Opinião

Assegurar o direito de defesa também na fase de inquérito é defender a sociedade

Autor

6 de fevereiro de 2016, 9h36

O inquérito policial, como bem se sabe, não é uma fase obrigatória à instauração da ação penal. Contudo, via de regra, o órgão acusador se vale dos elementos de prova nele amealhados para formar a sua convicção a respeito da ocorrência do delito e, assim, ofertar a denúncia.

É justamente por conta desse seu viés meramente acessório que, desde antigas épocas, o inquérito policial sempre foi visto como um procedimento administrativo, de natureza inquisitória e, como regra, sigiloso. Aliás, cumpre acrescentar que o inquérito policial, diferentemente do que se dá com a ação penal, desenvolve-se unilateralmente, ou seja, sem defesa e contraditório efetivos por parte do investigado, que é tratado como mero objeto da investigação, e não como detentor de direitos.

De uns tempos para cá, entretanto, de forma bem paulatina e lenta, essa concepção foi sendo abrandada, sobretudo no que diz respeito ao direito de defesa do indiciado ao longo das investigações.

Tal flexibilização se explica pelo fato de que o inquérito policial, embora não tenha caráter condenatório, pode, induvidosamente, provocar enormes consequências na esfera privada do investigado. Logo, se assim o é, seria normal entender que ao suspeito, tão logo se veja envolvido no ponto central de uma investigação criminal, fosse garantido o direito de defesa também na fase inquisitorial. Até porque, tanto o nosso Código de Processo Penal quanto a Constituição Federal de 1988 preveem, expressamente, a atuação defensiva do indiciado, em oposição à ação estatal, no curso do inquérito policial.

Dentro desse contexto, é bom mencionar que, de modo a assegurar o direito de defesa do cidadão mesmo no curso de um inquérito policial, a Lei 8.906/94 garantiu aos advogados a prerrogativa de “examinar, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos” (art. 7º, inc. XIV, da Lei 8.906/94). Ou seja, muito embora a atuação de um advogado não seja obrigatória no curso de um inquérito policial, tão logo o cidadão resolva ser defendido por profissional da advocacia, passa a ser imperioso aos agentes do Estado franquear ao advogado o acesso à integralidade dos autos do inquérito.

É certo, porém, que a atuação combativa dos advogados em sede inquisitorial desperta críticas. Não são poucos que ainda defendem a ideia de que ao investigado não devem ser asseguradas as sagradas garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Afinal, para os adeptos desse entendimento, se é certo que o indiciado não é parte no inquérito policial, mas mero objeto da investigação, porque lhe conceder direitos e assegurar garantias?

Na prática, a atuação livre, independente e desimpedida dos advogados ao longo das investigações policiais é vista, por muitos, como um empecilho, verdadeiro estorvo à ‘apuração da verdade real’. Assim, não é difícil que as autoridades, praticamente esbarrando no abuso, vilipendiem as prerrogativas dos advogados, seja impedindo, seja dificultando o acesso dos causídicos ao inteiro teor das investigações.

Diante de tal cenário, em boa hora, foi sancionada a Lei 13.245/16, que garante o exercício da ampla defesa no curso do inquérito policial. Publicada no último dia 13 de janeiro, trata-se de importante instrumento de defesa das garantias constitucionais do cidadão.

Com efeito, dentre as relevantes inovações trazidas pela nova lei, mister destacar, de início, que, doravante, fica assegurado aos advogados o direito de examinar autos de investigação, mesmo sem procuração, não só nas delegacias de polícia, como também em qualquer instituição responsável por conduzir investigação.

Com essa nova previsão legal, antigas discussões a respeito da atuação desimpedida dos advogados em órgãos da administração direta/indireta, onde estiverem sendo realizadas apurações de qualquer natureza, perderão qualquer sentido.

Acrescente-se, ainda, que a nova legislação também tem o grande mérito de criar uma nova prerrogativa profissional dos advogados, que é a de “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração, apresentar razões e quesitos”.

Doravante, fica efetivamente assegurado a todo e qualquer cidadão o pleno direito de ser juridicamente assistido por profissional da advocacia, nos autos de qualquer procedimento que apure infrações criminais ou administrativas. De mais a mais, a nova prerrogativa profissional também confere ao advogado o direito de peticionar no curso da respectiva apuração para requerer aquilo que bem entender e que for pertinente para a defesa do seu constituinte.

A nova lei, enfim, deixa claro que o direito de defesa e o contraditório devem ser assegurados também no curso do inquérito policial ou de qualquer outro procedimento administrativo que vise à apuração de infrações, sendo certo que o cerceamento desse direito acarretará a nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento, bem como de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente.

 Diante da novel legislação, é forçoso reconhecer que a cômoda (e antiga) argumentação de que as nulidades verificadas no curso do inquérito são sanáveis e, por isso, não contaminam a ação penal, precisará ser urgentemente alterada. Ao cabo de contas, se o inquérito policial estiver maculado por uma nulidade absoluta, a nova lei deixa claro que nulos também estarão “todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente”, ou seja, a denúncia lastreada naquele caderno investigativo também deverá ser considerada nula. Logo, em casos que tais, a ação penal não poderá prosseguir, dada a nulidade absoluta da peça inicial acusatória (aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada).

Outrossim, a fim de evitar o descumprimento injustificado das novas regras, o legislador, de forma perspicaz, foi enfático ao dispor, no novo § 12, do artigo 7º, do EAOAB, que a “inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado  com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente”.

Em termos mais específicos, ao responsabilizar criminal e funcionalmente o responsável pelo cerceamento de defesa, o legislador não só garantiu a devida eficácia das novas disposições, como também deixou claro, para as autoridades em geral, que o sagrado direito de defesa haverá, sempre, de prevalecer.

Por derradeiro, antes que vozes autoritárias critiquem a nova lei, nunca é demais lembrar que as prerrogativas profissionais dos advogados, longe de serem privilégios ou favores, são, em real verdade, verdadeiros instrumentos legais que asseguram e garantem o real e pleno direito de defesa do cidadão. Os destinatários finais das prerrogativas estabelecidas na Lei 8.906/94 não são os advogados, mas sim, e sempre, os seus clientes.

Destarte, é bom deixar claro que toda e qualquer medida que vise assegurar o livre, pleno e desimpedido exercício da advocacia não tem por escopo defender a classe dos advogados, senão, e apenas, a própria sociedade em geral.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!