Observatório Constitucional

Política judiciária do Supremo Tribunal Federal no Direito Penal Constitucional

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20 de fevereiro de 2016, 7h00

Spacca
Já se tornou pauta comum dentre os constitucionalistas a discussão em torno de qual deve ser o papel da jurisdição constitucional. Certamente, trata-se de temática que somente faz sentido quando o Tribunal Constitucional acaba por exercer papel de primazia institucional ou está em vias de julgar caso de grande repercussão política, social ou econômica. Nessa linha, os estudiosos e doutrinadores preferem a descrição de uma espécie de modelo adequado de postura do tribunal, ações decisórias e comportamentos jurisdicionais que se insiram em um padrão correto de deliberações. Faz-se dessa forma sob uma sugestão implícita de que a necessidade de coerência impõe que esse modelo maior de correção institucional tenha que ter validade para o futuro e para o passado.

As exigências de rigidez científica, de aplicação de métodos e o próprio imperativo da coerência acabam por nos impor interessantes dificuldades, uma vez que, conhecedores de um mundo em transformação, esforçamo-nos por agregar a esse discurso transcendente, elementos de fluidez, de variação. O resultado é a proposição de formatos de ação constitucional para o STF sem assertividade ou sem que tenham real funcionalidade. Nessa linha, o caminho geralmente escolhido é se tentar antecipar exceções, explicar hipóteses tentando controlar todas as variáveis, descrever com detalhes e cuidados excessivos as bases da proposta. Um dos grandes exemplos desse caminho é a construção de narrativas da história da jurisprudência do STF que tentam desenhar uma linha escatológica, uma gradação evolutivo do entendimento dos ministros, tudo isso certamente para demonstrar que nossa própria idéia é, de fato, o fim e objetivo dessa experiência institucional.

A amarração dessa proposta do papel do STF com a noção de direitos fundamentais oferece um eloquente exemplo de como essa “metodologia” não é tão científica como pode parecer.

Após a Constituição de 1988 e os influxos dos estudos europeus em matéria de teoria constitucional passou-se a se naturalizar no Brasil um conjunto de ideias que podem ser bem referenciadas no postulado de que a Constituição é um catálogo de princípios e de direitos fundamentais. Um amplo universo de possibilidades hermenêuticas e criação de linguagem se abriu. Falava-se de direitos fundamentais como se se falasse de uma espécie de chave que nos abriria a porta do futuro do Estado Democrático de Direito e da própria democracia.

Talvez tenha sido no campo do controle concentrado de constitucionalidade que essa explosão de possibilidades tenha melhor adquirido forma. Era uma boa batalha: a interpretação dos direitos fundamentais na proteção da dignidade da pessoa humana contra os abusos e excessos de um legislador pouco integrado à sociedade que o elegeu e pouco preocupado com seus problemas de justiça social. Os direitos fundamentais pareciam ser o fim de tudo e a grande estrada para se construir um país melhor.

Certamente, essa lógica trouxe várias consequências, especialmente em relação à posição do Direito, do jurista, do próprio direito constitucional e do STF como protagonistas desse projeto. Entretanto, esse talvez seja tema para outros trabalhos e reflexões[1].

Meu objetivo aqui é mostrar como esse método de trabalho em direito constitucional parece não estar mais gerando frutos e, pior: ter sido, de certa forma, abandonado naquilo em que ele efetivamente interessaria.

Para isso, o caso do novo direito penal constitucional[2] parece oferecer possibilidade ímpar de estudo tanto em relação à nova significação de tais direitos, como em relação ao papel da jurisdição constitucional nesse modelo. A hipótese científica aqui é bem clara: se no controle de constitucionalidade os direitos fundamentais revelaram-se como o grande parâmetro de compreensão do sistema constitucional, no novo direito penal constitucional tais direitos são apenas estorvo e obstáculo, na busca de outros fins.

Em tempos de combate à impunidade, aos crimes de corrupção e da investigação dos ricos e poderosos, qual deve ser o papel do Supremo Tribunal Federal? Já se afirmou — na linha do “antigo” método — que os Tribunais Constitucionais foram criados logo após a 2ª Grande Guerra e existem exatamente para resguardar direitos fundamentais.

