Segunda leitura

Emoção nos impede de execer a impessoalidade e a razoabilidade

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

28 de fevereiro de 2016, 8h00

Spacca
Divergir faz parte da natureza humana e por isso os conflitos acham-se presentes em todos os espaços de convívio e em todas as profissões. Todavia, na área do Direito, eles não são apenas um componente do todo, mas sim uma parte importante dele.

Afinal, o mundo do Direito vive de conflitos e o estudante, desde o primeiro ano do curso de Direito, é ensinado a argumentar, criticar e discordar. Assim, além da esperada desavença entre as partes, não raramente ela alcança seus advogados. Além de tudo isto há, ainda, conflitos por espaços de poder entre, dentro e fora das diferentes instituições. Até aí nada de mais.

O problema surge quando as posições diferentes passam a ser transferidas do campo profissional para o pessoal. Aí o embate deixa de ser técnico, jurídico, para ser luta de imposição de ideias, com o uso de todas as armas que a emoção, e não a razão, procura justificar.

Quando a disputa se torna pessoal, ninguém ganha. O que se considera vítima, passa a conjecturar as diversas formas, reais ou imaginárias, pelas quais pode ser prejudicado. Por vezes investe contra o oponente, instalando-se a desconfiança ou o ódio recíprocos. Regra geral, ambos saem prejudicados. Alguns exemplos, tirados de casos reais, guardada reserva quanto à origem, podem dar concretude à afirmação. Vejamos.

Na Faculdade dois alunos assistem às aulas de Direito Penal e vão firmando suas convicções. Imagine-se que um seja garantista, acredite na necessidade da intervenção mínima do Estado em matéria criminal. Outro, todavia, pensa exatamente o oposto. Nas discussões em classe os ânimos se acirram. Um ironiza o outro, provocando gargalhadas dos colegas. O conflito de ideias torna-se pessoal. Passam a odiar-se. E levam a desavença para a vida adulta, procurando, sempre que possível, prejudicar o oponente. Quem lucra com isto? Ninguém, óbvio. Ambos perdem, porque têm sua imagem arranhada.

Jovem advogado, em início de carreira, vai ao Juizado Especial defender os interesses de um vizinho. O juiz dá-lhe pouca atenção e, ao inverso, trata a advogada da parte contrária com consideração, inclusive porque são conhecidos antigos. Encerrada a instrução, segue-se sentença de improcedência. É o bastante para o jovem advogado atribuir ao juiz parcialidade, comentar aonde quer que vá que perdeu a ação por isso. Tolice.

Dois advogados, na defesa de seus clientes, atacam-se reciprocamente. Tudo começa na contestação, quando o advogado do réu critica acidamente a petição inicial. A resposta na réplica vem na hora. Da disputa da causa passa-se à disputa pessoal. As reações tornam-se emocionais e tiram do profissional a serenidade necessária para que possa bem conduzir sua causa.

Findo o processo, seguem ambos a se querer mal e, dependendo do tamanho da cidade, encontrando-se em espaços sociais, realimentando o ódio. Claro que esta ruptura a nenhum faz bem, não há vencedor, apenas vencidos.

Na Polícia as desavenças são mais latentes. Bom exemplo é o do oficial da Polícia Militar que, no comando da equipe, leva os suspeitos para a Delegacia de Polícia onde o delegado, ao invés de lavrar auto de prisão em flagrante, coloca-os em liberdade. Óbvio que o oficial ficará frustrado. Mas é preciso lembrar que todos têm a sua função e nela há limites.

O promotor pode ficar frustrado porque o juiz absolve o réu, o juiz pode não gostar do Tribunal reformar sua sentença, o prefeito faz cara feia para a liminar concedida em mandado de segurança e assim por diante. É preciso saber conviver com as frustrações, administrar os revezes e tentar reverter a situação. Não será a cara feia que alterará o procedimento do outro, mas sim a argumentação lógica, ponderada e persistente.

