Opinião

MP 700/2015 alterou diversos pontos da lei de desapropriação

Autor

  • Luiz Sergio Fernandes de Souza

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC/SP e coordenador da área de Filosofia do Direito na Escola Paulista de Magistratura.

8 de janeiro de 2016, 7h42

A Medida Provisória 700, de 8 de dezembro de 2015, alterou diversos dispositivos do DL 3.365/41 (além de normas correlatas), trazendo inovações que têm importantes repercussões na utilização de instrumentos de política urbana.

A Medida Provisória, tratando da regra do artigo 2º, parágrafo 2º, do DL 3.365/41, suprimiu a expressão “território”, na especificação dos bens que podem ser desapropriados pela União mediante expressa autorização legal, diante da atual configuração federativa brasileira (artigos 14 e 15 do ADCT). O parágrafo 2º-A, ao regular a possibilidade de acordo entre os entes federativos, ajuste que dispensa a autorização mencionada no parágrafo 2º, dá a entender, considerada a referência a este último dispositivo, que, mesmo assim, bens da administração direta só podem ser desapropriados por entidade federativa hierarquicamente superior. Trata-se de interpretação razoável, pois bastará o acordo para alcançar o objetivo de desburocratização, a que visa a disposição do artigo 2º, parágrafo 2º-A, segundo Exposição de Motivos.

A MP 700/15, dispondo sobre o artigo 3º do DL 3.365/41, ampliou o espectro de entes com legitimidade para desapropriar, nele incluindo, na dependência de expressa autorização de lei ou de contrato (passível de registro público — artigo 221, VI, da LF 6.015/73, combinado com o artigo 2º da MP 700/15), permissionários, “autorizatários”, arrendatários, entidades públicas e o contratado para execução de serviços mediante contratação integrada, empreitada por preço global e empreitada integral. Cabe frisar que a inovação não contemplou os consórcios públicos. Surge, então, a dúvida acerca do fato de a Medida Provisória haver revogado a norma do artigo 2º, parágrafo 1º, II, da LF 11.107/05, pois tratou integralmente da matéria.

O artigo 4º do DL 3.365/41, dentre todos, foi o que passou por maiores mudanças, a começar pela divisão em dois dispositivos, que têm o mesmo número ordinal, o segundo deles acrescido da letra “A”. O caput do artigo 4º não foi alterado, limitando-se a MP 700/15 ao acréscimo de parágrafo único, no qual se diz que, quando a desapropriação promovida pelos entes mencionados no artigo 3º destinar-se a urbanização e reurbanização, parcelamento ou reparcelamento do solo — cujas diretrizes deverão necessariamente encontrar previsão no Plano Diretor, na legislação de uso e ocupação do solo ou na lei municipal específica (artigo 5º, § 7º, do DL 3.365/41) —, o edital de licitação poderá contemplar a utilização imobiliária por parte do contratado, em favor de quem reverterá a respectiva receita, na conformidade de projeto associado a ser desenvolvido por conta e risco do particular, garantindo-se ao poder público, no mínimo, o ressarcimento do que tiver despendido com indenizações.

Veja-se, assim, que não se trata de desapropriação por zona, mas da possibilidade de exploração comercial (inclusive para revenda), objeto de projeto específico, do todo ou de parte da obra a que deu lugar a desapropriação. Embora a norma do artigo 4º, parágrafo único, do DL 3.365/41 valha-se do termo “edital de licitação”, dando a entender, assim, que se cuida de prerrogativa constituída em favor daquele que se sagrou vencedor no certame, acreditamos que a disposição também se aplica a todos que se acham autorizados a promover as medidas de execução do decreto de desapropriação, contanto que o poder público, responsável pela indenização, seja reembolsado. A expressão “no mínimo”, que consta da redação do artigo 4º, parágrafo único, do DL 3.365/41, indica que o poder público também poderá exigir contrapartidas de expressão econômica imediata ou mediata (obrigação de pagar, obrigação de dar, de fazer ou de não fazer).

A MP 700/15, ao tratar da concessão urbanística, toca em um tema delicado, alvo de acendradas discussões, particularmente na Cidade de São Paulo, a partir da inserção deste instrumento de política urbana no Plano Diretor Estratégico. Embora a concessão de uso de bem público seja um instituto bastante conhecido no direito brasileiro, tanto quanto a desapropriação para revenda (artigo 4º da LF 4.132/62), encontrando previsão, ambas, no Estatuto da Cidade (artigo 4º, V, g e h; artigo 8º, § 5º), determinados setores da sociedade alertam para o risco de privatização do espaço público.

