Estado da Economia

A política econômica entre a Constituição e os privilégios

Autor

  • Gilberto Bercovici

    é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

28 de fevereiro de 2016, 8h10

Spacca
A partir do século XX, as Constituições passam a conter as normas atribuidoras de competência para a elaboração e a implementação da política econômica e estabelecem o fundamento jurídico para que os Estados tomem as medidas econômicas necessárias. A efetividade da política econômica torna-se, assim, também uma tarefa do Direito, particularmente do Direito Econômico. A incorporação da política econômica aos textos constitucionais reflete-se também na própria concepção de Direito Econômico, especialmente as noções elaboradas no segundo pós-guerra. Apenas para limitarmos essa investigação ao caso brasileiro, o fundador da disciplina do Direito Econômico entre nós, Washington Peluso Albino de Souza, por exemplo, defende a autonomia doutrinal do Direito Econômico como "ramo" do Direito, cujo objeto é a regulamentação da política econômica e que tem por sujeito o agente que dela participe.

E é nesse mesmo contexto de entender o Direito Econômico além da visão tradicionalista dos "ramos" do Direito que Fábio Konder Comparato, em seu influente ensaio O Indispensável Direito Econômico, entende o Direito Econômico como o direito que instrumentaliza a política econômica. Para Comparato, o Direito Econômico visa atingir as estruturas do sistema econômico, buscando seu aperfeiçoamento ou sua transformação. E, no caso de países como o Brasil, a tarefa do Direito Econômico é transformar as estruturas econômicas e sociais, com o objetivo de superar o subdesenvolvimento.

A Constituição de 1988 está estruturada também a partir da ideia da constituição como um plano de transformações sociais e do Estado, prevendo, em seu texto, as bases de um projeto nacional de desenvolvimento. Em termos de teoria constitucional, a Constituição de 1988 é o que se denomina de "constituição dirigente", ou seja, uma constituição que estabelece explicitamente as tarefas e os fins do Estado e da sociedade.

Para a Teoria da Constituição Dirigente, a constituição não é só garantia do existente, mas também um programa para o futuro. Ao fornecer linhas de atuação para a política, sem substituí-la, destaca a interdependência entre Estado e sociedade: a constituição dirigente é uma Constituição estatal e social. No fundo, a concepção de constituição dirigente para José Joaquim Gomes Canotilho está ligada à defesa da mudança da realidade pelo Direito. O sentido, o objetivo da constituição dirigente é o de dar força e substrato jurídico para a mudança social. A constituição dirigente é um programa de ação para a alteração da sociedade.

Essa dimensão emancipatória é ressaltada por todas as versões de constituição dirigente. Seja a constituição dirigente “revolucionária”, como a portuguesa de 1976, em cuja versão original havia a consagração constitucional dos objetivos da construção de uma sociedade sem classes (artigo 1º) e da transição para o socialismo (artigo 2º). Seja a constituição dirigente “reformista”, como a espanhola de 1978 e a brasileira de 1988, que, embora não proponham a transição para o socialismo, determinam um programa vasto de políticas públicas inclusivas e distributivas, por meio de dispositivos como o artigo 3º da Constituição de 1988: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Dispositivos como o artigo 3º da Constituição de 1988 são o que denominamos de "cláusulas transformadoras". A “cláusula transformadora” explicita o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la. Desse modo, impede que a constituição considerasse feito o que ainda está por se fazer, implicando na obrigação do Estado em promover a transformação da estrutura econômico-social. Sua concretização não significa a imediata exigência de prestação estatal concreta, mas uma atitude positiva, constante e diligente do Estado.

As normas determinadoras de fins do Estado dinamizam o direito constitucional, isto é, permitem uma compreensão dinâmica da constituição, com a abertura do texto constitucional para desenvolvimentos futuros. A sua importância está no fato de permitir, sem romper com a legalidade constitucional, avançar pela concretização de determinados objetivos que visam tornar real a supremacia do povo como sujeito da soberania, rechaçando a manutenção dos interesses privados de uma classe ou grupo dominante. O artigo 3º da Constituição de 1988 é um instrumento normativo que transformou fins sociais e econômicos em jurídicos, atuando como linha de desenvolvimento e de interpretação teleológica de todo o ordenamento constitucional.

Em termos de teoria da norma, não é uma "norma programática", concepção conservadora e teoricamente equivocada que justifica a não vinculatividade e a não concretização dos dispositivos constitucionais. A norma do artigo 3º da Constituição de 1988 é uma "norma-objetivo", nas palavras de Eros Grau, ou uma "norma-fim" (norma di scopo), ou seja, indica os fins, os objetivos a serem perseguidos por todos os meios legais disponíveis para edificar uma nova sociedade, distinta da existente no momento da elaboração do texto constitucional. O Estado, assim, retira sua legitimidade de suas tarefas materiais. Nesse sentido, o Estado deve ser entendido como o "portador da ordem social", o que pressupõe uma vontade política disposta a colocar o programa constitucional em andamento. Isso, no entanto, não é suficiente. A constante pressão das forças políticas populares é fundamental para que o Estado atue no sentido de levar a soberania popular às últimas consequências.

