Estado da Economia

Uma maior economicização torna o Direito Econômico científico?

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  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

17 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
Costuma-se atribuir a expressão more economic approach à guinada metodológica rumo às técnicas típicas da ciência econômica na interpretação e aplicação do Direito Concorrencial europeu em tempos mais recentes.

O debate do Direito Concorrencial europeu hodierno está marcado por esta reforma institucional, normativa e jurisprudencial da Comissão Europeia e por sua repercussão na doutrina, o que, certamente, impulsionou um questionamento de vários pressupostos culturais europeus sobre o tema.

Vários são os fatores e inquietações, como: (i) Trata-se de uma “americanização” ou ao menos convergência com a ortodoxia neoclássica norte americana? (ii) Causa insegurança jurídica? (iii) O emprego de muitos economistas na Comissão é ineficiente do ponto de vista dos gastos (custo/benefício)? (iv) A aproximação com a economia deve se dar com base em outros pressupostos teóricos, que não o da análise estática típica do mainstream economics?

De um ponto de vista positivo, está a possibilidade de apreciação e julgamento de atos e estruturas com maior enfoque nos fatos e nas provas (econômicas), o que aumentaria o grau técnico e a chance de discutibilidade em cada caso concreto (produção de provas).

Em solo europeu, alguns livros e artigos estão sendo escritos para analisar o tema – muitos deles em tom crítico[1]. O debate sobre a implantação ostensiva de modelos neoclássicos estáticos é extremamente relevante, por representar, sobretudo, as bases epistemológicas do uso de argumentos microeconômicos em decisões jurídicas brasileiras.

A reforma que desencadeou o more economic approach teve início com a regulação de acordos verticais (Regulamento Genérico 2.790/1999) em 1999, com a adoção do guia para a aplicação do artigo 81 (3) [depois, artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE], com o regulamento sobre fusões de 2004 e com as guidelines para a aplicação do artigo 82 (EC) [após, artigo 102 do TFUE]. Uma figura central nessa mudança institucional foi o então Comissário Mario Monti, que descreveu o processo como uma guinada de uma abordagem mais legalista para outra baseada em regras derivadas de princípios econômicos[2].

No caso da análise das concentrações empresariais, seu controle tem início em 1989, já que antes utilizava-se apenas o Direito Antitruste comum (artigos 101 e 102 do Tratado de Roma). A partir dessa data, há um regulamento específico para a análise, que será utilizado até as reformas que deram origem à guinada aqui abordada.

Assim, na Comissão Europeia, os casos de concentração econômica eram julgados a partir da pesquisa de eventuais posições dominantes. No julgamento, em 2002, de três casos, a Comissão resolveu aplicar um teste econômico SIEC (Significant Impediment to Effective Competition)[3].

Se a primeira iniciativa de uma análise mais econômica de casos de fusão (os três casos de 2002) já demonstrava esse deslocamento, com a reforma dessas decisões pela primeira instância judicial (Tribunal Geral), com o fundamento de que os pressupostos econômicos não estariam claros e bem demonstrados, houve o impulso para a elaboração dos pressupostos teóricos e institucionais do more economic approach[4].

A principal mudança foi o novo Regulamento para apreciar concentrações, de 2004. O teste anterior tinha a função de evitar a criação ou reforço de posição dominante, ao passo que, o novo, de impedir que concentrações gerassem limitações à concorrência, independentemente, de posição dominante.

Como se vê, havia uma preocupação com a segurança jurídico-econômica (no sentido de reforçar as premissas e as conclusões das decisões) e com a transparência quanto aos critérios utilizados.

Além disso, houve alterações processuais e administrativas, tendo, a Comissão, criado vários cargos para economistas, notadamente, a de um Economista-Chefe, algo reproduzido no Brasil posteriormente.

Outro ponto importante foi a referência à eficiência como fator compensatório para a aprovação de concentrações, a despeito do aumento de poder de mercado. Ainda que os limites para essa aprovação sejam bem estreitos, como lembra Arndt Christiansen, a depender da demonstração de se tratar de eficiência relacionada especificamente à concentração e de que haverá benefício, ao menos em parte, ao consumidor. Essa referência a eficiências econômicas compensatórias de eventuais concentrações ou posições não deixa de representar certo alinhamento europeu com o debate norte-americano[5].

Como se percebe, o desafio de se demonstrar e dar maior transparência às bases econômicas das decisões da Comissão obrigou-a a estabelecer as bases teóricas para os próximos julgados. A base teórica pode ser identificada com as abordagens pós-Chicago, ou seja, uma base ortodoxa com a revisão de vários postulados mais normativos da fase da Escola de Chicago[6].

Esses são os fatos históricos presentes no surgimento do more economic approach. A questão que logo se apresenta é saber até que ponto a convergência em torno de uma base mais neoclássica e voltada à eficiência econômica significaria uma adesão expressiva ou uma “americanização” do Direito europeu.

O uso mais efetivo de teorias econômicas no Direito Concorrencial europeu não tende a recuar. Então, a questão parece ser mais de como lidar com essa Ökonomisierung des Kartellrechts (economicização do Direito Concorrencial). Nesse ponto, a situação europeia não será muito diferente da de outras jurisdições.

