Opinião

Acordos de leniência foram do ineditismo ao ostracismo

Autor

  • Mariana Matos de Oliveira

    é sócia da Oliveira e Leite Advogados; Procuradora do Estado da Bahia; Diretora do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA) e diretora financeira do Instituto Latino Americano de Estudos Jurídicos (ILAEJ).

3 de janeiro de 2016, 5h51

Apresentado como instrumento de inovação pela Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013 (Lei Anticorrupção) e regulamentado pelo Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, não se tem notícia, até a presente data, da celebração de acordo de leniência por quaisquer das pessoas jurídicas, nacionais ou estrangeiras, envolvidas nas investigações sobre a prática de atos de corrupção, apesar dos artigos 17 da referenciada lei e 28 do mencionado decreto terem estendido a sua aplicação também aos ilícitos administrativos previstos na Lei 8.666, de 21 de junho de 1993 (Lei de Licitações).

Num primeiro momento, poder-se-ia cogitar que a inaplicabilidade até então constatada adviria da ausência de instauração de processos administrativos de responsabilização para apuração das condutas enquadradas como corruptas, já que somente as autoridades administrativas estariam aptas a celebrar acordo de leniência, na forma dos artigos 16 da Lei Anticorrupção e 28 do Decreto 8.420/2015.

Entretanto, outras motivações apresentam-se como mais efetivas para justificar a inaplicabilidade do referido instrumento, quais sejam: os requisitos necessários para sua celebração e os resultados alcançados pela empresa infratora.

Para que possa celebrar o acordo de leniência, dentre os muitos requisitos legais, a empresa infratora deverá ser pioneira na manifestação de vontade de adir aos termos do ajuste e terá de reconhecer a prática dos atos de corrupção a ela imputados, apontando todas as empresas e pessoas envolvidas na consecução dos mesmos e apresentando as provas que dispuser sobre a materialidade e a autoria dos ilícitos cometidos.

Ou seja, ao reconhecer que praticou atos de corrupção, a empresa infratora implicará, diretamente, as pessoas físicas envolvidas na consecução dos ilícitos, as quais submeter-se-ão a apuração de eventuais responsabilidades penais em condições bastante adversas.

Em contrapartida a essas graves consequências, os benefícios advindos da celebração do acordo de leniência estariam adstritos a isenção ou abrandamento das penalidades decorrentes da apuração administrativa das suas responsabilidades, quais sejam: a exclusão da obrigatoriedade de publicação da decisão administrativa condenatória no sítio eletrônico empresarial e em jornais e revistas de grande circulação; a redução da multa administrativa em até dois terços do seu valor e a suspensão da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público.

E mais. O acordo de leniência em nada interferiria na obrigação de reparação integral dos danos causados pelos atos de corrupção praticados e nem serviria ao abrandamento de outras penalidades passíveis de lhe serem imputadas em sede de processo judicial, nos moldes do artigo 19 da Lei Anticorrupção (perdimento de bens, suspensão ou interdição parcial de suas atividades, dissolução compulsória da empresa).

Traçado esse panorama, torna-se perceptível que o “remédio” introduzido pela Lei Anticorrupção talvez tenha sido amargo o suficiente para produzir uma perigosa subversão de valores.

Inegavelmente, a intenção do legislador era a de fortalecer o combate a corrupção na esfera administrativa, atribuindo as autoridades competentes a apuração de atos de corrupção e a imputação de penalidades severas como a imposição de multa e a obrigatoriedade de publicação da decisão condenatória no sítio eletrônico da empresa e em jornais e/ou revistas de grande circulação, e, ainda, delegando-lhes, com exclusivamente, a utilização do instrumento de acordo de leniência.

Só que ao assim fazer, descuidou-se de algumas circunstâncias, como, por exemplo, que a vacatio legis de seis meses não seria suficiente a garantir a estruturação dos órgãos administrativos competentes para a apuração e imposição de penalidades, uma vez que seriam necessários treinamentos específicos dos servidores e agentes a eles vinculados, principalmente quanto aos seguintes aspectos: o alcance das condutas enquadradas como corruptas pelo artigo 5º da Lei Anticorrupção; a forma e os procedimentos a serem adotados na condução do processo administrativo; a dosimetria das penas, com o entendimento de cada um dos critérios de abrandamento ou agravamento previstos na norma; a compreensão dos requisitos necessários para o reconhecimento da eficácia dos programas de compliance e o modo de quantificação dos danos decorrentes dos atos corruptos.

