Segunda Leitura

A visão de um brasileiro sobre o ensino jurídico americano

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10 de janeiro de 2016, 7h00

As faculdades de Direito estão em crise: as matrículas no curso despencam, o percentual de aprovação nos exames de Ordem está em declínio, e a taxa de emprego para recém-formados é baixíssima. Os estudantes deixam a faculdade com um diploma que eles não usam e com uma dívida que não conseguem pagar. Essa é a constatação de reportagem da Bloomberg Business, publicada em 2015, ao analisar o sistema de ensino jurídico dos Estados Unidos[1].

No Brasil, sempre se diz que o ensino jurídico está em crise, o que talvez seja um dos poucos pontos em comum com o ensino que se pratica acima da linha do Equador. A cada ano, são formados milhares de bacharéis. Isso somente é possível porque o Brasil tem faculdades de Direito em excesso. Segundo dados do estudo Exame de Ordem em Números, feito pela OAB em parceria com a FGV-Projetos, em 2012 existiam 1.158 faculdades de Direito no país, com 737 mil alunos matriculados[2]. Apenas 17,5% dos bacharéis conseguiram obter aprovação no Exame de Ordem nos últimos anos, o que significa que milhões de recém-formados contam com um diploma, mas sem habilitação para atuar no sistema de Justiça.

Existe estreita relação entre a forma como funciona o sistema de Justiça e como são preparados seus atores nas faculdades de Direito. É certo que para a magistratura, por exemplo, exige-se que o juiz submeta-se a curso de formação inicial. Os quatro meses de curso, porém, não são suficientes para corrigir os cinco anos de faculdade, especialmente se a formação inicial apenas repete os defeitos e impropriedades dos anos de graduação.

Apesar da mencionada crise, uma mirada nas faculdades de Direito dos Estados Unidos é interessante para tomar conhecimento sobre como o ensino jurídico desenvolve-se em outro país. Pode-se dizer que é um ensino de qualidade. Das dez melhores faculdades de Direito do mundo, seis são americanas, três são inglesas, e uma, australiana, o que mostra que o common law está em alta[3].

A perspectiva comparada que se vai utilizar terá caráter contrastivo, buscando as diferenças, e não as possíveis semelhanças entre os sistemas de ensino, para perceber, dentro de suas especificidades, as equivalências. Infelizmente, poucas são as afinidades. Os brasileiros sempre preferiram a colonização jurídica europeia, e a Itália tem se revelado a maior fonte de inspiração. Apesar de o Tribunal Europeu de Direitos Humanos reconhecer repetidamente a histórica disfuncionalidade da Justiça italiana, sempre tivemos o país de Da Vinci e Berlusconi como referência. Aqui e lá se encontram muitos pontos de contato e o mais recente caso — a extradição de Henrique Pizzolato — em que o Tribunal de Apelação de Bologna indeferiu o pedido, a Corte de Cassação deferiu, o Conselho de Estado indeferiu e, por último, foi concedida a extradição, o que demonstra quão similares são os sistemas, em termos de estabilidade e previsibilidade.

Mas deixemos os italianos. A maior parte das faculdades americanas de Direito são privadas, embora também existam as públicas. Das primeiras, citam-se Harvard, Stanford, Yale; do segundo grupo, Berkeley, Michigan e Virginia. Quer seja pública ou privada, todas são pagas. Não existe a anomalia de estudantes economicamente privilegiados não desembolsarem um tostão pelo ensino, como ocorre na universidade pública nacional.

O curso de Direito é uma pós-graduação. Os alunos se formam antes no college, em áreas como filosofia, ciência política e economia, e depois iniciam os três anos de Direito. Por essa razão, a idade média dos alunos é de 25 anos, ao passo que no Brasil encontramos garotos(as) de 18 anos nos bancos da faculdade. O curso não é nada barato, porque a tuition (anuidade escolar) gira em torno de US$ 50 mil. Com uma dívida de cerca de US$ 150 mil ao final do curso e considerando nosso combalido real, pode-se dizer que o universitário dos Estados Unidos gasta aproximadamente dez vezes mais para se graduar do que o estudante particular no Brasil.

Questão que está sendo intensamente debatida nos Estados Unidos diz respeito ao débito estudantil, que gira em torno de US$ 1,2 trilhão entre subsídios e empréstimos apoiados pelo governo. Há muitos exageros nos gastos, mas em regra os universitários gozam de estrutura física invejável, contam com bibliotecas alexandrinas e dispõem de professores regiamente pagos. A média salarial dos professores de Direito com estabilidade é de US$ 143.509[4]. No Brasil, o professor de universidade federal, com doutorado e dedicação exclusiva, ganha menos de US$ 40 mil dólares ao ano. Professor americano, além de dar aula e publicar — quem não publica não sobrevive —, tem que arrumar fundos para pesquisa. Como a universidade está inserida no mundo real, a sociedade e órgãos públicos costumam financiá-la para que produza algo que lhes gere benefício. Além disso, o compromisso dos professores é notável. No período em que estive em Michigan, nunca vi, nas dezenas de aulas e palestras a que assisti, nenhum professor chegar na sala de aula depois do horário inicial ou terminá-la antes do tempo. Por mais compromissos que eles tivessem, por mais sensacionais que fossem, por mais publicações que lançassem, havia respeito muito grande com as pessoas que os aguardavam em sala. E isso tinha um singelo objetivo: eles utilizavam todo o tempo para cumprir o programa do curso.