Assim, há a necessidade de se refletir bem sobre o alcance do uso da economia nos julgados de direito concorrencial. Daí a importância de se fomentar um debate plural acerca das diversas teorias econômicas e não a adoção apriorística de apenas uma.

Mesmo as abordagens mais atuais e mais sofisticadas, como a teoria dos jogos, não têm capacidade preditiva forte e não devem ser utilizadas em um contexto epistemológico mecanicista. Tentativas de se defender o contrário estarão muito mais próximas da advocacia de resultados (alguma posição ideológica) do que da técnica.

Uma das formas, talvez, de se melhorar o debate e diminuir a tensão entre abordagens jurídicas e econômicas seja, ao mesmo tempo do desenvolvimento teórico multidisciplinar, incentivar o estudo dos modelos mais atuais de simulações econômicas. Será mediante esse uso cada vez mais técnico, transparente (inclusive quanto ao alcance preditivo limitado) e cada vez mais divulgado quanto a seus pressupostos, que a microeconomia poderá contribuir para o fortalecimento do positivismo jurídico contemporâneo e para a segurança jurídica, e não, ao contrário, para a sua insegurança.

Josef Drexl chega a cunhar a expressão even more economic approach para defender o uso mais intensivo da economia, mediante seu aprofundamento (não deixando de lado a importância do papel das instituições e sem olvidar a importância de modelos evolucionistas e abordagens empíricas)[7].

Gostaríamos de usar a mesma expressão para dar um passo adiante, no sentido de incluir nessa ideia um debate também metodológico, declarando que um even more economic approach poderá transformar-se em mais positivismo jurídico hodierno (não mecanicista e exegético) e menos consequencialismo ou ativismo econômico-jurídico (típicos das formulações mais frequentes do law and economics).

A economia contribuiu muito para a Análise Econômica do Direito. Está na hora de trabalharmos mais em uma Análise Jurídico-Econômica da Análise Econômica do Direito. Sobretudo em uma proposta mais factível de hermenêutica jurídica, de teoria da argumentação e de teoria da decisão[8].

Daí a ideia de que um even more economic approach – uma maior economicização do Direito Concorrencial – poderá se transformar em mais positivismo jurídico e menos consequencialismo ideológico.

Tudo isso, claro, levando em conta que os argumentos econômicos poderão ajudar os julgadores a formar suas convicções, ou seja, os modelos atuarão como provas, como garantias [warrants] dos argumentos, e não como fundamento legal de uma decisão que, ao fim e ao cabo, continua sendo jurídica, como qualquer aplicação legal de qualquer ramo do Direito.

 


[1] Por exemplo, os extensos e detalhados Arndt CHRISTIANSEN, Der «More Economic Approach» in der EU-Fusionskontrolle: Entwicklung, konzeptionelle Grundlagen und kritische Analyse, 1., Aufl., Lang, Peter Frankfurt, 2010; Thomas HEIDRICH, Das evolutorisch-systemtheoretische Paradigma in der Wettbewerbstheorie: Alternatives Denken zu dem More Economic Approach, 1o ed., Nomos, 2009; Thomas PAUL, Behinderungsmissbrauch nach Art. 82 EG und der “more economic approach”, Köln; München: Heymann, 2008; Adrian KÜNZLER, Effizienz oder Wettbewerbsfreiheit?: Zur Frage nach den Aufgaben des Rechts gegen private Wettbewerbsbeschränkungen, 1o ed., Mohr Siebeck, 2009.

[2] Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 27.

[3] Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 29. Os casos analisados foram: Case T-342/99, Airtours v. Commission, [2002] ECR II-2585; Case T-5/02, Tetra Laval v. Commission, [2002] ECR II-4381; Case T-310/01, Schneider Electric v. Commission, [2002] ECR II-4071. Ver, ainda, Arndt CHRISTIANSEN, “The ‘More Economic Approach’ in EU Merger Control – A Critical Assessment”, p. 2. Sobre os três casos, em detalhe, ver Arndt CHRISTIANSEN, Der «More Economic Approach» in der EU-Fusionskontrolle: Entwicklung, konzeptionelle Grundlagen und kritische Analyse, p. 59-75.

[4] Após essas reformas pelo Tribunal da Primeira Instância, a Comissão recorreu ao Tribunal hierarquicamente superior, alegando que o Tribunal Geral não respeitara sua margem de discricionariedade ao apreciar questões econômicas. O recurso não foi provido e a decisão considerou que o certo grau de discricionariedade não impede a reanálise detalhada pelo Tribunal, mormente em casos de análises prospectivas. Ver Romano SUBIOTTO e Martim VALENTE, “A Evolução do Direito Europeu das Concentrações”, p. 457.

[5] Arndt CHRISTIANSEN, “The ‘More Economic Approach’ in EU Merger Control – A Critical Assessment”, p. 6-7.

[6] Cf. Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 35.

[7] Josef DREXL, “Wettbewerbsverfassung”, in Europäisches Verfassungsrecht: theoretische und dogmatische Grundzüge, org. Armin von Bogdandy e Jürgen Bast, Dordrecht [u.a.]: Springer-Lehrbuch, 2009, p. 940.

[8] Em detalhes, ver Andrade, José Maria Arruda de. Economicização do Direito Concorrencial. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2014.

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    é Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, Alemanha.

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