Opinião

Cidadania condenada, em segunda instância, pelo Supremo Tribunal Fedeal

Autor

  • Délio Lins e Silva Júnior

    é advogado criminalista professor Universitário e ex-conselheiro da OAB-DF. Especialista em Direito Penal Econômico mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Criminais todos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

19 de fevereiro de 2016, 17h00

Dia 17 de fevereiro de 2016, pouco mais de dez anos após o julgamento do HC 85.209, de relatoria do ministro Marco Aurélio, realizado no dia 17/11/2005 na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, cujo entendimento foi referendado pelo Plenário daquela corte em 2009 nos autos do HC 84.078, de relatoria do ministro Eros Grau, (com alguns poucos percalços no caminho, é verdade) vem o julgamento do HC 126.292 por aquele mesmo Plenário, onde denegada a ordem por maioria de 7 votos contra 4.

O que de comum entre eles? O tema. A discussão de quais seriam os limites do Princípio da Presunção de Inocência (e não se admite aqui chamá-lo de não-culpabilidade, pois o texto constitucional é claro) e em que momento se poderia dar início ao cumprimento da pena criminal imposta pelo Estado.

O que de diferente entre eles? A interpretação dada ao princípio, pois, enquanto naquele julgado de 2009 se consagrou que até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória não se poderia dar início ao cumprimento da pena, neste último se deu uma guinada total de entendimento e passou-se a chancelar que os tribunais de segundo grau do país determinem o imediato encarceramento daqueles condenados que tenham suas sentenças confirmadas por uma segunda instância.

Segundo o que divulgado pelos sites de notícias (infelizmente este que vos escreve estava em audiência quando do julgamento e não teve como assistir a sessão), as justificativas dos votos que rasgaram a cláusula pétrea insculpida no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, giraram em torno de que “os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito” (ministro Teori Zavascki – relator); que “sobre a possibilidade de se cometerem equívocos, o ministro lembrou que existem instrumentos possíveis, como medidas cautelares e mesmo o habeas corpus. Além disso, depois da entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/2004, os recursos extraordinários só podem ser conhecidos e julgados pelo STF se, além de tratarem de matéria eminentemente constitucional, apresentarem repercussão geral, extrapolando os interesses das partes” (ministro Teori Zavascki – relator); que “a condenação de primeiro grau mantida em apelação inverte a presunção de inocência”. (ministro Barroso ao seguir o relator); “o que estou colocando é que é preciso que vejamos a presunção de inocência como um princípio relevantíssimo para a ordem constitucional, mas suscetível de ser conformado, tendo em vista inclusive as circunstâncias de aplicação no caso do Direito Penal e Processual Penal” (Gilmar Mendes, citando o direito alemão para seguir o relator); e, pior, “quando uma interpretação constitucional não encontra eco no tecido social, quando a sociedade não a aceita, ela [a interpretação] fica disfuncional. É fundamental o abandono dos precedentes em virtude da incongruência social”.

Com todo o devido respeito a esses eminentes ministros, nenhum dos argumentos é novo e a discussão acerca do Princípio da Presunção de Inocência não vem de hoje, e nem se prende ao nosso país.

Nesse ponto, convém que se faça um rápido escorço histórico lembrando o país que, embora não seja o berço do citado princípio, é o que mais trouxe luz aos debates sobre o tema ao longo da história — Itália —, para demonstrar que sua interpretação e limites de atuação foi alvo constante de inúmeras celeumas e alterações substanciais, sempre de acordo com as conveniências históricas de cada época.

No século XVIII, Beccaria transformou-se no divisor de águas entre o processo penal nitidamente inquisitório então reinante e uma nova corrente de pensamento, essencialmente liberal, que trazia o respeito à dignidade humana como premissa básica. Sua brilhante e sempre atual obra — Dos Delitos e das Penas1 — transformou-se no marco inicial da luta contra o sistema inquisitório então reinante na Europa, e, consequentemente, para o desenvolvimento da ideia de presunção de inocência.

Com Beccaria, surgiu no direito penal europeu um pensamento de cunho essencialmente liberal, de clara influência iluminista, que trata a dignidade humana como valor essencial aos cidadãos. Para o referido autor, o mais importante não poderia ser provar a existência do delito de qualquer forma, mas garantir que essa prova se desse de forma a preservar a dignidade humana e não deixar dúvidas acerca da culpabilidade do acusado.