No primeiro ano, tomando como referência a Universidade de Michigan, há matérias obrigatórias (penal, processo civil, contratos, prática jurídica I e II, habilidades em prática jurídica, propriedade, legislação e regulação e torts). São nove disciplinas obrigatórias, mas depois há mais de 130 para serem escolhidas, como computer crimes, European Union law e sports law. O aluno que quiser dar enfoque à área criminal matricula-se em Direito Penal e, posteriormente, em Processo Penal, sem a obrigação brasileira de assistir às aulas de Direito Civil de I a IX, à moda Star Wars. A liberdade que os alunos possuem em escolher a maior parte de seu currículo — prerrogativa que lhes é oferecida desde o ensino básico — contrasta com a superlativa carga de matérias obrigatórias nas faculdades nacionais. Enquanto nos Estados Unidos parece haver tendência de se conhecer cada vez mais de cada vez menos, aqui se ensina de tudo um pouco. Como o ser humano somente assimila aquilo que lhe tem utilidade e de que gosta, pouquíssimo do muito que se ensina é realmente apreendido. Com poucas disciplinas obrigatórias, é mais difícil estabelecer monopólios de ineficiência como ocorre no Brasil. Em tese, nenhum professor de faculdade federal ou particular menos exigente precisa ter preocupação de atualizar-se, de comparecer às aulas, de se interessar com o aprendizado dos alunos. As salas estarão sempre cheias, pois a disciplina é obrigatória. Se a obrigatoriedade restringisse-se a poucas cadeiras, haveria salas mais vazias, porque a disciplina não tem utilidade imediata, as aulas são ultrapassadas, ou porque a frequência do professor é baixa. Isso talvez incomodasse o docente e provocasse mudanças… Ou não… Porque, quando se fala de serviço público, praticamente não há nenhum critério de cobrança e exigência.

O pensamento dominante nas faculdades americanas é o de que se deve fornecer as ferramentas básicas e, com elas, desenvolver competências: redação, negociação, capacidade empreendedora, análise de dados, interpretação, liderança, comunicação. Por isso, não há quatro semestres de Direito Penal, em que se discorre dos artigos 1º ao 359 do código. Basta ensinar a estrutura do crime e como se analisa o tipo penal, pois, de posse do instrumental básico, todos os delitos podem ser compreendidos. Prefere-se desenvolver habilidades e formar pensadores estratégicos, negociadores competentes, solucionadores de problemas, líderes, a enchê-los de conteúdo que, muitas vezes, não será utilizado ao longo da vida.

Como o aprendizado tem que ser experimental e prático, valem-se de clínicas jurídicas, que conciliam atendimento jurídico, ensino e pesquisa. As clínicas são meio de preparação de estudantes para a vida profissional e substituem os estágios como via de aquisição de experiência forense. A atuação nas clínicas gera créditos para o estudante tal como as demais disciplinas da grade curricular. O aluno pode exercer atividade forense como se advogado fosse e, contrariamente ao Brasil, não necessita de intervenção/acompanhamento pelos professores para postular em juízo.

Professores geralmente conduzem os debates em sala de aula com base em casos jurídicos compilados em casebooks para cada curso. Constatação interessante foi a de que os livros são feitos como as aulas são dadas. Os manuais usados pelos professores contêm problemas, casos reais, para somente em seguida trazer aspectos doutrinários. Assim, primeiramente apresenta-se o problema e se trabalha em sala para resolvê-lo. Ao final, o livro explica quais são os fundamentos da solução do problema. No Brasil, ocorre o inverso, porque ensinam os fundamentos do problema, mas muitas vezes se esquecem de apresentar o próprio problema. Os alunos decoram todos os fundamentos — o que é teoria extremada do dolo, culpabilidade normativa, actio libera in causa —, mas não se costuma a problematizar questões para treinar a aplicação da teoria. Quando isso ocorre, recorre-se a problemas caricatos, tal como para explicar o erro de tipo na situação em que o caçador dispara contra um homem pensando tratar-se de um urso, embora esse animal não pertença à fauna brasileira nem a caça seja esporte amplamente disseminado por aqui.