Na verdade, alguns desses conceitos essenciais para a preparação e treinamento dos servidores e agentes dos órgãos administrativos sequer estavam claros na Lei Anticorrupção, demandando uma regulamentação específica, que somente veio a ocorrer quase dois anos após a sua promulgação. (Decreto 8.420, de 18 de março de 2015)

Como se não bastassem todas as dificuldades práticas para a implementação do acordo de leniência, a banalização da delação premiada o tornará letra morta, já que os interesses financeiros e econômicos e as comodidades proporcionadas aos seus dirigentes, farão com que as empresas sempre optem por esta forma de “cooperação” em detrimento daquele relevante instrumento, que, frise, seria o apto a garantir a implantação de ferramentas de compliance no mundo corporativo.

O fenômeno da banalização da delação premiada, por sua vez, está intimamente correlacionado com a falta de estruturação prévia dos órgãos administrativos para apuração das condutas das empresas infratoras, que abriu espaço para que o processo de responsabilização das pessoas jurídicas ficasse restrito ao âmbito do Poder Judiciário.

Alie-se a isso, o clamor das ruas, que legitimou a concentração, numa mesma autoridade judicial, dos poderes de apuração, instrução processual e julgamento dos ilícitos cometidos, na suposição de que essa seria a única forma de garantir uma punição rápida e exemplar, ainda que em prejuízo das garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.

Em consequência disso, as situações de excepcionalidade foram transmutadas em simples regras procedimentais, permitindo-se o aumento significativo de prisões cautelares e provisórias desprovidas de fundamento legal, além do bloqueio de bens e da suspensão “preventiva” dos contratos vigentes com as empresas investigadas. Passou-se a repetir, então, o mesmo enredo: prisão cautelar ou provisória dos dirigentes das pessoas jurídicas investigadas, seguida do engessamento e paralisação das atividades produtivas (com graves repercussões na economia do país: desemprego, decréscimo de arrecadação, etc…), que conduziam confortavelmente a delação premiada.

Ocorre que ao aceitar a delação premiada, o delator limita-se a ofertar provas necessárias a identificação da materialidade e autoria dos delitos praticados, mas recebe, em troca, uma redução significativa das suas responsabilidades penais, sem que se tenha qualquer garantia da responsabilização futura e integral das pessoas jurídicas envolvidas.

Mas não é só. O acordo de delação premiada é realizado sem que as pessoas jurídicas envolvidas nos fatos delatados assumam o compromisso de implantarem programas de compliance eficazes e capazes de promover a prevenção da prática de novos atos de corrupção, jogando uma pá de terra na intenção de mudar a cultura corporativa com vistas a evitar a repetição das mesmas condutas corruptas.

Resultado dessa equação: favorecimento das pessoas físicas responsáveis diretas pela consecução dos atos corruptos atribuídos as pessoas jurídicas infratoras, enfraquecimento econômico das empresas envolvidas; ausência de políticas eficazes de prevenção da corrupção e inexistência de consequências práticas para as hipóteses em que o delator volte a cometer os mesmos ilícitos pelos quais já foi suavemente apenado.

Evidente, então, que ao contrário do sentimento cultivado no imaginário da coletividade, a delação premiada não pune as empresas infratoras e nem é o meio mais eficaz de combate a corrupção, pois enquanto beneficia as pessoas físicas responsáveis diretas pela prática de atos delituosos pela redução das suas responsabilidades penais; deixa de provocar quaisquer efeitos concretos na prevenção de ilícitos futuros e exime-se de garantir a reparação integral dos danos causados. Em situação diametralmente oposta, o acordo de leniência atenderia todos os fins colimados pela Lei Anticorrupção, desde quando exigiria, desde a sua celebração, o compromisso empresarial de garantia da reparação integral do dano causado, manteria parcialmente a penalidade pecuniária aplicada e, ainda, asseguraria a implantação de programas de compliance para prevenção de ilícitos futuros.

Por todas as questões ora tratadas, é forçoso concluir que o acordo de leniência somente alcançará a relevância que lhe deve ser destinada quando houver uma ampla restruturação da Lei Anticorrupção com vistas a assegurar não só a reparação integral dos danos causados e a justa punição das pessoas jurídicas envolvidas, como também garantir que a apuração administrativa seja delegada a órgãos previamente estruturados para realização desta atividade; que as políticas de compliance sejam reconhecidas como mecanismos aptos ao combate a corrupção, tornando-as obrigatórias e essenciais ao reconhecimento da integridade corporativa e, por fim, que o referido instrumento torne-se apto, também, a afastar todas as penalidades que conduzam a interrupção ou ao esvaziamento da atividade empresarial, na esfera judicial.

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    é sócia da Oliveira e Leite Advogados; Procuradora do Estado da Bahia; Diretora do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA) e diretora financeira do Instituto Latino Americano de Estudos Jurídicos (ILAEJ).

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