.


[1] Desenvolvemos melhor o tema, acerca da causa dos contratos em: MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. São Paulo: RT, 2013, p. 269 e ss.
[2] Veja-se sobre seu ressurgimento contemporâneo em WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 599.
[3] KASER, Max. KNÜTEL, Rolf. Römisches Privatrecht. 20. Auflage. München: Verlag C.H.Beck, 2014, p. 244.
[4] Segundo Jacques Le Goff, o sistema de preços na Idade Média, ao lado de reclamos de solidariedade social, também assiste a influência crescente da formação de burocracia estatal e seu esforço para a coleta de impostos. LE GOFF, Jacques. Lo sterco del diavolo. Il denaro nel medievo. Roma: Laterza, 2010, p. 148.
[5] O cerne da concepção cristã de justo preço permanece válido segundo o pensamento católico, em especial na denominada doutrina social da igreja. A respeito, veja-se: ÁVILA, Fernando Bastos de. Pequena Enciclopédia da Doutrina Social da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1993, p. 376.
[6] MARTINS, Fernando Rodrigues. Princípio da Justiça Contratual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 356 e ss.
[7] STOFFEL-MUNCK, Philippe. L’abus dans le contrat. Essai d’une théorie. Paris: LGDJ, 2000, p. 330-332.
[8] BENJAMIN, Antônio H. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 8ª ed. São Paulo: Forense universitária, 8ª ed., 2005, p. 381.
[9] Veja-se a definição do artigo 5º da Diretiva 2005/29/CE: “Uma prática comercial é desleal se: a) for contrária às exigências de diligência profissional; e b) distorcer ou for susceptível de distorcer de maneira substancial o comportamento econômico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afecta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores”.
[10] STJ, AgRg no REsp 1121617/PR, relator ministro Castro Meira, 2ª Turma, j. 14.04.2011, DJe 27.04.2011.
[11] Em caráter exemplificativo: TJRS, Apelação e Reexame Necessário 70067235796, 20ª Câmara Cível, Rel. Carlos Cini Marchionatti, j. 16/12/2015.
[12] BENJAMIN, Antônio H. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado…, p. 381.
[13] Neste sentido: REsp 1479039/MG, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, j. 06/10/2015, DJe 16/10/2015; e REsp 1133410/RS, relator ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 16/03/2010, DJe 07/04/2010. A dificuldade do tema é sensível. Note-se que o ministro Humberto Martins, na decisão mais recente, alterou seu entendimento firmado na decisão do AgRg no REsp 1178360/SP, em 2010. 

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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