Ideias do Milênio

"Temos de produzir um novo conjunto de tecnologias energéticas"

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2 de janeiro de 2016, 17h08

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David King - embaixador permanente do Reino Unido para questões climáticas [Reprodução]
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Entrevista concedida pelo embaixador permanente do Reino Unido para questões de mudanças climáticas David King à jornalista Sônia Bridi, para o programa Milênio — um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Direto, incisivo e sem medo de ser alarmista. Sir David King, à primeira vista, não parece ser feito para a diplomacia, mas é embaixador permanente do Reino Unido para questões de mudanças climáticas. Quando era conselheiro científico de Tony Blair, afirmou que mudanças climáticas são uma ameaça maior do que o terrorismo, um ataque direto à invasão do Iraque e a falta de ação americana para combater o aquecimento global. Agora lançou um estudo mostrando os riscos que corremos com o aquecimento, prevendo as consequências dos piores cenários se não fizermos nada e se tomarmos já as medidas necessárias. A COP 21, que acontece em Paris, vai produzir um acordo internacional, mas vai ser suficiente para impedir que o planeta aqueça mais de 2 graus até o fim do século? Para Sir David King, não. Essa mistura de cientista de alto nível e conselheiro franco faz a conversa com Sir David King valer cada minuto da sua atenção. Essa mistura de cientista de alto nível e conselheiro franco faz a conversa com Sir David King valer cada minuto da sua atenção.

Sônia Bridi — O IPCC divulga seu relatório a cada 4 anos, e estamos nos acostumando com ele. O relatório nos alerta para os riscos do aquecimento global. Por que precisamos da avaliação de riscos?
Sir David King — A avaliação de riscos mostra uma perspectiva diferente dos impactos das mudanças climáticas. É como se uma seguradora avaliasse os riscos. Se você procura uma seguradora e diz: “Quero segurar a minha casa contra roubo e incêndio”, ela analisa os riscos antes. Não porque a casa corre o risco de sofrer um assalto ou um incêndio, mas porque eles conhecem os riscos. Usamos a mesma abordagem com as mudanças climáticas: quais são os riscos de algo grave acontecer a um dado país? E analisamos os riscos de isso acontecer. Trata-se de uma abordagem muito diferente. Uma análise de risco não diz o que vai acontecer, mas quais são as probabilidades de acontecer.

Sônia Bridi — A Climate Interactive, uma ONG baseada nos Estados Unidos, estima que, com o que sabemos até agora sobre as intenções dos países de reduzir suas emissões, haverá um aumento de 6 graus Fahrenheit na temperatura, ou 4 graus Celsius. Quais riscos foram possíveis avaliar com esse aumento de temperatura nos lugares analisados, que foram EUA, Reino Unido, Índia e China?
Sir David King — Se a temperatura global aumentar em 4 graus, os riscos que conseguimos analisar seriam graves e catastróficos para vários países. Por exemplo, para a produção de arroz na China. Se a produção das três variedades de arroz plantadas na China entrasse em colapso, o impacto na China seria imenso. Então analisamos essa probabilidade em função do tempo até um mundo 4 graus mais quente. Conforme nos aproximamos dos 4 graus, a probabilidade não é de 1% ao ano. Ela sobe num ritmo de 4%, 5% e até 6% ao ano. Nenhum país quer correr esse risco.

Sônia Bridi — Conforme o tempo passa e não tomamos as providências duras que são necessárias para manter o aquecimento do planeta em 2 graus Celsius, a probabilidade de ele chegar a 4 graus ou até passar de 4 graus e chegar a 7 ou 8 graus também aumenta?
Sir David King —
As negociações em Paris são o ponto de partida para a próxima fase. Quando somarmos todos os compromissos nacionais, inclusive o do Brasil, que acaba de ser anunciado, quando os somarmos, pode ser que o aquecimento continue em 3,5 ou 4 graus. O que é vital no acordo de Paris é ele incluir a possibilidade de revisão quando soubermos em que direção estamos indo. O que quero dizer com revisão é que voltaríamos a nos reunir para dizer: “Temos de fazer mais.” “Essa não é uma opção para mim.” Não podemos começar a dizer: “Vamos nos programar para 3 graus.” Isso não é uma opção. Bangladesh seria inundado. O país inteiro. Quantas pessoas? Pense em todos os países insulares. Os britânicos vivem numa nação insular, então também estamos muito preocupados.

