Embargos Culturais

O eterno problema da prova mal colhida e o dilema de Jalloh

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

21 de fevereiro de 2016, 10h38

Spacca
M. Abu Bakah Jalloh nasceu em Serra Leoa, na África, em 1965, e à época dos fatos que aqui serão relatados, vivia em Colônia, na Alemanha. Era um imigrante, que não dominava o alemão e tampouco detinha conhecimento e tirocínio para o exercício de atividade econômica.

Ao que consta, Jalloh sobrevivia na Alemanha, fazendo o odioso comércio de entorpecentes. Em 29 de outubro de 1993 um policial à paisana teria constatado que Jalloh entregara alguns saquinhos suspeitos em troca de dinheiro, prendendo-o, por isso. Jalloh imediatamente engoliu o pequeno saquinho que ainda portava. Recusou-se a explicar o que tinha abocanhado, bem como também rejeitou provocar o vômito. Em seguida, foi levado a um hospital. Enquanto policiais o seguravam, um médico lhe inseriu um tubo pela narina, na qual havia solução de xarope de substância que iria lhe provocar náusea. Injetaram-lhe também um derivado de morfina.

Como resultado, vomitou um conteúdo no qual se comprovou que continha cocaína. No dia seguinte decretou-se a prisão de Jalloh. Julgado em 1ª instância, foi condenado a um ano de prisão, com direito a sursis. O advogado de Jalloh invocou que a prova fora obtida ilegalmente, e que não poderia ser usada no processo. Policiais, médicos, hospital, todos seriam culpados, por lesões corporais, no exercício legal da profissão. O resultado poderia ser obtido de outro modo, mediante excreção natural do saquinho, alegou a defesa de Jalloh. Apelou-se, mantendo-se porém a condenação, diminuindo-se a pena. O Tribunal Constitucional Federal Alemão se recusou a apreciar a questão, invocando que todos os remédios processuais possíveis foram esgotados. O problema foi levado à Corte de Estrasburgo[1]

O emético teria sido administrado à força, contaminando-se a prova, ilegalmente obtida. Violou-se o direito de Jalloh não ser obrigado a se incriminar; ao que consta, esse direito ainda faz parte da agenda criminológica das sociedades civilizadas. A base da reclamação centrava-se no Tratado Europeu de Direitos Humanos, especialmente nos artigos 3º (tratamento degradante), 6º (necessidade de julgamento justo) e 8º (respeito à vida privada). A Corte Europeia concluiu que a convenção não proíbe, em princípio, o uso de intervenção médica para obtenção de provas. Porém, o uso da técnica exigiria escrutínio rigoroso: modus in rebus.

A Corte reconheceu a necessidade do esforço dos Estados no sentido de se combater o comércio e o uso de drogas. Porém, no caso, a prova poderia ser obtida de outro modo, que não o uso do emético. A maioria dos Estados contratantes não usava o método. Usou-se um tubo para se vencer a resistência de Jalloh. Realço que esse esforço para o combate do comércio e uso de drogas deve qualificar uma verdadeira cruzada internacional: é uma das fontes de vários outros problemas, que enchem nossas prisões.

No caso, observou-se que houve sofrimento enquanto se esperava o efeito do emético. O vômito forçado substancializava humilhação para o acusado. Jalloh não falava alemão e dominava insuficientemente o inglês, de modo que não teria compreendido a conversa com os médicos. O uso do remédio não tinha finalidades terapêuticas, o motivo era a busca de prova que incriminasse o acusado. Jalloh ganhou a causa na Corte Europeia. A reclamada foi condenada a pagar custas (5.868,88 euros) e multa (10.000 euros).

Trata-se de mais um exemplo, entre tantos outros que há, que qualificam e que comprovam a lição de Eugenio Zaffaroni, para quem a imbricação entre criminologia e política é inegável, alcançado sua maior evidência em nossos dias, porque toda criminologia se ocupa de reforçar ou criticar os atos políticos[2].  Na encruzilhada criminológica em que nos encontramos, na luta contra o terror, contra a  corrupção, contra a droga e contra todos os maleficios que nos ameçam efetivamente, colhe-se alguma tendência que vislumbra opção pela orientação do célebre político e filósofo de Florença, para quem, a par dos fins justificarem os meios, melhor seria ser temido do que amado.

O dilema entre o humanizante prestígio da teoria do fruto da árvore podre e do intolerante mantra da tolerância zero qualifica a ambiguidade de nossos tempos: é o dilema de Jalloh. Os historiadores do Direito, no futuro, colherão, de nossos arranjos institucionais, farto material para estudo de uma sociedade absolutamente desorientada e desprovida de um projeto emancipador.

 


[1] Affaire Jalloh v. Alemagne, Corte Europeia de Direitos Humanos, Requête 54810-00, caso julgado em 11 de julho de 2006.

[2] Eugenio Raul Zaffaroni, La palabra de los muertos, conferencias de criminologia cautelar, Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 11.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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