Olhar Econômico

Consórcio entre empresas em licitação é lícito e necessário

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

7 de janeiro de 2016, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Consoante o artigo 278 da Lei 6.404/1976, Lei da Sociedades Anônimas, qualquer sociedade pode constituir consórcio, sem personalidade jurídica, para a execução de determinado empreendimento, por meio de contrato, respondendo cada sociedade pelas obrigações assumidas, sem presunção de solidariedade. O que deve constar do contrato foi definido pelo artigo 279 da mesma lei.

Por sua parte, o artigo 33 da Lei das Licitações (Lei 8.666/1993) fixa as condições que empresas consorciadas devem seguir, quando em determinada licitação permitir-se a participação de empresas em consórcio. O inciso V desse artigo determina a “responsabilidade solidária dos integrantes pelos atos praticados em consórcio, tanto na fase de licitação quanto na de execução do contrato”. Essa determinação legal dirigida aos consórcios em licitação é lex specialis, relativamente  ao inciso I do artigo 278 da Lei 6.404/1976,  que consagra a lex generalis, da não presunção de solidariedade. Em outras palavras, como “a lei geral é derrogada pela lei especial”, no caso específico de consórcio para fins de participar de licitação, sempre haverá solidariedade.

Cartel é um “acordo entre concorrentes para, principalmente, fixação de preços ou quotas de produção e divisão de clientes e de mercados de atuação[1]”. As empresas ao invés de concorrerem entre si, passam a coordenar suas ações de forma a obter os maiores lucros possíveis em detrimento dos consumidores.

Tanto a realização de consórcio para fins de participação de licitação, quanto a concertação de cartel pressupõe aproximação e contato entre empresas. Daí não ser nova a suposição de que os consórcios podem contribuir para aumentar o risco de cartelização. Embora Ascarelli[2] e Carvalhosa[3] tenham feito alertas a respeito, depreende-se do pensamento deles não haver determinismo no sentido de que a colaboração econômica leve à redução da concorrência.

A possibilidade de empresas reunirem-se em consórcio aumenta a eficiência da licitação. Empresas que, isoladamente, não conseguiriam atender às exigências editalícias de determinada contratação pública, passariam a ter essa perspectiva, se reunidas em consórcio; todas respondendo solidariamente pela contratação.

O expediente de consórcio vem sendo crescentemente utilizado, mormente no âmbito de serviços de engenharia. Moreira lembra que “há determinadas obras e serviços que exigem tal associação, a fim de minorar os custos para a Administração e possibilitar a escorreita execução do contrato num prazo adequado ao interesse público…”, acrescentando que, mesmo “quando o consórcio se dá entre empresas de um mesmo setor econômico, pode envolver conhecimentos técnicos específicos e não compartilhados…”[4] Daí a importância de duas ordens de preocupações.  A primeira relativa à perquirição dos contornos e da licitude do consórcio em licitações. É a segunda, de uma parte, os cuidados que as empresas consorciadas deverão ter em suas conversações para não incidirem em ilícito econômico; e, de outra, o discernimento que as autoridades administrativas ou judiciais deverão ter na instrução e no julgamento de casos concretos, para distinguir, com justiça, o que foi aproximação devida ao consórcio, de atos ilícitos tendentes à cartelização.

A lei e a doutrina militam no sentido de ser o consórcio em licitação intrinsecamente lícito.

A Lei 8.666/93, que tinha entre seus objetivos, aumentar a competitividade no processo licitatório, bem como a aceitação de empresas consorciadas em licitações, de maneira expressa, em seu art. 33, possibilita que empresas consorciem-se com o intuito de participar em certames licitatórios.

Consoante Martinez a existência de consórcios em licitações tanto poderá incrementar, quanto restringir a concorrência, devendo, cada caso, ser examinado de per si. A restrição à concorrência dar-se-á caso se comprove que, apesar de as empresas terem capacidade plena para competir individualmente, preferiram consorciarem-se[5].