Sônia Bridi — Em relação ao nível do mar, eu estive na Groenlândia há 4 anos, e o que vimos lá não estava nos modelos apresentados até 2002 e 2003. O que está acontecendo na Groenlândia não foi previsto pelos cientistas. É muito mais rápido, mais forte e mais violento do que esperávamos. O que isso nos mostra? Quais são os verdadeiros riscos que corremos com o derretimento da Groenlândia, do gelo do Ártico e das montanhas dos Andes e até quando a Antártida começar a derreter?
Sir David King —
E a Antártida já começa a derreter. Os cientistas descobriram que o gelo da Groenlândia está derretendo numa velocidade não prevista. Para explicar de uma forma bem simples, o gelo de tempestades de neve foi se acumulando durante 15 mil anos. Portanto há muito gelo lá, e, se todo ele derreter, o nível do mar vai aumentar entre 6 e 7 metros.

Sônia Bridi — Só com a Groenlândia.
Sir David King — Só com o derretimento da Groenlândia de 6 a 7 metros. Trata-se de um grande risco para todas as cidades costeiras do mundo. Isso não vai acontecer rápido. Pode levar 200 anos ou dois mil anos, mas o início da perda da massa de gelo na Groenlândia é um problema potencialmente muito grave para a humanidade.

Sônia Bridi — Acha que apenas zerar as emissões seria suficiente ou temos que capturar, temos que ter emissões negativas? Isso é possível?
Sir David King —
Vou falar primeiro sobre o conceito de emissão zero. O governo britânico — e eu concebi o projeto — se comprometeu a reduzir as emissões em 80% até 2050. Se conseguirmos isso, chegaremos a duas toneladas de dióxido de carbono por pessoa por ano, e se o mundo todo chegasse a isso, a temperatura global só subiria 2º C. Foi por isso que escolhemos a redução de 80%, não de 99%. Mas, entre 2070 e 2080, temos de chegar a zero emissões líquidas de CO2 globalmente. Como alcançaremos isso? A forma eficaz não é só evitar o desmatamento, mas promover o reflorestamento. Precisaremos criar mais sumidouros pelo mundo. A Declaração de Nova York sobre as Florestas, que a Alemanha, a Noruega e o Reino Unido apresentaram ao mundo e que hoje conta com a assinatura de 37 nações… Juntos, vamos investir US$ 4,5 bilhões nesse programa, cujo objetivo não é só chegar ao desmatamento líquido zero em 2030, mas reflorestar uma área do tamanho da Índia até lá. Essa é a forma mais eficaz de tirar o CO2 da atmosfera.

Sônia Bridi — O Brasil está começando a fazer a avaliação de riscos. É um trabalho que contribuirá para a sua experiência com as análises de Reino Unido, EUA, Índia e China. Você acha que avaliar os riscos no Brasil ajudaria os defensores do desmatamento zero hoje a convencerem o governo e os atores?
Sir David King —
Na avaliação de risco que fizemos e à qual você se referiu, de EUA, China, Índia e Reino Unido, nós achamos que, se conseguíssemos envolver esses países e seus assessores políticos, seus generais e almirantes, talvez eles entendessem os riscos do ponto de vista da segurança nacional além do humano. Eles se preocupariam não só com seus netos, mas com seus filhos. Os riscos são mais urgentes. Acho que o resultado foi surpreendente nesses países. Por que não seria no Brasil também? Vocês já partem de temperaturas muito elevadas, similares às da Índia e de partes da China, portanto há questões que revelamos na análise que posso afirmar que também surgirão no estudo no Brasil. A chave é envolver os assessores políticos, e eles se envolveram totalmente. As pessoas que têm influência na sociedade têm de ser expostas a isso.

