Fratura exposta

Presidente do STJ usa cargo para perseguir desafetos e perde apoio na corte

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26 de fevereiro de 2016, 15h53

A corda que segura o ministro Francisco Falcão na presidência do Superior Tribunal de Justiça esticou. O grupo de nove ministros que dá sustentação à gestão, com os eufemismos de praxe, deu uma espécie de ultimato ao presidente. Ou ele para de perseguir as pessoas de quem não gosta, usando o cargo e a máquina do tribunal, ou perderá o apoio à sua administração. A mensagem é a de que todos podem e devem fazer denúncias, desde que haja elementos concretos e sejam apresentadas publicamente — e não em notas sopradas no anonimato a repórteres que divulgam intrigas sem checar a veracidade das maledicências.  

STF
Para ministros, atitudes de Falcão desmoralizam o Judiciário.
STJ

Para os integrantes do STJ, ao procurar jornalistas para lançar suspeitas sobre seus adversários políticos, Falcão expõe toda a corte e desmoraliza o Judiciário — além de tornar o clima interno do tribunal ruim, como já notaram funcionários e advogados que atuam na Casa. Alguns ministros evitam usar seus próprios celulares, supondo a existência de uma arapongagem interna.

O receio tem mais de um motivo. A começar por Falcão ter levado para dentro do tribunal pelo menos um coronel da reserva do Exército e dois policiais federais, um agente e um delegado, que andaram enroscados em inquéritos por problemas com interceptação ilegal de telefonemas. 

Falcão é conhecido por perseguir adversários, mas desde que se tornou presidente, no início do segundo semestre de 2014, o quadro se agravou. Assim que assumiu o cargo, ele deu início a uma política de pôr sob suspeita tudo o que o antecessor, o ministro Felix Fischer, fizera. E começou pelo ministro João Otávio de Noronha, braço direito de Fischer e responsável pela área de tecnologia durante a gestão dele. Corre desde meados de 2015 uma devassa empreendida por Falcão em todos os contratos da área de TI, que já resultou na punição de dois ex-funcionários da casa e em um mandado de segurança impetrado por um deles, acusando Falcão de perseguição política e de extrapolar sua competência administrativa. 

Foi durante uma sessão de julgamento desse mandado de segurança que Falcão e Noronha brigaram e o presidente da corte foi chamado de “tremendo mau caráter”. A confusão começou porque Falcão, que é parte no processo, pautou o caso, que estava com pedido de vista de Noronha e cujo prazo ainda não havia se esgotado. Coube à ministra Laurita Vaz, que presidia a sessão interinamente, interromper a discussão.

Noronha não ocupava uma posição qualquer. Fischer chegou à presidência disposto a mudar a infraestrutura de tecnologia da informação do tribunal para transformá-lo em referência na área de informatização de processos judiciais. O ministro Cesar Asfor Rocha, que presidiu a corte de 2008 a 2010, tinha se proposto acabar com o processo em papel no STJ e chegou a decretar o fim dos escaninhos responsáveis por seu armazenamento. Seu sucessor, Ari Pargendler, abandonou o projeto. E o resultado foi que em fevereiro de 2013 a área de TI do tribunal operava com 110% de sua capacidade. 

Para resolver, Noronha buscou servidores de diferentes tribunais (um deles trabalhou na implantação da urna eletrônica na Justiça Eleitoral). A gestão Fischer-Noronha chegou ao fim com o trabalho quase pronto: o tribunal já não recebia processos em papel e contava com a melhor estrutura para o processo eletrônico do país. Hoje, nenhuma ação tramita em meio físico no STJ graças àquele trabalho. 

Perícia
No início de 2015, Falcão criou uma “comissão de auditoria” para procurar ilegalidades nos contratos assinados na área de TI. Na época, ele disse ter recebido uma carta anônima com denúncias e mandou apurar. Finda a “investigação”, distribuiu o relatório final ao Tribunal de Contas da União, à Controladoria-Geral da União, à Procuradoria-Geral da República, à Polícia Federal e ao Conselho Nacional de Justiça. E, como não poderia faltar, a jornalistas. 

Foi o jogo perfeito. O ministro José Múcio, do TCU, enviou um questionamento ao STJ e Falcão, em vez de mandar o questionamento para o setor de TI ou para os servidores que trabalharam com Noronha, determinou a instauração de um Procedimento Administrativo Disciplinar. 