O artigo 4º-A, caput, do DL 3.365/41, com as alterações promovidas pela MP 700/15, reportando-se à norma do artigo 47, VII, da LF 11.977/09, passa a dispor que, no caso de imóveis objeto de assentamentos irregularmente e coletivamente ocupados, em sua predominância, por população de baixa renda, de forma mansa e pacífica, há mais de cinco anos, ou de ocupação, irregular e coletiva, de imóveis situados em Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), predominantemente por população de baixa renda, tanto quanto nas hipóteses de ocupação, nestas mesmas circunstâncias, de imóveis da União, Estados, Distrito Federal e Município, declarados de interesse social para implantação de projeto de regularização fundiária, a desapropriação não será feita sem as necessárias medidas compensatórias (aluguel social, inserção dos ocupantes em projeto habitacional, indenização ou compensação econômica outra), com a ressalva, contida no § 1º, de que as ocupações de “áreas vazias”, localizadas em ZEIS, que se destinem à produção habitacional, nos termos do Plano Diretor ou de lei municipal específica, não caracterizam, para efeito de medidas compensatórias, assentamentos sujeitos a regularização fundiária de interesse social.

A exceção aberta pela Medida Provisória, até onde enxergamos, visa a desestimular invasão de áreas já destinadas ao desenvolvimento de projetos habitacionais criados para atender a população de baixa renda, evitando-se, assim, o que aconteceu recentemente em diversos Estados da Federação, quando forças de segurança da União tiveram de intervir para a desocupação de prédios construídos com recursos de programa habitacional. Este seria o sentido, portanto, da expressão “área vazia”, utilizada na regra legal.

O artigo 5º do DL 3.365/41, ao estabelecer as hipóteses de utilidade pública que justificam a desapropriação, ganhou um quarto parágrafo, no qual foi inserida importante alteração: tanto os bens desapropriados com essa finalidade quanto os direitos decorrentes da respectiva imissão na posse (supõe-se, a imissão prévia) poderão ser alienados a terceiros, locados, cedidos, arrendados, outorgados em regime de concessão de direito real de uso, de concessão comum ou de parceria público-privada, e, ainda, “transferidos como integralização de fundos de investimento ou [do capital de] sociedades de propósito específico”. Esta inovação decorre de importantes alterações promovidas pelos artigos 3º e 4º da MP 700/15, que mais adiante passaremos a analisar.

O artigo 5º, parágrafo 5º, do DL 3.365/41 prevê que as medidas objeto do § 4º, acima mencionadas, aplicam-se aos casos de desapropriação para urbanização, reurbanização, parcelamento ou reparcelamento do solo, de que trata a norma do artigo 4º, parágrafo único, do DL 3.365/41, desde que a destinação prevista seja assegurada no respectivo plano. O parágrafo 6º, por sua vez, interfere com a questão do desvio do ato de desapropriação, tanto quanto com o tratamento do direito de retrocessão e do direito de preferência. Não raras vezes, o poder público desapropria áreas em extensão maior que a necessária. Finda a obra, o espaço inservível fica relegado ao mais completo abandono, o que, em tese, caracteriza improbidade administrativa.

Em conformidade com a regra do artigo 5º, parágrafo 6º, do DL 3.365/41 caberá ao poder público, primeiramente, dar outra finalidade à área cuja destinação venha a se tornar prejudicada (por desinteresse ou inviabilidade do projeto). Apenas na hipótese em que malograda se mostre qualquer outra utilização do bem, poderá a administração aliená-lo, respeitado o direito de preferência do desapropriado. Trata-se, na verdade, de regra já inscrita no artigo 519 do Código Civil. Subsiste a vedação do artigo 5º, parágrafo 3º, de forma tal que não se aplica a regra do parágrafo 6º no caso de desapropriação realizada para implantação de parcelamento popular destinado às classes sociais de menor renda.

Tampouco inova a MP 700/15, ao tratar do artigo 7º do DL 3.365/41, acrescentando apenas que não só as autoridades administrativas podem ingressar no imóvel, a partir da declaração de utilidade pública, mas também seus representantes.  De outra forma, a Medida Provisória, nos artigos 3º e 4º, trouxe importante mudança no que concerne à natureza jurídica dos direitos decorrentes da imissão provisória na posse concedida em favor dos entes federados, dos delegados do poder público, e dos direitos decorrentes das respectivas cessões ou promessa de cessão, que passaram à condição de direito real (alterou-se, assim, a regra dos artigos 1.225 e 1.473, ambos do Código Civil, bem como a norma do artigo 22, § 1º, da LF 9.514/97, dispositivo que trata do objeto da alienação fiduciária). Na regra do artigo 26, parágrafo 3º, da Lei Federal 6.766/79, que cuida do parcelamento do solo urbano, não houve propriamente mudança, limitando-se a MP 700/15 a atualizar a referência ao artigo 134, II, do Código Civil de 1.916 (no atual Código, artigo 108).

De acordo com a norma do artigo 26, parágrafo 3º, da Lei Federal 6.766/79, os entes federados e as entidades delegadas poderão outorgar os direitos decorrentes da imissão provisória na posse por instrumento particular, com força de escritura pública (o que afasta a aplicação da norma do artigo 108 do Código Civil, como de resto já havia feito o Estatuto da Cidade, no artigo 48, I), no caso de parcelamentos populares. Operou-se, em decorrência do novo status da imissão provisória na posse, uma série de alterações na Lei de Registros Públicos (6.015/73), não só no que concerne ao registro da aquisição originária resultante da adjudicação do imóvel desapropriado, como também no que diz respeito ao registro do ato de prévia imissão na posse (que passou a ser direito real).

