Olhar Econômico

Solução de litígio pode estar no exame da mecânica do tratado internacional

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

18 de fevereiro de 2016, 7h10

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Todos os cultores e operadores do Direito, independentemente do ramo a que se dediquem, devem conhecer a mecânica do tratado internacional. Inobstante seja ele, em sua forma, uma categoria de Direito Internacional Público, regido por esse direito; em sua substância, pode ele  veicular qualquer ramo do Direito. Por outro lado, o verdadeiro conhecimento jurídico deve ser conhecimento científico, que busca as causas e as raízes mais profundas; e não o conhecimento vulgar, limitado unicamente à superfície.

Aspecto recente, na história do tratado internacional que se conta em milênios, refere-se ao depositário. Enquanto os chefes de Estado possuíam competência ilimitada e incondicional para representar o Estado — jus repraesentationis omnimodae —, os tratados por eles concluídos possuíam caráter quase privado, seguindo a lógica do contrato bilateral. No desconhecimento de outro formado, grandes convenções, como a de Westfália (1648), Aix-la-Chapelle (1748) e de Paris (1815), eram consideradas o somatório de tratados bilaterais, concluídos entre as partes, sem qualquer liame jurídico entre si. Em outras palavras, não passavam de um feixe de tratados bilaterais.

A ideia de tratado multilateral desenvolveu-se em paralelo à realização de conferências internacionais, a partir do século XIX, quando nelas passaram-se a se discutir os mais variados assuntos. Até meados desse século, manteve-se a forma intermediária do tratado semicoletivo: vários Estados eram signatários de um tratado, mas um grupo constituía uma parte, enquanto outro conjunto de Estados representava outra. Exemplo: Convenção dos Estreitos do Mar Negro (1856).

A Ata Final do Congresso de Viena (1815) foi o primeiro tratado multilateral coletivo, pois toda a negociação passou a constar de instrumento único, assinado por todas as partes tendo sido feitos e assinados tanto exemplares quantos os signatários. A simplificação procedimental haveria de ocorrer, com relação à Convenção Sanitária (1852), cujo original único foi assinado por todos os plenipotenciários, ficando depositado junto ao governo francês. Surgiram assim o tratado multilateral de instrumento único e a figura do depositário.

Criada voluntariamente pelos Estados, em razão da simplificação e da comodidade, alguns aspectos da figura do depositário foram examinados pela Corte Internacional de Justiça, na Opinião Consultiva sobre reservas à Convenção sobre o Genocídio e no Julgamento sobre o Direito de Passagem em Território da Índia. Na Opinião, a corte disse que a “tarefa do secretário-geral da ONU deveria limitar-se a receber as reservas e a notificá-las”. Já o julgamento asseverou que o próprio tratado determina os efeitos jurídicos dos instrumentos depositados, tendo qualquer outra regra caráter apenas residual.

A instituição do depositário começou a ganhar autonomia no panorama do direito dos tratados moderno, graças ao último relator, Waldock, da Comissão de Direito Internacional da ONU, que preparou o projeto de artigos da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969. Nessa convenção, os artigos 76 a 79 da Parte VII, intitulada “Depositários, Notificações, Correções e Registro”, apresentam o depositário como instituição autônoma do direito dos tratados contemporâneo, dotada de direitos e deveres próprios, além de papel independente.

Relativamente a quem pode ser depositário, a Convenção de Viena de 1969, de maneira abrangente, acolhe todas as possibilidades admitidas pela prática internacional: um ou mais Estados, uma organização internacional ou seu principal funcionário administrativo. Como a instituição do depósito surgiu na época das conferências, a escolha do depositário, geralmente, recaía sobre o governo do local sede da conferência. Ainda hoje a figura do Estado-depositário existe: a carta da Organização da Unidade Africana encontra-se depositada junto ao governo da Etiópia. Entretanto, com a institucionalização da comunidade internacional e o desenvolvimento da praxe de se concluir tratados sob a égide de organização internacional permanente, passou-se a confiar o depósito a tais organizações: depositário-organização. Exemplo dessa espécie é a carta da FAO, relativamente ao seu próprio instrumento constitutivo. Em grandes organizações de caráter político, concede-se o depósito ao secretário-geral da organização: depositário-funcionário, vigorante na ONU, na OEA etc.