O PAD ainda está em trâmite, mas já vazou para a revista Época que a Polícia Federal “encontrou um superfaturamento de 30%” nos contratos de TI da época em que Noronha era o responsável pelo setor. Quem conhece o assunto garante que a perícia foi desvirtuada. 

As informações foram levantadas pelo Instituto Nacional de Criminalística, um braço da PF, junto aos contratos de cabeamento. De acordo com a tal perícia, o STJ contratou material e instalação dos cabos em todo o tribunal — menos no gabinete de Falcão, que não deixou os técnicos entrarem em sua sala, com medo de que a instalação dos cabos fosse, na verdade, a instalação de escutas ambientais. 

De acordo com o laudo, o contrato era de R$ 30 milhões, 86% disso para material e o resto pela prestação do serviço, feito pela empresa Alsar Tecnologia. Os agentes da PF que fizeram a perícia encontraram o pretenso superfaturamento comparando o preço que a Alsar cobrou do STJ com o preço cobrado pela Horus, distribuidora dos cabos, fabricados pela Furukawa. E encontrou uma diferença de R$ 8 milhões. 

Não se esclarece se a comparação é apenas de preços de produtos ou se desconsiderou o valor agregado dos serviços de instalação — ou se foram equiparados preço de distribuição e de revenda.

Supergrampo
Quando Falcão abriu o PAD para investigar os contratos da área de TI, criou uma Comissão Especial de Procedimentos Administrativos Disciplinares (Cepad). Depois convocou o delegado da Polícia Federal Alessandro Moretti para presidi-la, nomeando-o secretário de segurança do STJ. 

Moretti é famoso por seu envolvimento com técnicas de “inteligência”. Foi investigado no inquérito aberto para apurar o uso de práticas ilegais de interceptação na operação satiagraha — a mesma que levou o Supremo Tribunal Federal a condenar o delegado da PF Protógenes Queiroz à perda do cargo e a prestação de serviços comunitários. Hoje se sabe que a operação foi montada com dinheiro de empresas privadas envolvidas numa disputa comercial.

Em 2009, Moretti comandou um programa chamado “supergrampo”. Hoje, a iniciativa está relegada à patrulha de fronteiras, mas, quando foi concebida, a ideia era que a PF pudesse usar Veículos Aéreos Não Tripulados (Vants), ou drones, para grampear telefones sem ter de passar pelas operadoras de telecomunicações. 

A intenção era que menos pessoas fossem envolvidas nas interceptações. Moretti foi o delegado responsável pela operação ferreiro, que descobriu uma máfia de venda de grampos telefônicos para fins privados. Depois ele compartilhou seus achados com a CPI dos Grampos. 

Na secretaria de segurança do STJ, sob o guarda chuva de Moretti, trabalha o agente da PF Gilberto Augusto Leon Chauvet, outro policial federal investigado por seu comportamento na satiagraha. Depois que se descobriu que agentes da Abin, a Agência de Inteligência da Presidência da República, também participaram dos grampos da operação, também se descobriu que a senha que eles usavam pertencia a Chauvet. 

Ouvi dizer
A última vítima do método Falcão de trabalho foi o ministro Sebastião Reis Jr, da 6ª Turma do STJ. Um pouco antes do carnaval deste ano, o jornal O Globo divulgou que havia um ministro do STJ sendo investigado no Supremo por ligações com a operação “lava jato”, que investiga corrupção em contratos da Petrobras. 

Não se tinham muitas informações e Falcão logo procurou jornalistas para tentar saber a quem a menção se referia. Ninguém sabia, e o presidente do STJ passou a tentar convencer repórteres de seus dois palpites: Noronha ou o ministro Mauro Campbell Marques, de quem Falcão não gosta e a quem já teria tentado prejudicar antes. 

Dias depois o site Jota publicou que o alvo do inquérito era o ministro Sebastião Reis Jr, da 6ª Turma do STJ. Sebastião é amigo íntimo de Noronha. A notícia do Jota dizia que a investigação era sobre “venda de decisão judicial”. 

Instalou-se um clima de conflagração. Muitos tinham certeza de que Falcão foi quem vazou a informação sobre o inquérito, embora ele tenha negado. O fato é que, dois dias depois da notícia do Jota, na quinta-feira (18/2), o jornal O Globo publicou que Falcão estava estudando o que fazer diante da informação que um ministro da casa era investigado pela PF. 