Essa explicação, todavia, parece ter se tornado inconveniente e desconfortável quando agora discutimos o papel revisional do STF nos recursos e habeas corpus em sede de processos penais que investigam casos de corrupção. Seus eventuais titulares não parecem agora dignos o suficiente do uso dessas prerrogativas (as chamadas garantias fundamentais)[3]. Nesses casos, a fome por símbolos que representem um novo país na sua busca particular por justiça social parece confrontar os exageros de aplicação dos direitos fundamentais.

Nesse novo formato, até agora o STF tem preferido tratar dos direitos fundamentais por meio de apelos retóricos, sua defesa se faz na via de obter dicta. O caso concreto (seus fatos e seus personagens) não parece oferecer justificativa suficiente para uma defesa mais incisiva de tais direitos, salvo exceções. Em sede de julgamento de recursos em torno da chamada operação “lava jato”, por exemplo, segundo informações apuradas pela Procuradoria-Geral da República, desde março de 2014, as defesas teriam apresentado 413 recursos das decisões tomadas em 1ª instância e somente 16 delas tiveram algum tipo de sucesso (3,8%)[4].

Certamente o número não significa um posicionamento dos tribunais superiores, a princípio, refratário aos direitos fundamentais e muito menos que os procedimentos adotados em 1ª instância estão infensos a questionamentos. O próprio STF já teve a oportunidade, em análise recursal das questões da “lava jato”, fixar importantes premissas para a sequência das investigações[5]. Aliás, respeitar ou não as garantias fundamentais não é uma questão de adotar cuidados procedimentais, não depende apenas do preparo técnico de quem conduz as investigações. Se assim fosse, tais direitos estariam indelevelmente reduzidos ao cumprimento de um simples check list.[6] Está-se diante de questões mais complexas.[7]

A dicotomia “combate à corrupção X garantias fundamentais” reconstruiu o próprio direito constitucional e, nesse outro esquema, aquelas razões do passado agora não têm mais aplicação. Em realidade, essa mudança é ainda mais profunda no contexto de seus personagens: se naquela fase havia a projeção do jurista X o político (a representar a “guerra santa” entre lei e direitos fundamentais), agora o “sistema jurídico” parece ser induzido internamente a uma nova separação ou identificação de personagens (os que representam o novo valor do combate à corrupção e os que representam o antigo valor dos direitos fundamentais).

Essa nova configuração, entretanto, não vem sem as inexoráveis pitadas passionais a transformar um tema importante como esse em mero combate corporativo ou em simples concorrência entre carreiras jurídicas (ministério público versus advogados)[8].

Gostaria, entretanto, de propor uma reflexão ainda mais ampla desse quadro, antes que se espraie a ideia de que estamos novamente diante de uma “guerra santa” que exige coragem e crueldade das partes e a submissão da bandeira do oponente.

Nesse contexto, renova-se a importância que pode adquirir o STF. Essas duas fases do posicionamento acerca dos direitos fundamentais quer demonstrar que estabelecer fins transcendentes como objetivos do sistema constitucional (e da própria jurisdição constitucional) tende a ter pouca utilidade e, ao contrário, invariavelmente nos leva a estudar a Constituição com base em modismos teóricos.

Não há dúvida de que o STF, por meio de seus componentes, elege, de tempos em tempos, certos objetivos que norteiam suas decisões. Não se trata de uma escolha racional ou de deliberação articulada de maneira organizada em um colegiado. Parece ser mais uma simbiose randômica de visões particulares. Esse processo de catarse interna é difícil de prever e de ser estudado. Nesse processo, entretanto, várias elementos são considerados nessa sopa de interesses institucionais, preocupações políticas, angústias e desejos pessoais. A mídia e a opinião pública acabam por adquirir um papel não desprezível apesar da oposição oficial[9].