Foi quando ganhou força a Escola Clássica Italiana, que tendo Carrara como principal expoente, entendia o processo penal como possuidor de uma dúplice função. Para seus seguidores, embora o processo penal devesse castigar os criminosos, não poderia esquecer-se de evitar que fossem condenados os inocentes.[2] Assim, nas palavras de seu líder, “o direito é a liberdade. A ciência criminal bem entendida é, pois, o supremo código da liberdade, que tem por objeto subtrair o homem da tirania dos outros e ajudá-lo a livrar-se da tirania de si mesmo e de suas próprias paixões”.

Seguindo tal linha de raciocínio, depreende-se que a concepção de direito processual penal, para Carrara, tratava a presunção de inocência como um pilar de sustentação a ser respeitado como pressuposto destinado a garantir que o cidadão seja protegido frente à pretensão punitiva estatal, assegurando, por um lado, que um inocente não seja castigado, e, por outro, que o culpado não seja apenado além dos limites necessários.

Aí vem a Escola Criminal Positivista de Ferri, para quem o Princípio da Presunção de Inocência não poderia ter o caráter absoluto que lhe era dado por Carrara e seus adeptos, sob pena de gerar uma perigosa inoperância no sentido de refrear a criminalidade, pois dava aos cidadãos excessivas garantias.

Com isso, para ela o processo passou a ser dividido em duas fases. Uma primeira destinada a comprovar a efetiva culpabilidade do delinquente em termos físicos. Nesta fase, que englobava a instrução e os debates de julgamento, Ferri entendia que a presunção de inocência deveria ser respeitada, pois todos os cidadãos devem ser “honrados” até prova em contrário; e uma segunda, onde não mais deveria prevalecer a presunção de inocência, com o escopo de analisar o delinquente do ponto de vista antropológico, a fim de determinar a pena mais corretamente cabível ao caso em apreço. Segundo tal concepção, a sentença condenatória de primeiro grau seria o marco final de validade da presunção aqui tratada.

As mais contundentes críticas dirigidas ao princípio da presunção de inocência nos termos propostos pela Escola Clássica, porém, foram provenientes da chamada Escola Técnico-Jurídica, especialmente Manzini, para quem a função primordial do processo penal se traduz em tutelar o interesse social de repressão à delinquência. Os interesses sociais e individuais de liberdade, portanto, foram por ele relegados a um segundo plano, não fazendo sentido se presumir a inocência.

Manzini advogava a tese pela qual o importante no processo penal é comprovar a pretensão punitiva estatal em cada caso concreto. Realizando tal função de comprovar a certeza da culpabilidade estariam, consequentemente, sendo tuteladas as liberdades individuais e vedados os possíveis arbítrios por parte dos órgãos estatais.

Esse rápido passeio histórico foi feito aqui única e exclusivamente para demonstrar que o que se vê hoje é a mesma discussão que se arrasta há séculos. O que se fez no julgamento do HC 126.292 nada mais foi do que reeditar a antiga guinada de Carrara a Ferri e, quiçá (só o tempo dirá) a Manzini.

O que preocupa, contudo, são as vias tortas, a forma açodada de fazê-lo, o que coloca em risco anos de maturação do garantismo penal que vem a cada dia perdendo mais espaço nos julgados ao redor do nosso país.

O tema é (e como vimos sempre foi) atual e de suma importância, tanto é que foi regulamentado em vários instrumentos internacionais, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 — “todo acusado é considerado inocente até ser considerado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda de sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.”; passando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos — “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido comprovada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa” —, dentre outros.

O nosso constituinte originário de 1988, seguindo a tendência mundial, fez constar em nossa Carta Magna cidadã o princípio, porém, o fez de forma ainda mais expressa que as demais previsões, consignando que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Em verdade, o nosso legislador constituinte tinha, claramente, a opção de seguir o Princípio da Não-Culpabilidade (aí, sim, com a denominação correta) insculpido nos tratados internacionais citados acima, mas não o fez propositalmente.

Nossa Constituição é explícita ao firmar o trânsito em julgado como marco inicial do cumprimento de uma reprimenda criminal, diferentemente de todos os outros instrumentos internacionais citados pelos eminentes ministros para justificar a “inversão” da presunção de inocência após o julgamento de segunda instância, que se limitam a afirmar que até provada a culpa se presume a inocência sem, no entanto, dispor em que momento se prova a culpa, deixando isso a critério do legislador infra-constitucional.

E diga-se o mesmo também em relação a todas as demais “grandes democracias” do mundo, onde não se lê em seus regramentos qualquer texto similar e tão expresso.

