Diário de Classe

Reflexão sobre a retórica do ilícito e do irregular no processo penal brasileiro

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13 de fevereiro de 2016, 7h01

Spacca
Nesta semana, esta ConJur noticiou, em reportagem assinada por Tadeu Rover, a decisão exarada pelo juiz Sergio Moro que manteve nos autos de um dos processos da operação “lava jato”, provas reconhecidas como ilegais pelo judiciário suíço. A decisão apreciou os pedidos de desconsideração de tais provas de réus ligados à construtora Odebrecht e os motivos ensejadores da negativa foram fartamente noticiados pela imprensa. Na coluna dessa semana, quero discutir algumas implicações que podem ser deduzidas dos motivos utilizados pelo juiz para justificar sua decisão. Não estou preocupado com o caso em si (que envolve uma série de sentimentos nacionais que participam de uma espécie de catarse coletiva diante da “limpeza ética” que a operação “lava jato” [sic] estaria a perpetrar). Quero retratar um problema que, embora seja derivado do contexto fático envolvido nesse específico processo, é dotado de certo grau de abstração e generalidade.

Refiro-me à distinção que a decisão faz entre o ilícito e o irregular. Nessa perspectiva, a prova só seria írrita se pudesse ser enquadrada dentro do espectro conceitual do ilícito. Fora desse esquadro, o vício, ainda que existente, seria sanável porque a ofensa ao Direito deveria ser, de certo modo, tolerada. Nesse último caso, estaríamos na seara da irregularidade que se manifestaria, por exemplo, nos casos de vícios procedimentais que pudessem ser superados no desenrolar do processo.

A decisão joga ainda com uma analogia com o regime de nulidades constantes do Código de Processo Penal brasileiro (de lógica marcadamente inquisitorial) deixando no âmbito do não dito a ideia de que não haveria que se falar em nulidade, uma vez que a falha procedimental da justiça suíça não teria gerado nenhum prejuízo para a defesa.

Há ainda que se mencionar a “batalha de significações” que se pretende estabelecer a partir de uma tentativa – retórica – de delimitar campos semânticos distintos para o ilícito e o ilegal por meio de uma menção no sentido de que a tradução da decisão suíça providenciada pelos réus teria vertido a palavra inglesa illegal para o português ilícito.

Para a decisão, essa tradução estaria errada ou, pelo menos, imprecisa. Daria uma importância para o assentado que é bem menor do que a realidade. No conjunto do argumentos da decisão, o que se pode depreender é que a prova ilícita seria aquela que atenta diretamente contra direitos fundamentais dos acusados; ao passo que a prova ilegal, por pretensamente não ofender estes mesmo direitos fundamentais, teria um significado menor do que a primeira, podendo ser aproveitada no processo.

A decisão, ao contrário do se pode imaginar, não surpreende a este escriba. Na verdade, já há muito tempo o pensamento jurídico brasileiro flerta com um tipo de imaginário que vê nas questões procedimentais – e até mesmo processuais – um valor menor do que naquelas em que se discute o direito material. Nessa perspectiva, não pode o processo ser visto como um “fim em si mesmo”. Isso seria um empecilho para a realização do direito material, desvirtuando-se o Direito em sua própria raison d'être. Daí decorrem as conhecidas propostas teóricas da instrumentalidade do processo, flexibilização procedimental, etc..

No campo do processo penal, quando a clientela estava situada no andar de baixo, poucas eram as vozes que se inclinavam contra uma tendência cristalizada na jurisprudência de se condenar o acusado com base em provas produzidas na fase do inquérito policial e que não tiveram confirmação clara durante a instrução processual com contraditório. A lógica que preside esse raciocínio é a mesma que a anterior. Um mero problema procedimental? Uma simples formalidade? Não pode obstar a realização da justiça que claramente está evidenciada no bojo probatório trazido aos autos. Ainda que esse bojo seja quase todo produzido na fase inquisitorial. Quantas pessoas foram condenadas e ainda hoje estão cumprindo pena por força de decisões fundamentadas nesse tipo de argumento?

A despeito disso, sabemos que uma das características mais essenciais do Direito moderno – que se observa em sociedades complexas – se dá pela autonomização do processo com relação ao direito material e com a consequente sofisticação procedimental. Nesse sentido, não existe Estado de Direito sem procedimentos regulados pelo… Direito. E mais: em uma democracia – preocupada com a construção de um governo limitado – o processo e os procedimentos assumem uma posição singular, na medida em que servem como técnica de bloqueio contra arbitrariedades, personalismos, paternalismos, etc..

Esse rebaixamento das questões procedimentais a um formalismo estéril que volta e meia aparece nos discursos oficiais sobre o direito nos atira na direção de uma pré-modernidade, de julgamentos penais sem garantias e do processo civil como um quase-contrato.

Ora, em uma sociedade complexa, ninguém se submete às determinações do direito porque emanadas de uma mente privilegiada que se coloca como reserva moral da comunidade. Ao contrário, cumpre-se o direito porque ele foi validado por um rigoroso contexto de regras processuais e procedimentais que dão publicidade e transparência às decisões do poder político (no exercício de qualquer uma de suas funções) e justificado com base nos princípios da comunidade política.

Assim, o descumprimento de um procedimento viola sim direitos fundamentais. Em uma democracia, processo e procedimentos são garantias dos cidadãos contra arbitrariedades praticadas pelos agentes públicos. E isso toma ares ainda mais vistosos quando estamos no âmbito do processo penal. Seu descumprimento, por mais singelo que seja, não é um minus com relação a outros tipos de “ilegalidades” ou “ilicitudes”. E isso vale para todos os participantes da comunidade política: seja o “José das Sandálias”, condenado com base em provas produzidas na fase inquisitorial; Seja o “João sapato-de-cromo-alemão” que teve provas produzidas irregularmente juntadas ao seu processo.

Juiz decide por princípio. E isso implica compreender que o procedimento a ser seguido — no tocante à (i)licitude da prova — é condição de possibilidade para a democracia, como bem vem denunciando de há muito o professor Lenio Streck. Por isso, essa distinção entre irregularidade e ilicitude é meramente retórica. Não seguir o procedimento para a obtenção da prova já é, por si, uma ilicitude. Daí que — e de novo chamo à colação Streck — já não se pode demandar o ultrapassado “princípio” de que não há nulidade sem prejuízo. Isso valia para o estatalismo do século XIX. Hoje já não vale.

E isso é assim independentemente das flexões conceituais que a ginástica da decisão de Moro pretendeu efetuar: como retórica é pouco eficiente, só convence aos incautos. Como técnica é altamente discutível, ao invés de iluminar a discussão serve apenas para atirá-la ainda mais nas sombras.

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