Opinião

Proposta tributária do governo é bem intencionada mas carece de técnica

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

13 de janeiro de 2016, 5h56

O Partido dos Trabalhadores apresentou recentemente ao governo algumas propostas para a realização de um ajuste fiscal que não prejudique a massa menos favorecida. Como às vezes acontece na esquerda brasileira, as propostas são bem intencionadas, todavia algumas carecem de um pouco mais de técnica.

A primeira delas é a recriação da CPMF. Conforme texto publicado aqui na ConJur há poucas semanas [1], um IMF, que é muito semelhante à CPMF, tem suas vantagens e desvantagens, devendo ser analisado com muito cuidado, pois a forma de desenhá-lo, assim como no caso de todos os demais tributos, é bem relevante.

Se o objetivo principal das propostas do PT é levantar receitas para o Estado, mas sem atingir a massa desfavorecida; o que faz a CPMF em primeiro lugar na sua lista? Não é o melhor momento para criar esse tipo de tributo, tendo em vista que a carga tributária incidente sobre a indústria e o comércio já é excessiva.

Para se ter uma ideia, a média da tributação da indústria na OECD é 19,1%, mas no Brasil chega a 39,5% quando somamos PIS, COFINS, IPI, ICMS e contribuição previdenciária sobre as receitas. É mais do que o dobro!

A CPMF é um tributo cumulativo e regressivo, que aumentará os preços dos produtos, impulsionando a inflação e reduzindo o poder de compra da população, o que sempre dói mais naqueles que têm menos.

Tributos incidentes sobre as pessoas jurídicas são repassados para pessoas físicas. Enquanto pessoas criadas por ficção legal, as empresas não suportam a tributação em última instância. Outrem irá sofrer com ela.

São basicamente três os grupos que sofrem com o ônus financeiro da tributação da pessoa jurídica: a) clientes (consumidores), por repasse do ônus dentro do preço, semelhantemente ao que acontece no caso de tributos incidentes sobre a cadeia produtiva; b) empregados, por estagnação dos salários, contenção de benefícios e redução da distribuição de lucros; e c) sócios ou acionistas, que podem vir a suportar o ônus no próprio resultado da empresa de modo a reduzir o lucro líquido e diminuir, finalmente, a distribuição de dividendos.

Por óbvio, os sócios e acionistas, donos das empresas, são os últimos a sofrerem com os tributos incidentes sobre as pessoas jurídicas. Elas repassam o ônus financeiro dos tributos, tanto quanto possível segundo o mercado dos seus produtos e o mercado de trabalho, para clientes e empregados.

De outro lado, a tributação direta na pessoa física é muito mais difícil de ser repassada para outros. Em regra, o Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) afeta os comportamentos do próprio indivíduo tributado. São basicamente três grupos de comportamentos: a) trabalho; b) investimento; e c) consumo.

A tributação progressiva desconcentra a renda, sobretudo se a sua consequência for uma maior aplicação das receitas, de forma eficiente, em finalidades que democratizem na sociedade as capacidades de consumo e, principalmente, de produção.

Há inúmeros trabalhos estrangeiros comprovando que o aumento da tributação da renda dos mais ricos afeta pouco os grupos de comportamentos referidos devido à maior elasticidade de renda dessa categoria e, do outro lado, com uma maior redistribuição da renda, termina-se obtendo uma melhoria de resultado em todos esses comportamentos, pois mais pessoas passam a trabalhar, investir e consumir.

Em um recente e cuidadoso trabalho, o hispânico-irlandês Marc Morgan Milá, sob a orientação do gênio francês Thomas Piketty, publicou um dos primeiros estudos históricos da desigualdade brasileira, analisando a evolução dela desde 1933 até 2013. Uma das conclusões foi a de que o Brasil, de fato, tem uma das maiores desigualdades do mundo, nunca tendo sido encontrada, com base em dados tributários, uma tão grave [2].

Outro achado do estudo de Marc foi que há um paradoxo entre a concentração de renda e os investimentos no Brasil, algo semelhante ao que denunciei num texto meu publicado na Folha.com em 31 de dezembro, ao qual fiz referência anteriormente. Quanto menos tributação progressiva e, portanto, mais concentração de renda no topo, há menos investimentos [3].

Para uma redução da concentração de renda e um aumento de receita da União Federal sem atingir os menos favorecidos, o fim da isenção dos dividendos é extremamente importante [4], mas a forma como essa tributação será desenhada é fundamental. A despeito disso, o PT não entrou nesse detalhe.

