Opinião

Estamos em plena marcha rumo a um fordismo penal

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19 de fevereiro de 2016, 16h15

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão
(…)
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão”

Pensamos em iniciar este artigo com uma receita de bolo, já que não temos mais uma certeza da democracia em que vivemos (um dia tivemos?). Em todo caso, é um imperativo ético tratar do acontecido, e é isso que faremos.

É de notório conhecimento que em uma quarta-feira cinzenta o Supremo Tribunal Federal escreveu a sangue mais uma de suas páginas históricas. No dia 17 de fevereiro de 2016 morreu, por complicações “médicas” e falência múltipla dos órgãos envolvidos na persecução penal, a já tão torturada presunção de inocência que, ao que parece, agora, se destina à condição de letra morta.

Mas por que razão é uma morte por complicações? E por qual razão a discussão é importante? Basta olhar serenamente para os rituais encenados em nossos colegiados, para perceber que não é de hoje que severos ataques vêm sendo feitos ao princípio constitucional da presunção de inocência. Para constatar essa triste realidade, basta olhar para a história e nossas chagas. Precisamos falar da “Escola-Base”. Precisamos berrar à memória dos “Irmãos Naves”. De acertos e erros vivem os homens. No geral sucessivas derrotas têm sido experimentadas por aqueles que possuem, no mínimo, preocupações democráticas.

Em todo caso, é preciso lembrar aqui toda a dimensão que a presunção de inocência carrega consigo. Para começar esse princípio versa sobre uma postura que todo o sistema jurídico deve adotar em relação ao acusado, franqueando a ele todos os direitos possíveis, como cidadão que é.

Assim, quando o princípio da presunção de inocência é levado a sério seus impactos implicariam em:

  • Predeterminar a adoção da ‘verdade processual’, obtida a partir da verificação empírica das teses acusatórias (Ferraijoli), destinada à limitação da ‘verdade real’. Nesse caso, ganha notória função limitadora do poder punitivo a prova, que trata de conter a vertigem da evidência e seu caráter alucinatório.
  • Como consequência, a obtenção de tal ‘verdade processual’ determina um tipo de processo, orientado pelo sistema acusatório, que impõe a estrutura dialética e mantém o juiz em estado de alheamento (rechaço da figura do juiz inquisidor — com poderes investigatórios/instrutórios — e consagração do juiz de garantias ou garantidor).
  • Dentro do processo, se traduz em regras para o julgamento, orientando a decisão judicial sobre os fatos (carga da prova).
  • Traduz-se, por ultimo, em regras de tratamento do acusado, posto que a intervenção do processo penal se dá sobre um inocente. [1]

No entanto, como esperar que isso possa se concretizar quando, nos autos do Habeas Corpus 126.292, foi proferida decisão pelo Supremo Tribunal Federal, onde basicamente definiu-se que é lícito prender mesmo sem o trânsito em julgado, após uma decisão de segunda instância. Como é possível vislumbrar com maior profundidade um princípio tão importante, se nem o básico se respeita?

Por qual razão todo juridismo universal da sociedade moderna é incapaz de controlar o panoptismo difundido de nossas instituições [2]? É preciso encarar a situação dos fatos para além das obscuras teorias de princípios, de dogmatismos e, enfim, do quixotismo natural de todos os idealistas.

Precisamos entender que estamos diante de instituições intrinsecamente políticas, que não vão se portar de acordo com os limites estabelecidos, ainda que constitucionais, enquanto o trato dado para a questão, ou seja, a resposta de juristas (e também cidadãos preocupadas com o prelúdio autoritário que se confirma), não tratarem o problema do decisionismo como a questão política que está!

De nada adianta estabelecer limites legais para a atuação do Estado, se, no entanto, as estruturas concebidas para processar a lógica proposta, são com ela totalmente incompatíveis!

Seria como esperar que um carro pudesse funcionar com o motor de trem. É preciso reconhecer que os limites legais que se pretende firmar, em uma realidade burocrática incompatível, não poderiam passar mesmo de retórica, e, em uma hipótese mais otimista, de uma esperança.