Sônia Bridi — Em seu relatório, você fala da responsabilidade ética. Quando existem todos esses movimentos diferentes, Maquiavel diria que, quando uma reforma é necessária, é muito difícil implementá-la porque as pessoas que mais se beneficiarão demoram muito a perceber isso. Mas as pessoas que perderão renda, negócios ou privilégios percebem muito rápido que vão perder algo e logo começam a fazer lobbies e movimentos para impedir a reforma. Nós vimos, principalmente depois de Copenhague, um forte movimento por parte dos céticos, que tem tido muito sucesso. Como equilibrar a necessidade moral e ética de implementar as mudanças quando é preciso enfrentar todos esses lobbies que querem que tudo continue como está?
Sir David King —
Nós crescemos após a Revolução Industrial, num mundo movido a combustíveis fósseis. Tudo era movido a combustível fóssil. Agora estamos abandonando os combustíveis fósseis, deixando-os no solo. Temos de produzir um novo conjunto de tecnologias energéticas, e diferentes tipos são necessários para regiões diferentes do mundo e em condições diferentes. Fontes primárias: do sol, das ondas, do vento, etc. Também precisamos estocar energia. Armazenamento de energia, sistemas de baterias, hidrelétricas reversíveis e todas as tecnologias de armazenamento de energia que chegarão ao mercado. Interconectividade, redes inteligentes… Trata-se de uma indústria de US$ 3 trilhões por ano, e ela está crescendo exponencialmente. A primeira coisa que eu faria seria apelar ao instinto das pessoas de criação de riqueza. Deve-se parar de investir nas velhas tecnologias, porque elas não vão a lugar algum. Essas são as novas tecnologias do futuro, para podermos olhar para o mercado global e dizer… As pessoas acham que o mercado de laptops, PCs e celulares é imenso, mas estamos falando de algo muito maior. É um mercado importante. Pense nos benefícios à saúde humana. Se pegarmos os países que usam muito carvão, seja a China, a Índia ou a Indonésia, tente viver em suas cidades hoje. As partículas finas prejudicam muito a saúde da população, tiram cerca de 15 anos da expectativa de vida de quem vive nesses lugares. Se passarmos do carvão para energia solar, turbinas eólicas e armazenamento de energia, o ar fica limpo e passamos a viver num mundo muito mais atraente. Eu acho que esse quadro de “ou isso, ou aquilo” é completamente equivocado. Estamos pintando um mundo muito mais adequado para o bem-estar humano do que o atual.

Sônia Bridi — Mas, para que a transformação para essa nova economia aconteça, os governos precisam implementar as políticas certas. Só assim ela ganhará escala e as tecnologias se desenvolverão mais rapidamente.
Sir David King —
Isso. Você tem toda a razão. O que fizemos na Europa? Lançamos a chamada “tarifa de energias renováveis”. Se você instalar painéis solares no telhado e não usar a eletricidade durante o dia, pode vender a eletricidade para o sistema por um ótimo preço. Isso incentiva as pessoas a instalarem os painéis. O resultado disso foi que, na Europa, nós criamos uma demanda crescente por painéis solares, turbinas eólicas e fontes de energia geotérmica. E o custo foi caindo ano a ano. O custo caiu, para placas fotovoltaicas… Quando começamos, um watt de energia fotovoltaica custava US$ 50. Hoje custa US$ 0,50. O mundo inteiro se beneficia com isso. Todo mundo pode acessar painéis baratos. É possível comprá-los da China, da Malásia… Não da gente. O benefício não é só nosso, mas uma revolução está acontecendo. Sim, nossos governos precisaram entender que era preciso criar um incentivo para criar o mercado, porque o mercado de combustíveis fósseis é muito maduro e essas novas tecnologias não são. Ainda temos muito a aprender. Então é preciso ter paciência. Isso levou 15 anos.