Venho defendendo que o sistema mais eficiente e equânime hoje no mundo é o australiano [5], que prevê a imputação de um crédito pelo imposto pago na pessoa jurídica, com direito à restituição em caso de saldo credor, sepultando o argumento de que haveria bitributação.

Na Henry Review, excelente revisão promovida pelo governo australiano na tributação do seu país, concluiu-se que, em um mundo cada vez mais globalizado, faria menos sentido a sistemática atual de créditos, porém, enquanto não fosse encontrada uma melhor, ela deveria continuar sendo utilizada no curto prazo.

O problema trazido pela globalização é que não se pode conceder créditos, por exemplo, a sócios de empresas australianas, mas residentes no exterior, pois eles pagam o IRPF (personal income tax) em outro país, a menos que exista um tratado bilateral prevendo essa sistemática.

Do mesmo modo, não se pode dar um crédito ao sócio de empresa estrangeira, mas que reside na Austrália, pois ela teria pago o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) em outro país.

Uma proposta que parece adequada para o Brasil é, então, aplicar a sistemática australiana de créditos para os casos de sócios de empresas brasileiras e residentes no país, que é a grande maioria das hipóteses.

No caso de sócios de empresas brasileiras que residam no exterior e de sócios de empresas estrangeiras que residam no Brasil, poderia se voltar com a antiga incidência na fonte, aplicando desta feita uma alíquota que representasse mais ou menos a diferença entre o que é pago na pessoa jurídica e o que é devido pela pessoa física segundo a tabela do IRPF.

O Projeto de Lei 588/2015, de autoria do senador do PT Lindbergh Farias, prevê o simples retorno da aplicação da alíquota de 15% a todos os casos de distribuição dos dividendos, que, pelos motivos expostos, não é uma medida adequada.

A alíquota da tributação dos dividendos depende de uma reforma da tabela do IRPF, pois o Brasil é um dos únicos países do mundo no qual a alíquota máxima do IRPF (27,5%) é menor do que a alíquota paga pelas grandes empresas (34% – IRPJ + CSLL).

As baixas alíquotas aplicáveis à pessoa física, juntamente com a não tributação dos dividendos, causa enorme perda de progressividade no topo da pirâmide de renda, fazendo com que ricos paguem muito pouco imposto em comparação com a classe média e os pobres.

Estão completamente enganados aqueles que creem ser possível reduzir a desigualdade apenas no gasto do Estado. Para que o dispêndio seja possível, é preciso arrecadar, e, para que as desigualdades sejam reduzidas ao longo de toda a pirâmide, é preciso arrecadar bem mais daqueles que têm mais. A progressividade é uma técnica econômica fundamental para busca de eficiência e equidade.

Com o devido respeito aos defensores de que a progressividade se faz apenas no gasto, é possível que eles estejam se influenciando por um desejo subconsciente — ou consciente, o que é pior — de não verem sua carga tributária aumentada. Por conta disso, defendem posições que levam àqueles menos favorecidos pagarem mais tributos, o que é absolutamente imoral e fere noções econômicas básicas, como a de utilidade.

O PT também acerta em propor uma reforma da tabela progressiva, mas erra na forma. Considerando que a classe média brasileira teria uma renda de até R$ 17,6 mil (20 salários mínimos), uma nova faixa com alíquota de 35%, aplicada num passado recente (anos de 1994 e 1995), deveria ser estabelecida a partir desse valor e, então, outra faixa poderia ser fixada para os mais ricos, a exemplo de uma alíquota de 40% ou até mesmo 45% para os que ganhassem mais de R$ 35 mil.

O Brasil nunca aplicou uma alíquota máxima menor do que 50% entre os anos de 1947 e 1987. Por conta dessas alíquotas e de outros fatores, houve queda da desigualdade no período que vai de 1947 a 1964, como demonstram recentes estudos.

Segundo o excelente trabalho de Pedro Souza e Marcelo Medeiros [6], a desigualdade brasileira sempre foi muito alta, porém houve períodos em que a concentração de renda no topo era tão grande que se tornou possível notar uma tendência de maior concentração nesses momentos. A partir do golpe militar (1964), devido, por exemplo, às isenções fiscais, às deduções do IRPF, aos arrochos salariais e à repressão dos sindicatos acontecidos a partir dali, a desigualdade cresceu.

A proposta do PT de aplicar uma alíquota de 40% para aqueles que ganhem mais de R$ 108.480,01 é ruim. Poucas pessoas auferem mais do que isso no Brasil, sobretudo enquanto não se tributar os dividendos. Como a tabela do IRPF é de alíquotas marginais progressivas, a tributação vai crescendo de acordo com o aumento dos rendimentos, então pode-se utilizar limites menores.