Sabendo que o resultado desse processo é a verdadeira “política judiciária” do tribunal             , torna-se evidente concluir que é necessário um altíssimo grau de maturidade institucional para a autocompreensão e condução dessa dinâmica.

Na dicotomia atual do direito penal constitucional “combate à corrupção X direitos fundamentais”, o STF precisa ter a discrição e a austeridade que não vem sendo apresentados pelos personagens, entendendo que nesse tipo de embate o pior que se faz é a demonização de um dos lados ou de uma das bandeiras. Em certos momentos, o tribunal precisar indicar com clareza o prestígio a ser dado ao combate à corrupção, mostrando por meio de sua jurisprudência que o sistema constitucional também alberga essa finalidade como prioritária. Entretanto, o excesso em uma premissa levará invariavelmente ao desequilíbrio, ao abandono de objetivos já muito caros ao Estado Democrático de Direito no Brasil. As garantias fundamentais se amoldaram de maneira inafastável ao nosso sistema, especialmente após a experiência do nefasto Tribunal de Segurança Nacional (TSN) instituído pela Lei nº 244, de 11.09.1936. Saber o momento de decidir por um lado e por outro, fazendo de suas decisões orientações normativas e, ao mesmo tempo, indicações de postura institucional é um dos grandes desafios dos Tribunais Constitucionais no mundo. Esse também é um fardo do STF.

Nessa formatação da “política judiciária” há claramente uma escolha que define um agir político do tribunal. E esse agir político é o que, de fato, importa entender e estudar em matéria de jurisdição constitucional, muito mais do que nossas tentativas de amarrar a atuação do STF em armadilhas linguísticas ou teóricas. Sob uma perspectiva pragmatista nesse novo ambiente do direito penal constitucional, muito mais importante do que defender que a dignidade da pessoa humana no caso A ou B foi violada, é demonstrar que é chegado o momento de o tribunal afirmar, com mais contundência, que essa busca pelo combate à corrupção não pode esquecer determinados postulados e premissas (garantias fundamentais, por exemplo) que a própria experiência já mostrou serem ainda importantes.

A Suprema Corte redesenhou a sociedade norte americana especialmente nos anos 50 e 60 muito com base nessas mudanças da “política judiciária” que prestigiavam certas ideias em determinados momentos. Brown v. Board of Education of Topeka (1954) é o exemplo definitivo, assim como New York Times Co. v. Sullivan (1964), Miranda v. Arizona (1966), Brandenburg v. Ohio (1969) e Roe v. Wade (1973). Na Alemanha, o julgamento do caso Lüth (1958) oferece outro grande exemplo de início de uma “política judiciária” da Corte Constitucional e não deixa de ser uma pena que os juristas achem que o mais importante daquele julgamento tenha sido a “descoberta” de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais. No Brasil dos anos 1960, o próprio STF soube entender que, mesmo diante de consensos da opinião pública, seu papel era ainda de marcar posição e garantir direitos mesmo para personagens já condenados (os clássicos julgamentos de Governadores a partir de 1964 oferecem bom material para confirmar essa assertiva[10]).

Assim sendo, a medida sutil entre um valor e outro não deixa de ser uma percepção política do tribunal, juízo esse que precisa ser variável em espaço curto de tempo de forma a constantemente restabelecer o equilíbrio entre combate à corrupção e direitos fundamentais no processo penal. Todo o caso em sua competência penal originária ou recursal é uma oportunidade de o tribunal redesenhar essa equivalência, e, por isso, em tempo desse novo direito penal constitucional, cada julgamento o STF é chamado à responsabilidade para reconfigurar as bases do futuro do direito constitucional no Brasil[11].

