Responsabilidade Fiscal

"Atrasar pagamento a advogados foi
a única alternativa da Defensoria"

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9 de janeiro de 2016, 5h44

Spacca
Prevista na Constituição Federal de 1988, a Defensoria Pública só foi instituída em São Paulo 18 anos depois, por meio da Lei Complementar 988/2006. Neste sábado, 9 de janeiro de 2016, o órgão completa dez anos de atuação.

A entidade comemora o aniversário em meio à polêmica disputa por verbas com a Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo. Em entrevista à ConJur, o defensor público-geral de São Paulo, Rafael Valle Vernaschi, fala sobre o atraso no pagamento dos advogados dativos, que deveriam ter recebido certidões de honorários entre novembro e dezembro de 2015 e os valores só foram pagos no início de janeiro de 2016.

Atualmente, a Defensoria conta com 719 defensores públicos em exercício no estado. Mas Vernaschi aponta que, para suprir toda a demanda pela qual o órgão é responsável constitucionalmente, seriam necessários 2,5 mil profissionais.

O artigo 2º da Constituição aponta que “a Defensoria Pública do Estado é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e tem por finalidade a tutela jurídica integral e gratuita, individual e coletiva, judicial e extrajudicial, dos necessitados”.  A definição de “necessitados” tem sido outro foco de debates envolvendo o órgão.

A maior missão da Defensoria Pública é garantir assistência jurídica integral, afirma Vernaschi, inclui a defesa de direitos difusos, “cuja violação em geral afeta de forma mais perversa a população mais vulnerável e que depende da Defensoria Pública”. Por isso, diz ele, ações civis públicas são um instrumento indispensável para defesa efetiva de direitos fundamentais de grupos sociais historicamente marginalizados que buscam a instituição.

O defensor público-geral de São Paulo falou ainda sobre as dificuldades enfrentadas pelo órgão, a necessidade de os defensores manterem inscrição na OAB.

Lei a entrevista:

ConJur — Quantos defensores públicos há atualmente em São Paulo? Qual seria o número ideal?
Rafael Valle Vernaschi
Atualmente há 719 defensores públicos em exercício no estado. Há ainda mais 181 cargos previstos em lei (totalizando 900). No ano passado, tivemos que prorrogar a realização de concurso público por falta de recursos aprovados em lei. Estamos agora organizando concurso para o preenchimento de 60 vagas. O número necessário estimado, contudo, para garantir a presença da instituição em todas as comarcas em número proporcional à demanda, conforme previsto na Constituição Federal, é de aproximadamente 2,5 mil defensores públicos.

ConJur —  Conforme a Emenda Constitucional 80/2014, do estado de São Paulo, a Defensoria tem de estar presente onde há juiz e promotor, isso tem ocorrido?
Rafael Valle Vernaschi
Desde a Lei Complementar Estadual 1.189/2012, que criou 400 cargos de defensor público, a instituição tem expandido sua presença em novas comarcas e ampliando o atendimento onde já está presente. Hoje, existem 65 unidades em 43 cidades do estado, além de atuação processual em outras comarcas próximas nas áreas de execução penal e de medidas socioeducativas. A expectativa é utilizar os cargos restantes para continuar a expansão de modo sustentável, mas o cumprimento do prazo constitucional de oito anos para garantir a presença da Defensoria Pública em todas as comarcas, com número de defensores proporcional a demanda, dependerá da criação de mais cargos no futuro.

ConJur —  Se a Defensoria Pública não está presente em todas as comarcas, o que fazer para garantir a assistência judicial aos necessitados?
Rafael Valle Vernaschi
O fundamental é garantir a expansão sustentada da Defensoria Pública, de modo a viabilizar a presença da instituição em todas as comarcas dentro do prazo constitucional. Até lá, nas localidades em que a Defensoria Pública não estiver presente, a instituição se vale de convênios com outros órgãos para prestar assistência judicial suplementar à população necessitada, como a Ordem dos Advogados do Brasil, instituições de ensino e outras entidades com atuação local.

ConJur —  Quando tomou posse em abril de 2014, o senhor falou sobre melhora nas condições de trabalho. Acha que alcançou este objetivo? 
Rafael Valle Vernaschi
A atual gestão tem envidado esforços para garantir a máxima estruturação em todas as suas unidades, atendendo tanto aos objetivos de assegurar adequadas condições de trabalho como o conforto e a qualidade de atendimento aos usuários da instituição. Para isso, acreditamos que o melhor caminho é viabilizar a construção coletiva e democrática da instituição e aproximar os gestores das realidades locais dos defensores públicos, o que nos motivou a colocar em prática novos mecanismos de participação, como reuniões periódicas entre administração superior e todos os Coordenadores do Estado, visitas presenciais a todas as unidades e a criação de novos canais de comunicação internos. Esses momentos mostraram-se importantes para discutir desafios coletivamente, identificar problemas recorrentes e alternativas e difundir experiências exitosas.