Em uma perspectiva finalista, a constituição econômica tem por funções a ordenação da atividade econômica, a satisfação das necessidades sociais e a direção do processo econômico geral. A essas funções pode ser acrescentada, no caso da constituição brasileira de 1988, a função de reforma ou transformação estrutural.

A função de ordenação da atividade econômica diz respeito à instituição da ordem pública econômica, ou seja, das regras do jogo econômico, especialmente as limitações à liberdade econômica. Como exemplo, pode-se mencionar a livre concorrência, a função social da propriedade, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a repressão ao abuso do poder econômico (artigos 170, III, IV, V, VI e 173, parágrafo 4º, entre outros, da Constituição de 1988).

A satisfação das necessidades sociais aparece de forma explícita na previsão de direitos sociais e econômicos e nos dispositivos relativos aos serviços públicos (artigos 6º, 7º, 8º, 9º, 21, X, XI e XII, 175, 178, 194, 196, 199, 201, 203, 205, entre vários outros).

A política econômica constitucional está incluída na função de direção do processo econômico geral, como, por exemplo, nos dispositivos relativos ao desenvolvimento (artigo 3º, II), pleno emprego (170, VIII), política monetária (artigos 21, VII e VIII, 164, 172 e 192) e distribuição de renda (artigos 3º, III, 21, IX, 170, VII, entre vários outros).

Finalmente, a função transformadora da constituição econômica está prevista nos objetivos da República (artigo 3º), na reforma urbana e na reforma agrária (artigos 182 a 191), entre outras disposições espalhadas pelo texto constitucional.

A constituição econômica de 1988 é, portanto, uma constituição econômica diretiva, ou seja, dotada de um programa explícito de política econômica incorporado ao seu texto.

A título de exemplo, é chocante o contraste entre o que a Constituição de 1988 determina como configuração jurídica da política econômica e a política econômica que vem sendo praticada pelo atual governo federal desde a proclamação dos resultados eleitorais de 2014.

Em vez de inclusão, crescimento e ampliação de direitos, o governo federal promoveu deliberadamente um ajuste fiscal de viés marcadamente neoliberal que destruiu a economia do país, gerando retração econômica, a maior recessão dos últimos tempos e o ataque indiscriminado aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Direitos esses garantidos expressamente no texto constitucional.

A atual presidente da República parece acreditar que a culpa da crise e dos desajustes da economia é dos pobres deste país, omitindo-se ou promovendo diretamente uma sucessão de medidas de restrição de direitos sociais básicos, como as restrições ao seguro-desemprego, a proposta de limitar os gastos do governo inclusive com a suspensão do reajuste do salário mínimo, a reforma da Previdência voltada contra os mais humildes e dependentes dos auxílios, nunca contra as aposentadorias excessivas de setores privilegiados do funcionalismo público, notadamente no Poder Judiciário e no Ministério Público.

A presidente Dilma Rousseff hoje governa não para os que a elegeram, mas para os bancos e os rentistas da dívida pública. O país está de joelhos, preso em uma espiral de juros sobre juros que não termina nunca. Parcela significativa do orçamento da União (cerca de R$ 500 bilhões) está destinada ao pagamento dos juros da dívida pública. Os banqueiros se refastelam sobre a miséria do povo.

Esses privilégios para o setor financeiro são absolutamente injustificáveis. O próprio liberalismo não os admite. Às vésperas da Revolução Francesa, em seu texto Ensaio sobre os Privilégios (Essai sur les Privilèges), publicado em novembro de 1788, Sieyès afirma que a desigualdade pertencente aos privilégios é fruto de uma esfera arbitrária que deve ser eliminada pelos direitos do homem. A nação moderna é uma instituição econômica, fundada na hierarquia dos valores do mercado, devendo a esfera política privilegiar a dimensão econômico-produtiva. A liberdade é a possibilidade de cada um perseguir e satisfazer seus próprios interesses vitais, por meio da divisão do trabalho, da troca e da dependência recíproca dos homens[1]. Ou seja, nem os grandes pensadores liberais defendem os privilégios que classes ou grupos sociais, como os rentistas, têm assegurados em países como o Brasil.

Afinal, o que deve prevalecer em um Estado Democrático de Direito: as medidas que beneficiam os setores privilegiados, como o sistema financeiro, ou os direitos da maioria da população, como está consagrado na Constituição? Infelizmente, a atual política econômica demonstra que a Constituição de 1988 é solenemente ignorada e que o atual governo pode até ter sido eleito pelo povo, mas definitivamente não governa para os interesses desse mesmo povo que o elegeu.


[1] Emmanuel-Joseph SIEYÈS, Essai sur les Privilèges in Écrits Politiques, reimpr., Bruxelles, Editions des Archives Contemporaines, 1994, pp. 93-111.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!