Certo ou errado? O Brasil é, como alguns questionam, o único país certo do mundo nesse ponto? Não é essa a questão.

O momento em que gerada a nossa Carta Magna demandava muito cuidado, pois vínhamos de uma época sombria da nossa história e, como a Escola Clássica Italiana, precisávamos frear os abusos do Estado por meio de um sistema penal que tivesse o Princípio da Presunção de Inocência como base angular. Tinham os nossos legisladores a missão de afastar os fantasmas do período ditatorial do qual saíamos e, com isso, a Presunção de Inocência foi tratada com um carinho todo especial.

Talvez até o atual momento do país deva nos levar a uma nova reflexão, no sentido de avaliar se a nossa Constituição Federal está certa ou não em exigir o trânsito em julgado para a configuração final da culpa, pois ponto comum entre todos os operadores do direito é que o nosso sistema penal não funciona bem; (para ninguém, pobre, rico, homem, mulher, branco ou preto) que a corrupção é um mal a ser extirpado da nossa sociedade; que a população está no limite da tolerância; que a impunidade beneficia os maus; enfim, que precisamos de mudanças em todos os setores.

Mas uma mudança tão radical de paradigma tem que ser feita com muito cuidado, bem pensada, dentro dos estritos limites legais e pensando em todas as consequências, afinal de contas, os fins não justificam os meios e o direito penal nunca será a salvação para os males da nossa sociedade.

E nesse ponto, existe uma gritante e fundamental diferença entre o Brasil e os “demais países” do mundo a ser levada em consideração: a existência no texto da lei maior, inserida no rol de cláusulas pétreas, teoricamente imutáveis, um expresso condicionador ao início de cumprimento da penalidade penal — o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Nesse condicionador, com a devida vênia, não existem espaços interpretativos. Trânsito em julgado é (e sempre será) trânsito em julgado e enquanto a Constituição Federal disser que esse marco deve ser superado para se dar início a uma reprimenda penal, assim deve ser, sob pena de se rasgar uma cláusula pétrea sem o menor pudor. Tal previsão não existe por mero capricho, mas sim por sabermos que mesmo nas matérias de direito discutidas nos tribunais superiores pode se chegar à absolvição de determinada pessoa.

Os anseios populares devem ser ouvidos, sim, mas pelas nossas casas legislativas. O Poder Judiciário não pode pautar sua atuação pelo clamor social, mas sim pelas leis existentes e vigentes em nosso ordenamento jurídico. O “eco no tecido social” não pode ser míope e mudar de acordo com as conveniências de cada composição que a nossa Suprema Corte venha a ter.

A partir de hoje não se assustem se os demais incisos do artigo 5º, da nossa Constituição Federal, passarem aos poucos a serem mitigados de forma expressa e descarada, pois o aval para isso foi dado pelo Plenário da nossa Suprema Corte, numa torta interpretação do que não é interpretável.

Se o que se pretende é acabar ou modelar o Princípio da Presunção da Inocência, que se altere a Constituição e assim o faça, mas pelos meios próprios, sem rasgar a nossa Constituição Federal e suprimir garantias fundamentais tidas como irrevogáveis.

Conclui-se dizendo que se ao Supremo Tribunal Federal cabe o último erro, nesta quarta-feira (17/2) realmente foi, como disse o ministro Marco Aurélio, uma “triste tarde” para aquela corte e para o país.


1 Giorgio Marinucci define referida obra como uma “obra genial, elegante na forma, sugestiva na linguagem, desenvolta e agradável na exposição, convincente e impressionante na sua eficácia”. Escrita no século XVIII, essa revolucionária obra tratou de aspectos hoje sedimentados do direito penal, mas que à época consistiam em verdadeiras “heresias” contra o sistema. Falava Beccaria em abolição da tortura e da pena de morte, tratava a pena com uma função de prevenção, sob um aspecto ligado à necessidade e proporcionalidade, além de impor limites à atuação estatal no exercício do ius puniendi. MARINUCCI, Giorgio. Cesare Beccaria, um nosso contemporâneo. In BECCARIA, Cesare., Dos delitos e das penas, edição da Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1766, pág 32 e ss.

2 CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal, parte geral, volume 1, Campinas: LZN Editora, 2002, pág 292.

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    é advogado criminalista, professor Universitário e ex-conselheiro da OAB-DF. Especialista em Direito Penal Econômico, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Criminais, todos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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