Estamos em plena marcha rumo a um fordismo penal [3], em que indivíduos não são muito mais que objetos genéricos, em uma grande fábrica de persecução penal, e, na percepção de determinadas autoridades, que lidam com eles, não são muito mais que entes genéricos.

Enfim, quando isso acontece estão criando uma verdadeira distância sideral [4] entre ser julgante/investigante/denunciante e ser julgado, e a figura que surge é de uma imensa locomotiva da pena que ninguém ao certo controla bem e que corre em direção do artigo 5º, da Constituição Federal.

Esfacelamos e fragilizamos todo e qualquer vínculo de sociabilidade e solidariedade, tínhamos tudo diante de nós… não temos nada diante de nós [5].

Além de toda escatologia até então apresentada, temos muitas pessoas com tudo a perder ao serem processadas, enquanto que as autoridades investidas de poder pelo Estado aparecem em uma dicotomia antifrágil, em que as posições são expostas, sem qualquer risco de responsabilização pessoal dos interlocutores [6].

Como é possível que exista uma mínima aproximação ontológica, para que o burocrata seja responsável, quando a estrutura ôntica da burocracia assim não é? É preciso que as pessoas, preocupadas com os limites minimamente democráticos, comecem a se posicionar a respeito da total irresponsabilidade jurídica dos detentores do poder, pelos atos que deles emanam.

Se “eminentes” podem se posicionar exaltando uma aproximação da Common Law, “humildes” devem lhes perguntar: até onde vai essa aproximação? Estariam dispostos a mudar o regime para podermos instituir o recall, por exemplo?

A aproximação de sistemas jurídicos “alienígenas”, que estamos vivendo, diz respeito apenas à inflação do poder punitivo, e não de suas formas de controle correlatas. Essa incomoda inconveniência é esquecida por certos burocratas.

Tão criticado desvirtuamento da execução da pena, derivado da denominada “execução provisória”, é agora acolhido como orientação penal, em um julgamento firmado sob a ótica da conveniência midiática, produzida em uma sociedade controlada pelo populismo punitivista, não para garantir que àquele condenado, ainda digno de proteção jurídica quanto à presunção de inocência, possa, em estando encarcerado, já ter benefícios decorrentes de uma prestação de contas para com o Estado, mas sim para garantir o cumprimento de decisões condenatórias provisórias, como se definitivas fossem, em uma ilógica inversão dos valores que a Constituição Federal de 1988 impôs, fragilizando o sistema e o Estado Democrático de Direito.

“Suprimida a justiça, em que se tornam os reinos senão em vastos campos de pilhagem? Que são esses campos de pilhagem senão pequenos reinos?” (Santo Agostinho, A Cidade de Deus).

Realismo ou barbárie?


[1] LOPES JR., Aury. Investigação preliminar no Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Página 71.

[2] FOUCAULT, Michel; Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete; 39ª edição, Petrópolis: Vozes, 2011; p. 210.

[3] Sobre o tema: BRAGA, Ruy. A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial. São Paulo: Xamã, 2003; PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século XX: taylorismo, fordismo e toyotismo. 2ª edição, São Paulo: Expressão Popular, 2010. O “fordismo” consiste em doutrina que deriva do modelo de produção em massa criado pelo empresário norte-americano Henry Ford, em 1914. Este modelo de produção tem como principal característica a especialização de cada pessoa integrante da cadeia produtiva, de forma a ficar responsável exclusivamente por apenas uma etapa do processo produtivo, por vezes desconhecendo até mesmo as características do produto final.

[4] HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O Sistema penal em questão. 1ª edição, tradução de Maria Lúcia Karam, Niteroi: LUAM Editora Ltda., 1993, pp. 76/77.

[5] DICKENS, Charles. Um conto de duas cidades. Tradução de Débora Landsberg. São Paulo: Estação Liberdade, 2010, p. 83.

[6] TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil. Tradução de Eduardo Rieche. 1ª ed. Rio de Janeiro: Best Business, 2014.

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