Interesse Público

O caráter definitivo da imissão provisória na posse

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11 de fevereiro de 2016, 7h00

Spacca
A imissão provisória na posse é instituto inerente à desapropriação. Equivale, para o titular do domínio, à perda antecipada da posse do bem desapropriado, possível, mediante autorização judicial, quando o poder expropriante declara a urgência da posse e deposita determinada importância em juízo, em favor do proprietário. Está prevista no artigo 15 da lei de desapropriações (Decreto-lei 3.365/41), cujo parágrafo 1º define a forma de cálculo do valor a ser depositado pelo poder público como requisito para obtenção da imissão provisória na posse. O dispositivo apresenta quatro critérios, um a ser utilizado na falta do anterior: os dois primeiros levam em consideração o valor locativo do bem; o terceiro corresponde ao valor cadastral para fins de imposto territorial, urbano ou rural, desde que atualizado no ano anterior; e o quarto é fixado pelo juiz, tendo em vista a época em que houver sido fixado originariamente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel.

Nenhum desses critérios admite impugnação pelo expropriado. Em nenhuma das hipóteses, é respeitado o princípio do devido processo legal, tal como previsto no artigo 5º, LIV e LV, da Constituição.

Resultado: o proprietário, embora seja titular do direito de propriedade, como direito fundamental assegurado pelo artigo 5º, XXII, da Constituição, e embora seja protegido pela imposição de que a desapropriação se faça mediante prévia e justa indenização, acaba perdendo a posse, logo no início da lide, mediante o levantamento de parte (até 80%) do valor depositado, muitas vezes insuficiente para adquirir outro imóvel ou, pelo menos, outro imóvel de valor de mercado igual ou aproximado do anterior.

Em decorrência disso, a imissão provisória na posse destoa do instituto da desapropriação, prevista tradicionalmente como uma exceção ao direito de propriedade, com a condição de que, antes da perda do bem, o expropriado tenha o seu patrimônio recomposto mediante o recebimento da indenização correspondente. Essa exigência esteve presente em todas as Constituições do Brasil, desde a do Império. Na desapropriação, convertem-se os valores: onde existia o bem desapropriado, passa a existir o seu valor pecuniário.

Poder-se-á argumentar que, com a imissão provisória, o proprietário perde apenas a posse, mas mantém o domínio. Porém, na realidade, sem a posse, ele perde o objeto material sobre o qual exerce os poderes inerentes ao domínio (usar, gozar e dispor da coisa, além do poder de protegê-la de quem quer que injustamente a detenha). Ele continua proprietário apenas no papel, sem a prévia ou, pelo menos, concomitante substituição do bem pelo correspondente valor em dinheiro. Note-se que, pelo artigo 1.196 do Código Civil, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. No caso de ocorrer a chamada imissão provisória na posse, o expropriado perde a condição de possuidor, porque não mais poderá exercer, de forma plena ou parcial, qualquer dos poderes inerentes ao domínio.

Na realidade, pode-se talvez dizer que a imissão provisória é um mal necessário. Foi o instrumento idealizado para garantir ao poder público a possibilidade de utilização imediata do bem sobre o qual incide a desapropriação, para atender a fins de utilidade pública ou interesse social previstos em lei, durante o longo período de demora do processo judicial de desapropriação e de demora no pagamento dos precatórios.

Embora se reconheça a utilidade e mesmo necessidade da imissão provisória na posse, não há justificativa aceitável para transformá-la em instrumento de prejuízo ao proprietário, diante da exigência constitucional de que a indenização seja prévia. E também não há justificativa para chamar de provisória uma imissão na posse que se torna desde logo definitiva. O vocábulo “provisória”, para qualificar a imissão na posse, na desapropriação, é uma farsa. É uma máscara para ocultar a burla à exigência constitucional de indenização prévia. No entanto, essa farsa poderia ser abrandada pela adequada utilização do instituto, de modo a equilibrar a perda definitiva da posse pelo proprietário com a necessidade urgente de dar destinação pública ao bem expropriado.

Na realidade, a inexistência de qualquer provisoriedade na imissão de posse é inerente ao instituto. E esse caráter definitivo ainda mais se acentuou a partir da Medida Provisória 700, de 8/12/2015, que introduziu alterações no Decreto-lei 3.365/41, na Lei de Registros Públicos (6.015/73), no Código Civil e em outras leis, com o objetivo primordial de introduzir alterações no instituto da imissão provisória na posse, transformando-o em instrumento de obtenção de garantias pelas entidades beneficiadas pela desapropriação e que inclusive podem ser entidades privadas definidas como competentes para “promover” a desapropriação: os concessionários (seja na concessão comum, seja nas parcerias público-privadas), os permissionários, autorizatários e arrendatários; as entidades que exerçam funções delegadas do poder público (como exemplo, as organizações sociais), as contratadas pelo poder público sob regime de empreitada. É o que decorre do artigo 3º do Decreto-lei 3.365, com a redação dada pela referida medida provisória.

Várias alterações legislativas foram introduzidas pela medida provisória em benefício dos titulares de “direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos estados, ao Distrito Federal, aos municípios ou às suas entidades delegadas e respectiva cessão e promessa de cessão”, sem a correspondente compensação para os expropriados.