Se fosse aplicada a proposta do PT, o aumento da progressividade seria suave e a elevação da arrecadação não seria tão considerável a ponto de permitir, por exemplo, a fundamental reforma da tributação do consumo, uma omissão importante da proposta do partido governista, pois ela é essencial para o aumento do poder de compra da população, que levaria a um aumento de demanda agregada e, consequentemente, ao crescimento econômico.

Por fim, não faz sentido aumentar muito o valor da faixa de isenção, uma vez que todo contribuinte tem direito a um desconto simplificado de despesas da base de cálculo do IRPF, que, na declaração de 2016, será de R$ 16.754,36 ao ano, o que significa R$ 1.396,20 ao mês.

Se considerarmos uma faixa de isenção atual de R$ 1.903,98 ao mês, todos que ganham até R$ 3.300,18 já não estão pagando IRPF, então não há porque mexer drasticamente na faixa de isenção para elevá-la a R$ 3.390,00, como defende o PT. Bastaria aumentá-la para R$ 2 mil e aqueles que ganham até R$ 3.396,20 não pagariam nenhum IRPF.

Se elevada a R$ 3.390,00, todos aqueles com rendimentos médios mensais de até R$ 4.786,20 não pagarão imposto, valor que parece alto. Lembre-se que aqueles com rendimentos baixos terminam pagando pouquíssimo imposto, pois há as deduções, a faixa de isenção e a primeira faixa de tributação leva alíquota de apenas 7,5%. Lembre-se, por fim, que o aumento da faixa de isenção repercute sobre a tributação de todos aqueles com rendimentos maiores.

As propostas do PT são um sinal auspicioso de que, enfim, é possível haver uma reforma tributária no Brasil, não ocorrida desde a Constituição Federal de 1988, apesar de prometida por quase todos os políticos em suas campanhas. É hora de a sociedade pressioná-los duramente para que o país possa ganhar em eficiência e equidade, tornando-se, assim, possível alcançar a grandeza que lhe cabe!


1 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-09/villas-boas-brasil-iva-segue-contramao-mundo>. Acesso em: 8. jan. 2016.

2 “This study has shed light on the state of income distribution in Brazil by focusing on concentration at the top. It is the first to use tax data to analyse distributional matters in the country over the long-run. The results of the investigation confirm that Brazil remains one of the world’s most unequal societies, with levels of concentration, based on tax records, unseen anywhere else, and top income recipients possessing average income levels comparable to those in the richest societies” (MILÁ, Marc Morgan. Income Concentration in a Context of Late Development: An Investigation of Top Incomes in Brazil using Tax Records, 1933-2013. Disponível em: <http://piketty.pse.ens.fr/files/MorganMila2015.pdf>. Acesso em: 8. jan. 2016, p. 93).

3 “Figure 49 presents the ratio between total investment and the income share of the top 10 per cent in Brazil compared to the same ratio in other emerging and developing countries. It can be seen that the rich in Brazil invest relatively little of their income share (either directly through private investment of indirectly through providing tax revenues for public investment) compared to their Asian counterparts. Despite South Korea and Brazil sharing similar levels of GDP per capita in 1980, the rich in South Korea invested three times more of their income than the rich in Brazil. Over the course of 30 years, the ratio in both countries decreased, as the income share of the rich rose, in the case of South Korea, or was maintained, as in the case of Brazil” (Ibidem, p. 89).

4 Vide recente texto sobre o assunto – Disponível em: <http://m.folha.uol.com.br/opiniao/2015/12/1724033-isencao-dos-dividendos-e-erro-grosseiro.shtml>. Acesso em: 8. jan. 2016.

5 Vide textos anteriores publicados aqui na Conjur – Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-04/marcos-villas-boas-dividendos-deveriam-tributados-australia>. Acesso em: 8. jan. 2016; e Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-30/villas-boas-isentar-dividendos-reduz-progressividade>. Acesso em: 8. jan. 2016.

6 “Yet, the evidence we have is that inequality in Brazil has always been very high, though definitely not constant. There are no clear-cut secular trends towards either increasing or decreasing inequality, but top income shares have fluctuated sometimes in tandem with major political changes. The military coup of 1964, in particular, was followed by a rapid rise of the top 1% income share, reversing the previous trend” (SOUZA, Pedro H. G. F.; MEDEIROS, Marcelo. Top Income Shares and Inequality in Brazil, 1928-2012. Disponível em: <http://diagramaeditorial.com.br/sid/index.php/sid/article/view/2/23>. Acesso em: 8. jan. 2016, p. 129.  

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