No mesmo dia, Falcão promoveu um almoço para lançar o novo site do STJ — que ainda não está no ar. Lá, disse que não teve qualquer informação sobre o caso e que, se algo for feito, será pela Corregedoria Nacional de Justiça. À noite, o site do Globo noticiou que o CNJ abrira um procedimento administrativo para apurar o que aconteceu no caso do ministro Sebastião. 

O estrago estava feito. Na terça-feira (23/2), O Globo publicava que novos vazamentos do inquérito sobre o ministro trariam mais constrangimento ao STJ. No dia anterior, o site da revista Veja publicava que Sebastião foi visto chorando pelos corredores do tribunal. O Globo acrescentou que ele chorou depois de ter sido “confrontado por colegas” a respeito do inquérito. Na verdade, ele chorou depois que o ministro Falcão o procurou na sala de lanches para dizer que não tinha nada a ver com as notícias que saíam publicadas sobre ele. “Por que não negou, então?! Por que não veio falar comigo no dia em que aquilo tudo foi publicado?!”, disse o ministro, segundo relatos de quem estava lá. E a conversa descambou em palavrões.

Venda de ministro
Pois se o inquérito contra Sebastião foi aberto para apurar venda de decisão, o que se descobriu foi que o ministro era vendido sem seu conhecimento (o truque da venda de fumaça). A PF grampeava o telefone de uma advogada envolvida num esquema de roubo de carga. Depois de ter um Habeas Corpus negado pelo ministro, ela pediu reconsideração. 

O caso era simples, como outros milhares que são decididos pelo STJ todos os dias. O pedido era de trancamento da denúncia por inépcia, e o ministro negou a liminar. Disse que, a princípio, a denúncia narrava fatos típicos e o HC não seria a via adequada para discutir o “suporte probatório que lastreou a acusação”. 

No pedido de reconsideração, a advogada destacou ao ministro que a decisão que decretou a prisão provisória de seu cliente sequer mencionava o nome dele na descrição do crime. O ministro, então, reconsiderou a decisão. “Verifica-se que o Juízo de primeiro grau, especificamente quanto ao paciente, não trouxe nenhum fundamento acerca da existência dos pressupostos autorizadores da segregação preventiva”, escreveu. 

Só que, nos grampos feitos pela PF, foi constatado que a advogada recebeu ligações de uma pessoa que falava em nome do gabinete do ministro sem ele saber cobrando R$ 100 mil para que ele reconsiderasse o HC. Os grampos também descobriram que não há nenhuma conversa da qual o ministro tenha participado. 

Fato gravíssimo
Outro alvo de Falcão foi o ministro Mauro Campbell. A última briga pública aconteceu no dia 8 de outubro de 2015, quando o Plenário votava a lista tríplice para preencher uma das vagas no tribunal. Antes da coleta de votos, há uma sessão secreta em que os ministros discutem os currículos e as informações a respeito dos candidatos. 

A votação é secreta, e por isso é pedido que a plateia e os funcionários não essenciais deixem a sala do Plenário e só voltem quando autorizados. 

Cambpell havia pedido, como sempre faz com as Plenárias, a gravação do áudio da sessão. Queria ter o registro, já que as sessões secretas não ficam registradas em ata. 

Depois que os votos foram computados e a lista escolhida, Falcão pediu para que todos se retirassem de novo para que os ministros discutissem “um fato gravíssimo”. Levantou a suspeita de que Mauro queria ter acesso às informações dos candidatos discutidas na sessão secreta para vazar para a imprensa.

Ninguém gostou da postura do presidente, e vários ministros trataram de também pedir cópia da gravação, como forma de apaziguar os ânimos. O ministro Mauro Campbell não quis fazer nenhum comentário depois do ocorrido. 

Venda sem entrega
Mauro Campbell já fora alvejado pelas costas antes. Quando estourou a operação que descobriu o envolvimento do ex-senador Demóstenes Torres com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, também foi descoberto que o ex-parlamentar e procurador de Justiça “vendia” ministros para parecer mais influente do que era.

Não que ele fosse pouco influente. Além de já ter sido procurador-geral de Justiça de Goiás, ele era presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Conhecia todos os ministros do Supremo e do STJ, e falava com eles com frequência. E os vendia.