A figura do depósito foi filha da necessidade. Essa mesma necessidade acrescentaria uma classe a mais, o depositário múltiplo ou Estados-depositários. Em tese, a pluralidade de depositário pode resultar da sucessão de depositários, tendo cada um a totalidade das atribuições durante o período de suas funções. Por outro lado, em razão da pluralidade das funções do depositário, é possível dividi-la, confiando algumas funções a um depositário, deixando a outro, as demais. Finalmente, há a possibilidade de se instituir depositários com os mesmos direitos, atribuições e funções, agindo paralelamente.  A fórmula Estados-depositários foi muito utilizada durante a Guerra Fria, para evitar, por parte dos depositários, a não aceitação de adesão vinda de Estados não reconhecidos por eles. Essa figura foi iniciada pelo Tratado de Proscrição de Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no Espaço Cósmico e sob a Água, em que se estabeleceram como depositários de igual nível os governos de Moscou, Washington e Londres. Embora esse sistema possa ser útil em certos casos, sua generalização constituir-se-ia em retrocesso ao período anterior ao surgimento da figura do depositário!

As funções do depositário são de caráter internacional, devendo o mesmo em sua implementação atuar com imparcialidade. Todos os atos e instrumentos relacionados com a vida dos tratados acarretam notificações e comunicações, feitas pelos depositários no caso de tratados multilaterais. O artigo 77 da Convenção de Viena de 1969 explicita, sem ser exaustivo, as funções do depositário. Esse artigo é regra supletiva, pois dá primazia ao que o tratado disponha ou as partes convenham. O artigo 79 descreve a função do depositário concernente à correção de erros de redação ou tipográficos, porventura existentes em tratados.

Das classificações existentes sobre as funções do depositário, a de Diez de Velasco é a mais completa[1]. Ele a elaborou baseado em critério de simplificação funcional, tripartindo as funções do depositário, conforme se revestissem mais de características notariais e de arquivista; de recepção, informação e transmissão; ou de exame, qualificação e apreciação. Pertencem à primeira espécie: conservar o texto do tratado; conservar os instrumentos de ratificação, adesão e denúncia do tratado; preparar cópias autenticadas; preparar protocolos de ratificação, adesão e entrada em vigor; e registrar ou pedir o registro. São relativas à segunda espécie: receber e transmitir o texto do tratado; receber e transmitir os instrumentos de ratificação, adesão e denúncia; notificar a entrada em vigor do tratado; notificar a extinção do tratado; receber e notificar as petições de revisão e denúncia; receber e notificar a aplicação de tratados a territórios não autônomos, de que os Estados sejam titulares das relações internacionais; preparar a lista dos Estados para os quais o tratado permanece aberto; e a função de informação derivada de acordo de tipo humanitário. Finalmente as funções da terceira espécie são: determinar as partes no tratado e determinar a entrada em vigor do tratado.

A doutrina não é concorde acerca da natureza jurídica do depositário. Para alguns, o depositário é meramente um intermediário entre as partes. Para outros, não pode ser considerado como representante das partes. Havendo os que consideram ser ele mandatário das partes. Importa considerar, entretanto, que o depositário é um centro de ação internacional, regulado por normas de Direito Internacional, direito esse que lhe atribui os efeitos jurídicos. As manifestações da atividade do depositário, por ser ele um órgão internacional funcional, são fatos jurídicos internacionais, e não atos jurídicos que são próprios de sujeitos de direito internacional.

É de grande importância conhecer e poder julgar se um tratado internacional, em todas as fases de sua conclusão, inclusive e em especial, na que se refere ao depositário, seguiu as normas jurídicas pertinentes e, por consequência, e apto a criar ou não direitos ou deveres para determina pessoa física ou jurídica. Tal perquirição é raramente feita por advogados, embora esse conhecimento possa representar a diferença entre conseguir ou não deslindar, apropriadamente, determinada questão.  


[1] Rodas, João Grandino, A Publicidade dos Tratados Internacionais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1980, p. 183.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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