O parágrafo 4º, acrescentado ao artigo 5º do Decreto-lei 3.365/41, veio permitir que os bens desapropriadas para fins de utilidade pública e os direitos decorrentes da respectiva imissão na posse sejam alienados a terceiros, locados, cedidos, arrendados, outorgados em regimes de concessão de direito real de uso, de concessão comum ou de parceria público-privada e ainda transferidos como integralização de fundos de investimento ou sociedades de propósito específico.

Foram alterados (por medida provisória!!!) dois dispositivos do Código Civil, para incluir os “direitos oriundos da imissão provisória na posse” no rol dos direitos reais elencados no artigo 1.225 (embora a posse não seja incluída nesse rol) e para inserir entre os bens que podem ser objeto de hipoteca, referidos no artigo 1473, os mesmos “direitos oriundos da imissão provisória na posse”.

Alterou-se a Lei 9.514/97, que dispõe sobre o Sistema Financeiro Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel, com o objetivo de permitir que seja contratada a alienação fiduciária, mediante a transferência ao credor (ou fiduciário) da propriedade resolúvel de coisas imóveis, dentre elas “os direitos oriundos de imissão provisória na posse” (artigo 22, parágrafo 1º, inciso V).

Veio permitir, mediante alteração da lei de registros públicos, a “cessão da posse em que estiverem provisoriamente imitidas a União, os estados, o Distrito Federal, os municípios e suas entidades delegadas”, por meio de instrumento particular.

Sem me deter no exame do mau uso da medida provisória (que, no caso, é flagrante e acintoso), o que cabe realçar agora é a maior distância que se criou, com as novas medidas, entre os direitos do expropriado como titular do domínio (embora integralmente destituído da posse, de modo definitivo), e os direitos outorgados à entidade promotora da desapropriação. Os direitos oriundos da imissão provisória na posse, em benefício do poder público, equiparam-se a direitos próprios de quem é titular do domínio (mesmo antes de pagar a prévia e justa indenização e antes de se efetivar a transferência do bem expropriado para o seu patrimônio): ele já pode fazer a cessão a terceiros, pode oferecer o bem como garantia em contratos de alienação fiduciária; pode oferecer em hipoteca o bem de que não é ainda proprietário (derrogando implicitamente a norma do artigo 1420 do Código Civil, pela qual “só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca”).

O que salta aos olhos é a parcialidade e imoralidade de tais alterações legislativas: parcialidade, porque a medida provisória tratou o expropriante como se fosse titular do domínio, quando ele tem apenas a imissão provisória na posse, escapando, por essa forma, aos transtornos decorrentes da demora do processo de desapropriação e contornando a exigência constitucional de que a indenização seja prévia. Porém, por outro lado, não garantiu ao expropriado o direito à indenização prévia e justa, deixando-o à mercê dos prejuízos decorrentes da demora do processo de desapropriação e do pagamento do precatório (que, como é notório, pode demorar muitos anos). É sabido que muitos expropriados morrem sem que o seu direito à justa indenização tenha sido cumprido pelo poder público. Na realidade, o poder público, com a medida provisória, protegeu os direitos oriundos da imissão provisória na posse apenas para o poder público; mas deixou sem qualquer proteção os direitos oriundos da imissão provisória para o expropriado.

A nova feição dada aos direitos oriundos da imissão provisória na posse traz à baila, mais vez, a questão da constitucionalidade do artigo 15, parágrafo 1º, do Decreto-lei 3.365/41. O STJ já havia consolidado o entendimento jurisprudencial de que tal dispositivo é incompatível com a norma constitucional que exige indenização justa e prévia. Porém, essa jurisprudência, inacreditavelmente, foi afastada pelo STF, que, pela Súmula 652, consagrou o seu entendimento de que “não contraria a Constituição o artigo 15, parágrafo 1º, do Decreto-lei 3.365/41 (Lei de Desapropriação por utilidade pública)”.

Não me parece aceitável a manutenção de uma norma que, feita há 75 anos, em época de governo ditatorial, estabelece critérios matemáticos para o depósito exigido para fins de imissão provisória na posse, sem observância do devido processo legal e sem a garantia, para o expropriado, de que esse depósito compense de forma justa e razoável a perda antecipada da posse e dos poderes inerentes ao domínio, que passam a ser exercidos, de imediato e em toda a sua plenitude, sob alegação de urgência, pelo poder expropriante, embora, teoricamente, seja detentor apenas da chamada posse provisória. O mínimo de moralidade administrativa, de justiça, de imparcialidade, exigiria que fosse excluída do mundo jurídico a norma do parágrafo 1º do artigo 15 do Decreto-lei 3.365/41. Com tantas alterações inseridas por meio de medida provisória de constitucionalidade bastante duvidosa, seria de se esperar que a “definitividade” da imissão na posse fosse compensada por uma forma de cálculo que permitisse ao expropriado receber, com a perda da posse, um valor mais próximo do valor de mercado. Tal resultado poderia ser alcançado com a prévia avaliação e a observância do devido processo legal, que não constituiriam qualquer favor para o expropriado, mas os meios previstos no ordenamento jurídico constitucional, para garantir o cumprimento da exigência de indenização prévia e justa.

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