Sônia Bridi — Uma crise dramática que a Europa está vivendo hoje é a onda de refugiados que fogem da crise no Oriente Médio, e não dá para falar disso sem mencionar que havia uma crise climática antes do início da guerra civil. A Síria enfrentava uma longa seca. Conforme o tempo vai passando e o planeta vai aquecendo, essas crises serão muito mais frequentes e dramáticas do que as atuais. Vocês avaliaram o movimento humano, as migrações e o clima levando em conta os refugiados?
Sir David King — Devo dizer que sim, existe uma previsão de que o movimento de pessoas vai acontecer. Os países insulares dos oceanos Índico e Pacífico vão desaparecer com a elevação do nível do mar. As pessoas não vão ficar lá vendo seu país desaparecer. Elas vão entrar em barcos, em botes, no que arranjarem e fugir para o continente mais próximo. E é isso que estamos vendo hoje. As pessoas estão fugindo principalmente da guerra na Síria e na região vizinha e indo principalmente para a Turquia, que tem entre 1,5 milhão e 2 milhões de refugiados. Isso é incrivelmente difícil. Estão indo também para a Grécia, cuja economia está sofrendo. E tenho orgulho de dizer que os gregos estão recebendo bem os refugiados. Mas eles estão entrando na Europa às centenas de milhares. É o início da migração ambiental. Não é uma migração impulsionada especificamente pelo clima, há outros motivos para ela, mas estamos vendo um exemplo do que testemunharemos na migração ambiental. A minha interpretação sobre o que aconteceu na África do Norte e no Oriente Médio é que o aumento repentino do preço dos alimentos ocorrido em 2006 e 2007 foi um motivo importante para a eclosão da Primavera Árabe. A classe média culta que emergia nos países do norte da África tinha a expectativa de viver bem, assim como a classe média de nossos países vive bem. Aí o preço de alimentos como trigo e arroz triplicou. De repente, toda a renda extra passa a ser usada simplesmente para alimentar sua família, e você deixa de viver tão bem quanto outras classes médias. Quando eu vi aquelas pessoas sentadas na praça Tahrir, no Cairo, no início de tudo, no Egito, percebi que estavam sentadas de forma ordeira. Aquela era a classe média se manifestando. E aconteceu em todo o norte da África: na Tunísia, na Líbia, etc. Acho que esta é só uma amostra, e não é nada comparado a Bangladesh, por exemplo. Imagine se aquelas pessoas tiverem que migrar, e terão, se o nível do mar continuar a subir. Quero reforçar que a elevação do nível do mar já está afetando o interior, mas quando um tufão se aproxima do país…

Sônia Bridi — Como já acontece na região de Sundarbans.
Sir David King —
… ele afeta mais ainda.

Sônia Bridi — No dia 11 de dezembro nós teremos um acordo. Ainda não sabemos que tipo de acordo, se será vinculativo ou… Há muitas dúvidas, mas teremos um acordo no dia 11 de dezembro ou talvez no dia 12, porque às vezes demora um pouco mais. O que planeja fazer no dia 15 de dezembro?
Sir David King —
A sua pergunta é a melhor de todas. É muito importante que todos entendam que, até 11 de dezembro, nós teremos um acordo. Desta vez não vai atrasar porque estamos mais avançados. Teremos um rascunho antes do início da conferência e os chefes de Estado vão chegar no início, não no fim. Então vamos chegar ao final com um acordo costurado. Esse acordo incluirá uma cláusula de revisão, o que significa que vamos começar o processo de análise de todos os compromissos nacionais voluntários dos países para ver que caminho estamos traçando para o futuro. Aí, no dia 15 de dezembro, depois de um descanso, vamos recomeçar a trabalhar país por país para que cada um deles aperfeiçoe seus compromissos. Eu sou o representante do Ministério das Relações Exteriores para mudanças climáticas. Isso significa que eu viajo o mundo para dialogar com políticos que querem fazer a diferença sobre o que precisamos fazer e por quê. Temos de continuar esse processo imediatamente após a conferência em Paris, porque a maior parte do trabalho ainda precisará ser feita. Temos de descarbonizar a economia global em um espaço de tempo muito curto. Toda vez que alguém construir uma usina termelétrica a carvão, eu avisaria: essa termelétrica não sobreviverá o suficiente para o dono recuperar o investimento. Temos de desativar esses usinas logo. É melhor mudarmos para fontes renováveis agora, senão não estaremos interpretando corretamente a direção em que o mundo está indo.

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