Entre as medidas concretas tomadas, foi iniciado um programa de manutenção predial preventiva e de climatização das unidades. Também está em fase de implementação um projeto piloto que reformula a sistemática de atendimento inicial para, além de melhorar o acolhimento aos usuários, evitar a extrapolação de horários e a sobrecarga de trabalho para servidores, defensores públicos e estagiários. Além disso, foram firmadas novas parcerias e convênios técnicos para facilitar e qualificar o atendimento, foram elaborados manuais sobre procedimentos internos recorrentes e construído um amplo planejamento estratégico de gestão. Outras medidas, como a atualização dos equipamentos de informática e a digitalização de procedimentos, também têm contribuído para garantir mais qualidade de trabalho.

ConJur —   As prerrogativas do defensor têm sido respeitadas? 
Rafael Valle Vernaschi
A Defensoria Pública é hoje uma instituição consolidada no sistema de Justiça e a violação de prerrogativas de defensores públicos é a exceção, não a regra. A Defensoria Pública-Geral atua de maneira preventiva, buscando diálogo com outros órgãos e instituições a fim de evitar violações. Nos casos pontuais em que defensores públicos sofrem algum tipo de constrangimento em função de sua atuação, a Defensoria Pública-Geral intervém para garantir a autonomia e as prerrogativas dos Defensores Públicos. De modo geral, percebemos um maior desconhecimento das prerrogativas dos defensores públicos nos locais em que a instituição ainda está iniciando sua atuação.

ConJur —   A instituição tem autonomia e os defensores têm independência funcional, como prevê a Constituição?
Rafael Valle Vernaschi
A independência funcional dos defensores públicos é condição inegociável para a atuação efetiva da instituição na defesa de direitos e promoção da justiça, não havendo qualquer tipo de constrangimento institucional aos defensores públicos em sua atividade fim.

A autonomia institucional da Defensoria Pública também tem sido reconhecida e reforçada pelos diversos poderes e instituições, reiterada por emendas à Constituição e por julgados do Supremo Tribunal Federal. Como instituição autônoma, a Defensoria Pública tem legalmente garantidas a autonomia administrativa, financeira e a iniciativa para apresentar projetos de lei que versem sobre sua estrutura interna.  A autonomia da Defensoria Pública é indispensável para que a instituição cumpra sua missão constitucional, assegurando que os destinatários do serviço tenham a garantia de que suas demandas terão análise qualificada e isenta diante de qualquer cenário político e econômico.

ConJur — Defensores públicos devem manter inscrição junto à Ordem dos Advogados do Brasil?
Rafael Valle Vernaschi
A atuação da Ordem dos Advogados do Brasil é de grande relevância para o país e o Estado Democrático de Direito, bem como o trabalho de muitos advogados na defesa de direitos fundamentais. Em que pese isso, entendemos que não deve haver vinculação de defensores públicos à OAB, uma vez que suas funções e objetivos são diferentes.

 A tentativa de impor a obrigatoriedade de vinculação é inconstitucional na medida em que agride a autonomia conferida à Defensoria Pública na Carta Magna. A autonomia garantida à Defensoria Pública não se destina apenas a mitigar eventuais ingerências do Poder Executivo, mas também eventuais ingerências decorrentes de remanescentes vínculos com instituições privadas, ainda que exerçam importante função, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil. Nesse sentido, a EC 80/2014, reiterou o modelo público de assistência jurídica, separando em seções distintas a advocacia e a Defensoria Pública, bem como aplicando à Defensoria Pública regime jurídico equivalente ao da magistratura e do Ministério Público.

Assim, como prestadora de serviço público essencial, os defensores públicos, já submetidos a controle correcional, não estão e nem podem estar no universo de pessoas sujeitas à fiscalização e atuação da Ordem dos Advogados do Brasil, assim como magistrados e promotores de Justiça não estão. Ademais, como expresso na Lei Complementar 132/2009, a capacidade postulatória do Defensor Público depende exclusivamente da aprovação no concurso público e posse no cargo, sendo inclusive impedido de exercer a advocacia.