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Nessa linha, faço referência ao nosso “Direitos humanos, direito constitucional e neopragmatismo”. São Paulo: Editora Almedina, 2011;
[2] Com “novo direito penal constitucional” quero me referir à leitura dos direitos fundamentais fixados na Constituição de 1988 (especialmente as chamadas garantias fundamentais) em tempo das grandes operações policiais e investigação de corrupção que ocupam a prioridade dos noticiários;
[3] Nessa linha, cabe lembrar o preciso pensamento exposto pelo Justice Felix Frankfurter que, no voto do caso United States v. Rabinowitz (1950 – pág. 339 U.S. 69) afirmou que na história “as garantias de liberdade são frequentemente esquecidas em controvérsias envolvendo pessoas não tão boas”, a indicar que são especificamente nesses casos que tais garantias se consolidam e se estruturam;
[4] http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/cortes-superiores-revisaram-menos-de-4-das-decisoes-do-juiz-sergio-moro/http://www.conjur.com.br/2015-jul-24/defesas-lava-jato-ganharam-recursos-calcula-mpfhttp://www.conjur.com.br/2015-jul-24/defesas-lava-jato-ganharam-recursos-calcula-mpf
[5] Estima-se 18 decisões com essa perfil dadas pelo STF: decisão na RCL nº 17.623 (18.05.2014); decisão na RCL nº 19.303 (21.01.2015); HC nº 125.555 (julgamento de 10.02.2015); HC nº 127.186 (julgamento de 28.04.2015); a decisão no HC nº 127.823 (05.05.2015); decisão no AgReg na RCL nº 19.229 (16.06.2015); INQ-QO nº 4.130 (julgamento em 23.09.2015 com a importante decisão acerca do desmembramento do processo); decisão no RCL nº 21.802 (02.10.2015);  a decisão no HC nº 130.254 (16.10.2015); HC nº 130.636 (julgamento de 15.12.2015); decisão no HC nº 132.406 (15.01.2016); 
[6] Essa visão simplista do processo – que ainda reduz, em matéria penal, direitos fundamentais a um embaraço burocrático – se reafirma diante dos casos de declaração de nulidade de famosas investigações/operações como ocorreu nas operações Satiagraha, Castelo de Areia e Chacal, para citar alguns casos. Tais nulidades indicaram equivocadamente para alguns que basta cautela procedimental para tocar uma operação perfeita e livre de questionamentos.
[7] O caso recente da possibilidade de uso de documentos enviados pelas autoridades suíças como prova da movimentação bancárias no exterior de empresas investigadas demonstra a complexidade das questões envolvidas (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1739051-governo-da-suica-informou-a-brasilia-sobre-validade-das-provas-contra-odebrecht.shtml);
[8] Exemplo recente desse fato foi a divulgação da “Carta de Advogados” publicada em jornais de grande circulação em 15.01.2016 contra a forma de condução das investigações da “lava-jato” e a resposta dada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). http://www.conjur.com.br/2016-jan-15/advogados-acusam-lava-jato-desrespeitar-garantias-fundamentais
[9] A jurisprudência do STF tem afirmado categoricamente, nessa linha, que o clamor público não deve sustentar a prisão preventiva (“É que a admissão desta medida, com exclusivo apoio na indignação popular, tornaria o Poder Judiciário refém de reações coletivas. Reações, estas, não raras vezes açodadas, atécnicas e ditadas por mero impulso ou passionalidade momentânea” HC-QO nº 85.298/SP, relator para o acórdão Ministro Carlos Britto, DJ de 04.11.2005). Também na mesma linha, HC nº 80.719/SP, Ministro Celso de Mello, DJ de 28.09.2001;
[10] Plínio Coelho, governador do Amazonas (HC nº 41.049, julgado em 04.11.1964); Mauro Borges, governador de Goiás (HC nº 41.296, julgado em 23.11.1964); Miguel Arraes, governador de Pernambuco (HC nº 42.108, julgado em 19.04.1965); João Seixas Dória, governador de Sergipe (HC nº 46.042, julgado em 21.11.1968);
[11] Tal como acabou de se fazer no julgamento de 17.02.2016 do plenário do Tribunal acerca do HC nº 126.292 sobre a possibilidade de execução provisória da sentença penal condenatória quando já tenha havido sua confirmação em 2ª instância. Certamente entendeu-se politicamente que a configuração ampla do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF) nesses tempos, indicaria uma noção pouco confortável em matéria de combate à corrupção no âmbito das condenações da Lava-Jato.

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