Falcão, quando soube, conseguiu cópia do inquérito para tentar descobrir algo que maculasse a imagem de seus adversários. Achou uma conversa de Demóstenes com Mauro Campbell e a divulgou. 

Em abril de 2012, O Globo noticiou que o ex-senador tinha feito lobby no STJ em favor de Cachoeira. Mas a história foi que Demóstenes fazia lobby para um grupo ligado a Cachoeira que monitorava decisões do STJ, conforme contou reportagem da ConJur em maio de 2012

No caso de Mauro Cambpell, eles queriam a cassação de um vereador de Anápolis. Mas quando Demóstenes ligou para Cachoeira para dizer que estava tudo combinado com o ministro, o voto dele já havia sido dado e era contrário aos interesses do grupo — entendeu que o processo deveria ser anulado por cerceamento de defesa.

Quinto constitucional
Listas tríplices sempre são motivo de acirramento de ânimos no STJ. As duas vagas que ainda não foram preenchidas são motivo de apreensão extra porque são as últimas cadeiras em oferta pelos próximos cinco anos, teoricamente. 

O rol dos nomes de candidatos oriundos da Justiça Federal foi motivo de atenção especial do ministro Falcão. Havia um movimento de ministros de não votar em postulantes que chegaram aos tribunais de origem por meio do quinto constitucional, seja da advocacia, seja do Ministério Público. Foi entendido como uma forma de impedir que advogados que pretendem chegar a tribunais superiores burlassem o sistema, usando as cortes de segunda instância como degrau profissional. Principalmente porque muitos advogados ficam um ou dois anos nos tribunais e já se candidatam a vagas no STJ. 

Falcão apoiava que o desembargador Kássio Marques, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, fosse nomeado ministro. Kássio chegou ao TRF-1 numa vaga destinada à advocacia. Diante da veemência com que Falcão defendia a ida de Kássio para o STJ, todos começaram a desconfiar. 

Coube à ministra Eliana Calmon, aposentada, esclarecer. No fim de setembro do ano passado, ela publicou artigo no blog do jornalista Frederico Vasoncelos, da Folha de S.Paulo, dizendo que o plano de Falcão era que Kássio deixasse livre a vaga do quinto da advocacia no TRF-1, para que seu filho, Djaci Falcão, o conhecido “Didico”, pudesse ser nomeado desembargador federal. 

Os desafetos começaram a espalhar que Falcão queria dar a seu filho prerrogativa de foro para o caso de ele ser acusado de algum crime. Ele negou a articulação. 

Viagens
Outra fixação de Falcão são as viagens internacionais. Entre fevereiro e março de 2014, quando era corregedor nacional de Justiça, começou a ver problemas nos convites estrangeiros feitos ao STJ durante a gestão de Fischer. Ele estava incomodado com o fato de o ministro delegar colegas para representar o tribunal fora do país — função que Falcão entende ser do presidente. 

Aliados do atual presidente, à época, diziam que Fischer estava colocando os amigos para passear. Mas a verdade é que o ministro, por motivos de saúde, não podia fazer viagens longas de avião. E repassava o convite a outros ministros. Falcão nunca foi convidado por conta da rivalidade política entre os dois — que só foi exposta por Falcão, aliás. 

Mas o então corregedor não se deu por satisfeito. Afastou-se do cargo por uns dias, nomeou o conselheiro Gilberto Martins “corregedor substituto” (criando, assim, o cargo) e, nesse meio tempo, chegou uma denúncia anônima falando de irregularidades na compra das passagens. No STJ, houve um misto de espanto e divertimento com a história. Não houve quem não tivesse certeza que o denunciante anônimo era o próprio Falcão. Isso porque ele havia tentado convencer vários jornalistas da “farra das passagens” e não conseguiu. 

Na semana seguinte, Fischer apresentou ao STJ documentos comprovando não haver nada de errado, sequer anormal, nas passagens. Depois que foi eleito presidente, uma das primeiras medidas de Falcão foi editar uma resolução dizendo que apenas o presidente e o vice podem viajar para representar o tribunal fora do país. No caso de os dois não poderem, o encargo vai sendo repassado por ordem de antiguidade.

A revista Consultor Jurídico procurou o ministro Francisco Falcão, por meio da assessoria de imprensa do STJ, para comentar o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

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