ConJur —  O que acha da atuação dos advogados dativos da OAB?
Rafael Valle Vernaschi
A Defensoria Pública representa o modelo público de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados consagrado na Constituição Federal de 1988 e consolidado por emendas constitucionais e decisões do STF. Ou seja, o atendimento jurídico à população carente deve ser feito pela Defensoria Pública, instituição autônoma e formada por membros com dedicação exclusiva, selecionados após rigoroso concurso público, cabendo a ela gerir toda a política pública de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, ainda que mediante a realização de convênios suplementares. Em São Paulo, como a Defensoria Pública é ainda uma instituição recente e não dispõe de um número suficiente de profissionais, os advogados inscritos no convênio com a OAB, assim como outras entidades parceiras (como instituições de ensino), atuam de forma suplementar, sendo remunerados pela Defensoria Pública. Assim, a parceria é importante para garantir que a assistência jurídica seja prestada em todo o estado, embora a ampliação do modelo público seja o ideal.

ConJur — Como está o entendimento entre a Defensoria e a OAB?
Rafael Valle Vernaschi
Com a piora do cenário econômico e dificuldades de arrecadação, a despeito das inúmeras medidas de contingenciamento e corte de gastos feitos pela Defensoria Pública, a instituição foi obrigada a utilizar suas reservas para manter seus compromissos durante o ano, inclusive o convênio com a OAB, e, com a ausência completa de recursos no final do ano, prorrogou o pagamento de certidões de honorários de advogados conveniados previstas para novembro e dezembro de 2015. Essa era a única alternativa considerando-se as obrigações legais existentes na Lei de Responsabilidade Fiscal. Os valores foram pagos no início de janeiro, mas as dificuldades financeiras continuam e a situação gerou atritos com a direção atual da seção paulista da OAB-SP, ainda que esta tenha sido informada previamente sobre a necessidade de prorrogação dos pagamentos e acerca da situação financeira da Defensoria Pública, debatida em inúmeras reuniões realizadas.

Infelizmente, a atual direção da OAB-SP, em vez de somar forças para a valorização da assistência jurídica à população carente em um momento de grave crise, se manifestou contrariamente ao modelo público constitucional e pressiona o governo do estado a retirar recursos públicos da Defensoria Pública, o que contaria a Constituição e a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal a respeito do tema. Vamos buscar o diálogo para encontrar uma saída favorável a todos, mas defendendo sempre o modelo público e evitando o sucateamento da Defensoria. Para isso, temos nos empenhado em tratativas com o governo para recebermos a suplementação orçamentária e regularizarmos a situação. O ideal seria que a Defensoria Pública e a advocacia unissem esforços na busca por mais investimento na assistência jurídica gratuita à população, mantendo uma relação madura e respeitosa, com o reconhecimento do espaço e da importância uma da outra, além de disposição para o diálogo e para o estabelecimento de parcerias.

ConJur — Quais são as principais dificuldades da Defensoria?
Rafael Valle Vernaschi
A Defensoria Pública paulista cresceu significativamente nos últimos dez anos, ampliou seus serviços e se consolidou no cenário jurídico do país. Porém, ainda hoje suas maiores dificuldades são o número insuficiente de defensores públicos e a necessidade de mais investimento, considerando os poucos recursos de que dispõe se comparada a outras instituições do sistema de Justiça.
A Defensoria Pública é quase totalmente dependente do Fundo de Assistência Judiciária (FAJ), cuja arrecadação é vulnerável à variação da atividade econômica. Desde a criação da Defensoria Pública em São Paulo, aproximadamente 90% dos recursos são oriundos do FAJ e os 10% restantes vêm do Tesouro. A difícil conjuntura econômica atualmente atinge a Defensoria Pública de duas formas: por um lado, reduz suas receitas e, por outro, aumenta a demanda pelos serviços da instituição e assim diversos gastos decorrentes. Do lado da demanda, existe uma relação direta entre a procura pela Defensoria Pública e a taxa de desemprego.  Do lado da receita, a instituição teve nos últimos dois anos menos recursos do que o previsto nas leis orçamentárias: R$ 9,5 milhões a menos em 2014 e R$ 53,5 milhões a menos em 2015.

ConJur —     Os servidores estão sendo bonificados por resultados?
Rafael Valle Vernaschi
A fim de avançar na valorização dos servidores e na eficácia administrativa, a bonificação por resultados foi implementada em 2014, recompensando o quadro de apoio da instituição pelo alcance de metas previamente estabelecidas.