A nova regra do artigo 5º, parágrafo 4º, do DL 3.365/41 — que se aplica, igualmente, aos casos de desapropriação para urbanização, reurbanização, parcelamento ou reparcelamento do solo (§ 5º) —, do artigo 176-B da LF 6.015/73, dos artigos 1.225 e 1.473, ambos do Código Civil, bem como as alterações promovidas nos contratos de alienação fiduciária (artigo 22, parágrafo 1º, IV e V, da LF 9.514/97) e na Lei do Parcelamento do Solo Urbano (artigo 26, parágrafo 3º) deixaram suficientemente claro que o domínio não conta em favor do proprietário do imóvel desapropriado, no caso de prévia imissão do poder público na posse do bem, contraposto que se vê agora o direito de propriedade a um direito real de posse, que pode ser transferido a terceiro, inclusive para o desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social, sob responsabilidade dos órgãos ou entidades da Administração Pública.

Tudo isso confirma a necessidade de se fixar, desde logo, o valor da prévia e justa indenização, a prestigiar o acerto da orientação da corte paulista no que toca à imprescindibilidade do laudo preliminar. A agilização do processo de desapropriação — objetivo da MP 700/15, segundo a Exposição de Motivos — não pode atropelar os direitos consagrados na Constituição da República, anulando atributos do direito de propriedade (usar, gozar e dispor) sem justa compensação antecipada. A aceleração da economia, o estímulo ao investimento dos setores privados nas obras de infraestrutura — também perseguidos pela Medida Provisória —, tampouco se pode fazer com tamanho sacrifício.

A atual regra do artigo 15-A, caput e § 1º, do DL 3.365/41, ao cuidar dos casos de imissão prévia na posse em desapropriação fundada na necessidade ou utilidade pública, tanto quanto no interesse social, objeto das disposições da LF 4.132/62 (editada em cumprimento à regra do artigo 147 da CF/46, consagradora do princípio da função social da propriedade, hoje contemplado na norma dos artigos 5º, XXIII, e 170, III, ambos da CF/88), dispõe no sentido de que, diante de divergência entre o valor da oferta feita em juízo e o valor fixado na sentença, expressos em termos reais, o juiz poderá fixar juros compensatórios de até 12% a.a. sobre o valor da diferença, incidentes desde a imissão na posse, vedada a aplicação de juros compostos (vale dizer, o percentual incidirá sempre sobre o valor singelo da diferença), desde que efetivamente comprovada a existência de dano resultante de lucros cessantes. É preciso analisar esta disposição, entretanto, à luz da norma do artigo 100, parágrafo 12, da Constituição Federal (com a redação da EC 62/09), segundo a qual a fluência dos juros compensatórios cessa com a expedição do requisitório, acrescentando-se que a regra não se estende às estatais nem às concessionárias de serviço público em geral, razão por que subsistem, neste aspecto, as Súmulas 12 e 102, ambas do STF.

Também são devidos juros compensatórios de até 12% ao ano, desde o esbulho ou desde a indevida interferência na propriedade, incidentes sobre o valor da condenação, nas ações de indenização por apossamento administrativo e nas ações de indenização fundadas em restrições decorrentes de atos do poder público, conforme o artigo 15-A, parágrafo 2º, do DL 3.365/41. Parte da doutrina, apesar do que dispõe a Súmula 56 do STJ, discorda da extensão dos juros compensatórios à servidão administrativa, na qual inexiste perda de posse, mas simples interferência no uso e gozo da propriedade. Embora razoável o ponto de vista, não se acredita que a norma esteja se referindo a outras formas de restrição do exercício da propriedade (a que se aplicariam as mesmas objeções doutrinárias), cuja indenização não é objeto da ação judicial prevista no DL 3.365/41, mas sim de ação própria. Por isto, os juros compensatórios incidem sobre a diferença entre a oferta (incluída eventual complementação) e o valor fixado na sentença, descontados os 80% da quantia depositada, se já tiver ocorrido o levantamento.

A regra do artigo 15-A, caput e parágrafo 1º, primeira parte, do DL 3.365/41 não se aplica, entretanto, às hipóteses do artigo 182, parágrafo 4º, III, e 184, ambos da Constituição Federal (conforme disposição expressa do artigo 15-A, § 1º, segunda parte, do DL 3.365/41, com a redação da MP 700/15), modalidades de “desapropriação sancionadora” resultante do descumprimento da função social da propriedade, com o que a MP 700/15 manteve-se fiel ao espírito que orientou a edição da Súmula 618, não aplicável à desapropriação extraordinária.

Diga-se, por derradeiro, que a MP 700/15 praticamente reeditou a norma do artigo 15-A, parágrafo 4º, do DL 3.365/41, cuja eficácia se encontrava suspensa em decorrência de liminar concedida pelo STF (ADI 2.332-DF), assim decidindo a corte constitucional sob fundamento de que a limitação normativa configurava aparente ofensa à garantia da justa indenização, por repercutir no preço do imóvel vendido após a desapropriação indireta ou após a restrição administrativa.

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