O promotor quer autorização para fazer mestrado na Espanha, já tem a concordância do professor mais famoso e o apoio de toda a família. Todavia, o Conselho Superior do Ministério Público nega-lhe a saída, sob o argumento de que há falta de promotores e haverá prejuízo à sociedade. Imaturamente, toma-se de ódio pelo corregedor e passa a maior parte de seu tempo a criticá-lo, dentro e fora do serviço, inclusive no Facebook. Imaturidade à vista.

Quem tem o dever de fazer as coisas funcionarem, na maioria das vezes não tem prazer algum em dizer não. Mas é obrigado a dizer. Quem pede e vê seu pedido negado, deve ter maturidade para não pessoalizar a questão. Aguardar nova oportunidade e então realizar o seu sonho.

Juiz participando de disputa em sua associação de classe fica furioso porque sua chapa não recebeu votos suficientes para a vitória e, além disto, dois de seus colegas de comarca não lhe deram o voto. Pessoaliza a desavença e rompe com os colegas. Sentindo-se traído, faz questão de divulgar a todos aquilo que lhe parece o fato mais grave sucedido no planeta Terra na última década. Bobagem.

Temos dificuldade em compreender que não agradamos a todos e que divergirem de nossas ideias faz parte da vida. No caso, a reação pessoal aprofundará a divergência. O caminho certo seria fingir que não percebeu ter perdido os dois votos e depois, dia a dia, mostrar que teria sido a melhor opção. Só assim esses votos poderiam ser recuperados.

Percebe-se, pois, que trazer as divergências e eventuais desavenças que surjam na área das profissões jurídicas para o campo pessoal, fazer delas razão para maus sentimentos, como o ódio, rancor ou vingança, é a pior via para uma carreira de sucesso e felicidade.

O ofendido não esquece a ofensa e a vingança poderá vir explícita (v.g., fulano não serve para essa chefia, relaciona-se mal com as pessoas) ou dissimulada (v.g., beltrana é uma excelente pessoa, mas agora passa por dificuldades na relação com seu marido, este não é o melhor momento para convidá-la).

Tudo o que foi dito pode fazer supor que se está a pregar uma personalidade inerte, sem reação. Não, de forma alguma. Não se está pregando a timidez excessiva, a covardia. O que se está a dizer é que entraves existenciais fazem parte da vida de todos, são inevitáveis. A sabedoria está em saber levá-los profissionalmente, com maturidade. Vejamos como.

Primeiro, não permitir que qualquer desavença penetre na nossa intimidade. Em outras palavras, não dar a um dissabor qualquer valor alto. Ignorá-lo até onde for possível. Mas, vejamos como resolver quando ignorar não for possível.

Se há suspeita de parcialidade do juiz, o caminho é colher provas disto e interpor exceção de suspeição. Se não se tem prova alguma, mas meras suposições, o melhor é ficar calado, porque esta insatisfação mais parece choro de perdedor. Se for atingido através de e-mail em uma lista, o melhor é ignorar.

Se o fato repetir-se, procurar a pessoa e conversar. Se alguém em posição de mando negar-lhe sistematicamente suas pretensões, um bom caminho será descobrir quem ela admira ou a quem deve favores e, através desta pessoa, tentar fazer cessar a perseguição. Se for humilhado por um  professor em sala de aula, uma conversa franca depois da aula poderá fazer cessar a situação e, se persistir, uma representação à direção da faculdade, já com as provas prontas (p. ex., gravação) é o caminho.

Se o advogado, inconformado,  ofende o juiz em petições, chamá-lo logo que isto comece para tentar eliminar o incidente é muito melhor que representar à OAB e consolidar a animosidade. Se não der resultado a conversa, aí sim pensar em alguma providência mais séria.

Em suma, é preciso mais profissionalismo e menos amadorismo. O respeito e o sucesso profissional se conquistam através da soma de pequenas e grandes atitudes diárias. Quem perde tempo pessoalizando cada fato desagradável de sua existência, terá dificuldades em bem encaminhar sua vida profissional. Vai perder-se na caminhada entre ódios, inimizades e vinganças.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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