ConJur —  Como está a Divisão de Apoio ao Atendimento do Preso Provisório?
Rafael Valle Vernaschi
Criada para coordenar a nova política de atendimento aos presos provisórios, a Divisão de Apoio ao Atendimento do Preso Provisório da Defensoria Pública de SP visitou todos os centros de detenção provisória do estado nas localidades em que há Defensoria Pública para preparar o atendimento. O trabalho apenas foi possível devido à parceria de atuação com a Secretaria de Administração Penitenciária, que somou esforços para garantir sala adequada de para os defensores públicos realizarem suas atividades. As visitas resultaram em um incremento da efetividade da defesa processual, permitindo a adoção de medidas judiciais em menor espaço de tempo e liberando muitas pessoas que não deveriam estar presas. Além de qualificar a defesa técnica, os atendimentos ainda têm a finalidade de identificar e inibir violações de direitos.

ConJur — Qual é a missão da Defensoria: garantir os direitos e o acesso à Justiça dos pobres, ou defender direitos difusos?
Rafael Valle Vernaschi
A maior missão da Defensoria Pública é garantir assistência jurídica integral, e isso envolve atuação jurisdicional, métodos extrajudiciais para solução de conflitos, educação em direitos e a tutela coletiva de direitos, incluindo a defesa de direitos difusos, cuja violação em geral afeta de forma mais perversa a população mais vulnerável e que depende da Defensoria Pública.

ConJur —  Cabe à Defensoria propor ação civil pública? 
Rafael Valle Vernaschi A Defensoria Pública não só detém legitimidade para propor ações civis públicas, conforme já se manifestou unanimemente o Supremo Tribunal Federal, como esse é um instrumento indispensável para defesa efetiva de direitos fundamentais de grupos sociais historicamente marginalizados que buscam a instituição. A ACP permite tutelar direitos da população necessitada de forma mais eficaz, substituindo centenas de ações individuais por uma única ação coletiva, bem como responde à demanda social pela ampliação dos instrumentos de acesso à Justiça.

ConJur —  Os defensores foram preparados para a entrada do novo Código de Processo Civil? Qual impacto terá na rotina de trabalho?
Rafael Valle Vernaschi
De maio a outubro de 2015, a Escola da Defensoria Pública realizou um Ciclo de Encontros sobre o novo CPC, com cerca de 20 palestras, também transmitidas por videoconferência a todas as unidades da Defensora Pública, que contaram com debates a exposição de renomados especialistas sobre os mais diversos aspectos do novo código para preparar a atuação dos Defensores Públicos.

A nova legislação traz mudanças significativas à atuação da Defensoria Pública. A instituição, inclusive, recebeu um título exclusivo (Título VII), segundo o qual a Defensoria Pública exercerá a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, em todos os graus, de forma integral e gratuita (artigo 185). Outro ponto importante é que nos casos de ações possessórias e conflitos fundiários, como as reintegrações de posse, sempre que houver pessoas hipossuficientes envolvidas, a Defensoria Pública deverá ser intimada dos atos processuais. De modo geral, as mudanças vão ao encontro do perfil transformador da Defensoria Pública traçado na Constituição Federal e podem impulsionar nossa atuação na tutela das liberdades públicas fundamentais e dos direitos sociais, tornando a instituição cada vez mais vocacionada à superação de todas as formas de desigualdade e comprometida com o projeto democrático de distribuição mais justa de bens e direitos. 

ConJur — Em quantos processos a Defensoria atuou nos últimos anos?
Rafael Valle Vernaschi
Em 2014, a Defensoria Pública fez mais de 1,6 milhão de atendimentos e audiências. Já em 2015, no levantamento parcial de janeiro a novembro, foram 1,55 milhão de atendimentos, e certamente ultrapassaremos o número de 2014. Além disso, no mesmo período, cerca de 13 mil casos foram enviados para as equipes dos Centros de Atendimento Multidisciplinar da instituição (presentes em todas as unidades com pelo menos um psicólogo e um assistente social) e geraram mais de 50 mil intervenções técnicas (atendimentos psicossociais, conciliação/mediação, contato com a rede, contato com familiares, etc.).

ConJur —   Quais são as áreas de maior atuação da Defensoria?
Rafael Valle Vernaschi
Cerca 55% dos atendimentos são na área civil, foram mais de 900 mil em 2014, por exemplo. Cerca de 230 mil foram na área criminal (incluindo execução), em 2014 — cerca de 14%.

A área de família é muito demandada, com muitos casos de divórcio, guarda de filhos e pensão alimentícia. Além disso, os núcleos especializados realizam um importante trabalho em áreas como o direito do consumidor, promoção dos direitos da mulher, combate à discriminação, atendimento à população de rua, habitação, infância e juventude, direitos do idoso, defesa das pessoas com deficiência, entre outras.

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