Tradicionalmente, em substituição às aulas expositivas, muitos professores usam o método socrático, em que convoca um estudante aleatoriamente e lhe pergunta sobre os fundamentos fáticos e jurídicos de caso previamente indicado. A carga de leitura diária é imensa, e a preparação para a aula socrática, uma exigência moral. Pode-se selecionar um argumento e pedir ao estudante para dizer se concorda ou não com ele, para, em seguida, valendo-se de uma série de perguntas, expor as falhas lógicas no argumento do aluno.

As provas normalmente estruturam-se para que o aluno interprete os fatos de determinado caso hipotético, a fim de definir como se aplicam a teoria, as normas e os precedentes. Esse processo destina-se a treinar os alunos nos métodos necessários para desenvolver as habilidades exigidas pelo mercado profissional. Com esse mesmo objetivo, o recurso a mock trials (julgamentos simulados) é amplamente difundido nas faculdades americanas.

O sistema de atribuição de notas estimula a concorrência. Como os grandes escritórios de advocacia selecionam os novos integrantes entre os alunos com melhor desempenho, a maioria das faculdades utiliza sistema de avaliação em curva. O professor pontua o exame de cada aluno em comparação com os demais, adicionando ou subtraindo pontos da avaliação inicial a fim de que se enquadrem na curva prevista. Por exemplo, apenas de 0 a 3% dos alunos obterão A+, de 3% a 7% alcançarão A, e assim por diante. A avaliação por curva contribui para a atmosfera competitiva nas faculdades. É a mesma competitividade existente entre as próprias faculdades, que promovem roadshow para se apresentarem aos alunos e oferecem bolsas, como forma de atrair os melhores.

Diferentemente do Brasil, a dedicação ao curso é integral. Estágios, apenas os de verão. Para resolver o problema da elevada exigência que recai sobre os ombros dos alunos, as faculdades fornecem tratamento psicológico. No período de exames finais, funciona um consultório de psicologia para auxiliar os estudantes a superar a pesadíssima carga de estudo. Em nosso país, os estágios têm angariado mais importância do que o próprio curso de Direito, talvez porque os alunos procurem algo que não encontram no curto espaço diário de tempo em que permanecem na faculdade.

Nos primeiros anos após a formatura, alguns estudantes costumam trabalhar como assistentes de juízes (law clerk), posição que geralmente é ocupada pelos alunos com melhores notas. Na Suprema Corte, os recém-formados são escolhidos de faculdades de elite. O cargo é muito prestigiado e, em consequência, não é difícil para eles vincular-se posteriormente a escritórios de advocacia com elevada remuneração, ocupar posições altamente seletivas no governo ou tornar-se acadêmicos em renomadas faculdades. No Brasil, juízes e desembargadores exercem o papel de law clerks nos tribunais superiores (artigo 3º, III, da Lei 8.038/90).

Algo relevante que merece ser dito refere-se aos ex-alunos. Toda faculdade tem uma organização de ex-alunos. Eles são responsáveis por milhões de dólares em doações anualmente, mesmo tendo pago por sua educação. Recentemente, a Northwestern University School of Law recebeu doação, sem precedentes, da família Pritzker, no valor de US$ 100 milhões. A faculdade de 156 anos passou a chamar-se Northwestern Pritzker School of Law. Tem-se a impressão de que não se rompe o vínculo com a faculdade, o que é demonstrado nas cerimônias de formatura, em que os professores participantes ostentam a beca de sua faculdade de origem (alma mater). Durante o curso, muitas faculdades oferecem serviço de encaminhamento de alunos, que os prepara para entrevistas, elaboração de currículo, em suma, para arrumar emprego. Para a instituição de ensino é importante mostrar quantos alunos conseguiram colocação no mercado e ocupam importantes cargos, como forma de atrair novos estudantes. Na maior parte das faculdades brasileiras, entrega-se o diploma e se diz: vá com Deus! O estudante pode até ir com Deus, mas o certo seria que fosse com o auxílio da faculdade e mantendo vínculo com ela. Afinal, recebeu formação educacional que provavelmente será utilizada pelo resto da vida.

A despeito da crise por que passa o curso de Direito nos Estados Unidos, é um bom exemplo a ser conhecido. Longe de ser conteudista, generalista, teórico e dissociado da realidade, volta-se ao estímulo do raciocínio para resolver problemas reais, a atender temas específicos e ligado ao contexto social. A maior ênfase na formação está na prática em vez do acadêmico; no aplicado em vez do teórico; e em habilidades no lugar de conhecimento ou informação. Adotam outras técnicas de aprendizado ativo, como as simulações, e permitem que o aluno veja utilidade imediata profissional no aprendizado. Em suma, tanto lá como aqui, a forma como se ensina o Direito traz reflexos diretos na forma como se pratica o Direito.

*Agradeço a Ronaldo Ishikawa por aperfeiçoar essas linhas.
*O colunista Vladimir Passos de Freitas está de férias.

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