Justiça Tributária

O IPTU, o Estatuto da Cidade, a especulação e a função social da propriedade urbana

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

11 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
O artigo 182 da Constituição Federal fixa as normas da política urbana e ordena que cidades com mais de 20 mil habitantes aprovem um Plano Diretor como instrumento  básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

O objetivo da norma é impedir o crescimento urbano desordenado que causa enormes transtornos e mesmo tragédias sociais. Com as recentes chuvas, diversos problemas ocorreram, com prejuízos a toda a sociedade, o que poderia ter sido evitado ou diminuído se a Constituição vigente desde 1988 fosse observada.

O mesmo artigo prevê o estabelecimento de alíquota progressiva para o IPTU, caso o proprietário não dê adequado aproveitamento ao imóvel. Trata-se de mecanismo destinado a coibir a especulação parasitária, onde o dono do imóvel espera que obras feitas pelo conjunto da sociedade o beneficiem economicamente sem qualquer ônus.

As normas constitucionais raramente são exequíveis sem o apoio de aparatos auxiliares, que são as leis complementares e ordinárias e seus eventuais regulamentos.

Desde sempre e no mundo todo, as propriedades imobiliárias, por representarem riquezas, são tributáveis pela simples posse ou domínio. Nossa Constituição prevê o IPTU (artigo 156 inciso I) cujas normas gerais estão fixadas nos artigos 32 a 34 do Código Tributário Nacional.

O mencionado artigo 33 tem a seguinte redação:

“Artigo 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.

Parágrafo único. Na determinação da base de cálculo, não se considera o valor dos bens móveis mantidos, em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração, aformoseamento ou comodidade”.

A autoridade fiscal do município é que calcula esse valor, de acordo com o que constar de seus registros cadastrais, para o que leva em conta a área do terreno, o valor das benfeitorias, construções  e demais ajustes. Consideram-se ainda o preço médio na região, facilidades de acesso e demais fatores que possam influir no preço. Tal avaliação não é feita de forma individual, mas fundamentada em uma planta genérica de valores, eis que a avaliação individual seria inviável.

As alíquotas do IPTU devem ser aprovadas por lei municipal na forma da proposta orçamentária. Devem ser fixadas observando os limites da razoabilidade e proporcionalidade. Não podem chegar ao efeito confiscatório, vedado pelo artigo 150 inciso IV da Constituição, pois se trata de imposto destinado a financiar o orçamento público, e não deve ser confundido com taxa.

A lei 10.257 de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade e que já tem quase 15 anos de vigência, regulamentou o artigos 182 e 183 da Constituição. Os governos municipais ainda não se serviram de forma adequada desse instrumento. Se o fizessem, serviços básicos que pagamos com nossos impostos teriam melhor qualidade. Por certo, não estaríamos em pleno século 21 e às vésperas de uma Olimpíada preocupados em eliminar mosquitos ou submetidos ao vexame mundial de ter imagens de nossas maiores cidades levadas ao mundo como se este país fosse o esgoto do mundo!

Para que possamos ter uma imagem do alcance da lei 10.257, vamos transcrever apenas alguns trechos dos seus artigos 1º e 2º:

“Artigo 1º. Na execução da política urbana, de que tratam os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta lei.

Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Artigo 2º. o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I — garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II — gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

IV — planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V — oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

VI — ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;

b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana;

d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como polos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente;

e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;

f) a deterioração das áreas urbanizadas;

g) a poluição e a degradação ambiental;

h) a exposição da população a riscos de desastres (Incluído dada pela Lei 12.608, de 2012);

X — adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;

XI — recuperação dos investimentos do poder público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos;

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

XIII — audiência do poder público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;

XIV — regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;

XV — simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;

XVII — estímulo à utilização, nos parcelamentos do solo e nas edificações urbanas, de sistemas operacionais, padrões construtivos e aportes tecnológicos que objetivem a redução de impactos ambientais e a economia de recursos naturais (Incluído pela Lei 12.836, de 2013);

XVIII — tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura de energia, telecomunicações, abastecimento de água e saneamento (Incluído pela Lei nº 13.116, de 2015)”.

Em nossa coluna de 1º de dezembro de 2014 (O IPTU é um imposto mal interpretado), tivemos a oportunidade de fazer outras considerações sobre a base de cálculo e os reajustes pretendidos pela Prefeitura de São Paulo, questão que chegou a ser examinada pelo Tribunal de Justiça.

Sustentamos à ocasião que as questões tributárias devem ser tratadas de forma técnica, sem contornos ideológicos. A forma do tratamento resulta de escolha pessoal. Sempre dei preferência ao uso de linguagem clara, sem o recurso de linguagem acadêmica. Nosso público é composto em boa parte por juristas, advogados e estudiosos do assunto. Mas a pessoa do povo, o jovem estudante, o pequeno comerciante, também merece conhecer um pouco melhor sobre aquilo que pode lhe atingir. 

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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