Recorda Sundfeld que a participação de pequenas e médias empresas em procedimentos licitatórios torna-se mais difícil, quanto maior seja o contrato. Isso devido às legítimas exigências do objeto do contrato e à dificuldade de sua execução. Dessa maneira, nas licitações de grandes contratos, geralmente com a administração pública, as pequenas e médias empresas não teriam possibilidade de participar, o que restringiria o certame às grandes empresas, com suficiente porte. Possibilitando-se o consórcio haveria mais competitividade e eficiência licitatória[6].

Em havendo suspeita de acordo de cartel entre empresas partícipes em uma licitação, deve haver rigor com as provas relativas à participação de cada empresa nessa conduta ilícita. Obviamente, a solidariedade, imposta por lei, entre as empresas consorciadas em determinada licitação, não pode servir de base, por mínima que seja, de participação coletiva em cartel. A simples delação, feita em acordo de leniência, de que uma empresa consorciada participou de cartel, sem que existam provas robustas, não é de ser levada em conta. Reuniões e tratativas direcionadas à formação de consórcio não podem ser tidas per se como acordos ilícitos, presumindo-se, indevidamente, efeitos nocivos à concorrência, especialmente quando a natureza do objeto do consórcio pode, por si só, reduzir a concorrência entre os interessados em determinada licitação. É uma questão de segurança jurídica! Mesmo presente indícios robustos, pode ser que nem todas as empresas que se consorciaram para licitar, tenham feito parte de eventual cartelização. Sem prova cabal e na presença de indícios pífios, relativa a uma ou mais empresas, impõe-se o arquivamento do processo administrativo em relação a ela(s); ou, em juízo sumário, sua liberação do processo desde logo. Isso por saber-se que a simples manutenção do processo até o final, nesse caso, originará não somente danos à(s) empresa(s) e à economia nacional, mas também aumento do custo Brasil. Com relação às restantes, há de verificar cuidadosamente as provas e levar em conta, nos casos aplicáveis os princípios in dubio pro reo e favor rei, pois o processo administrativo sancionador guarda semelhança com o direito penal[7]. Obviamente, a mera solidariedade legal de empresas em consórcio não pode ser base para condenar todas por eventual ilícito antieconômico; tanto mais que o consórcio é desprovido de personalidade jurídica. As condutas devem ser individualizadas relativamente a cada empresa e plenamente comprovadas.


[1] SDE. Cartilha de combate aos cartéis, Brasília, SDE, 2009

[2] Ascarelli, Tullio, Le Unione di Imprese, in Rivista del Diritto Commerciale, v. 33, 1935, parte I, p. 152 ss.

[3] Carvalhosa, Modesto, Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, São Paulo, Saraiva, 1988, v. 4º , tomo II, p. 348 ss.

[4] Moreira, Egon Bockmann, Os Consórcios Empresariais e as Licitações Públicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, Instituto de Direito Público, agosto, 2005, Egon Bockmann.doc – Acesso em: 05 de janeiro de 2016.

[5] Martinez, Ana Paula. Repressão a Cartéis: Interface entre Direito Administrativo e Direito Penal, São Paulo: Singular, 2013, p. 50

[6] Sundfeld, Carlos Ari e CÂMARA, Jacintho Arruda. A Responsabilidade Solidária nos Consórcios e o Caso das Concessões, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 15, agosto/setembro/outubro, 2008. Disponível na Internet: http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em: 05 de janeiro de 2016.

[7] Supremo Tribunal Federal. Ação penal o AP 678/MA, Primeira Turma, relator Min. Dias Toffoli, julgado em 18 de novembro de 2014. Acórdão eletrônico DJe-024 DIVULG 04-02-2015 PUBLIC 05-02-2015.

Como “a atuação do CADE é desempenhada por meio de processos administrativos que impõem restrições graves a direitos e liberdades e, portanto, está condicionada não apenas pelos conteúdos mínimos inerentes ao devido processo legal, como também pelos princípios específicos aplicados ao direito sancionador em geral, e ao direito penal em particular”. Barroso, Luis Roberto, Devido Processo Legal e Direito Administrativo Sancionador: algumas notas sobre os limites à atuação da SDE e do CADE. In Rodas, João Grandino (coord.). Direito econômico e social: atualidades e reflexões sobre direito concorrencial, do consumidor, do trabalho e tributário, São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 125.

*Texto atualizado às 10h21 do dia 7/1 para acréscimos.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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