Opinião

O perigo na valorização de uma sociedade sem ofensas

Autor

3 de fevereiro de 2016, 5h49

Na primeira quinzena de 2015, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a proibição da Casa de Oração de Ribeirão Preto de anunciar trechos homofóbicos da Bíblia em outdoors espalhados pelo percurso de onde se realizaria a “7ª Parada do Orgulho LGBTT”. Ainda foi determinado à ré se abster de publicar mensagens semelhantes em todas as cidades da comarca sob pena de multa diária de R$10 mil.

O acórdão determinou que não caberia ao Estado ou praticante de qualquer religião se manifestar publicamente em afronta ao livre exercício da sexualidade dos demais, pois isso afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana que deve ser privilegiado no Estado Democrático de Direito. Os desembargadores decidiram ainda que tais manifestações poderiam ter lugar no interior do templo, na presença dos fiéis respectivos e que isso seria suficiente para o respeito ao direito de liberdade de crença previsto na Constituição Federal.

A intenção deste artigo não é tratar profundamente sobre o conflito de direitos constitucionalmente envolvidos, questão que seria suficiente para uma obra completa, mas sim refletir sobre um ponto de interesse para aqueles que estudam e defendem um ambiente livre para o debate de ideias, que é a valorização dos interesses daqueles potencialmente ofendidos em detrimento das demais liberdades já constitucionalmente garantidas, sem que uma maior análise a respeito das consequências desta prática.

O acórdão analisado reflete uma tendência do Poder Judiciário de estar cada vez mais atento aos interesses daqueles que se consideram ofendidos pela expressão de ideias e opiniões, para além dos casos em que a ofensa advém do exercício da liberdade de crônica (reportagens e biografias). Casos recentes, como a condenação do candidato à presidência da República Levy Fidelix pelas declarações proferidas em debate presidencial de 2014 ou por manifestações de líderes religiosos, dentre outros, demonstram uma preocupação maior com minorias que se veem reprimidas pela exteriorização de ideias homofóbicas, racistas e, no geral, preconceituosas.

À primeira vista, a intenção dos desembargadores é louvável. Impedir a propagação de ideias preconceituosas parece atender à concepção atual de democracia, que tem como um de seus pilares o princípio da dignidade da pessoa humana. É, assim, plenamente compreensível a defesa de uma evolução jurisprudencial no sentido de se dar maior proteção aos interesses daqueles oprimidos contra uma parcela da sociedade intolerante e segregacionista. No entanto, essa análise desconsidera que a direção apontada pelo julgado não é animadora para o desenvolvimento de um ambiente de livre debate de ideias. Pior. Ignora que todos os avanços que as minorias alcançaram até agora nasceram dentro e por causa deste ambiente e só tendem a crescer com sua valorização.

O julgado chama atenção já na leitura inicial ao afirmar que a colocação dos outdoors com passagens bíblicas não seria expressão de religiosidade, sem se aprofundar sobre este conceito, e deixar indeterminado se a liberdade de crença em ideias homofóbicas não deveria ocorrer ou se só teria lugar dentro de um templo e para os próprios fiéis. Em seguida parece solucionar esta questão decidindo que a liberdade sexual do cidadão não deve ser alvo de manifestação pública contrária, dando a entender que a manifestação em caráter privado não ofenderia os ditames legais. No entanto, na sequência afirma que o comportamento da associação religiosa deveria ser abolido, reacendendo a dúvida sobre a legalidade da expressão mesmo sem o elemento de publicidade.

A defesa da abolição ou mesmo punição de expressão de pensamento dissidente e potencialmente ofensivo e perigoso não é algo recente e nem exclusivo a nossa cultura, vide exemplos óbvios como as práticas repressivas da ditadura civil-militar que vigorou no Brasil durante vinte anos ou mesmo da inquisição promovida pela Igreja Católica durante os séculos XV e XVI. Esta linha de pensamento sequer pode ser considerada incomum no mundo atual, mesmo nos países desenvolvidos, bastando mencionar que nos Estados Unidos, o mais liberal no que diz respeito à expressão, o argumento de que a algumas ideias devem ser extirpadas da sociedade tem grande número de adeptos nos campis das universidades, como bem tratou o jornalista e autor Jonathan Rauch em sua obra “Kindly Inquisitors: The New Attacks on Free Thought”.[1] [2]

No entanto, é inegável que em tempos recentes grande parte (mas, definitivamente, não a totalidade) da defesa de abolição de ideias e opiniões em países democráticos se volta contra aquelas consideradas preconceituosas e ofensivas, especialmente para minorias oprimidas, em um movimento vulgarmente conhecido como politicamente correto. Em linhas gerais, o pensamento vigente neste movimento é de que a ideia tem potencial danoso àqueles atacados e também que sua propagação tem potencial periculosidade e ofenderia o valor máximo da dignidade da pessoa humana. O acórdão em questão é um bom exemplo desta tendência e assim deve ser considerado, jamais isoladamente.

A análise do julgado dentro deste contexto preocupa por demonstrar que essa linha de pensamento alcançou o Poder Judiciário sem que fosse dedicado maior cuidado e ponderação quanto às consequências práticas que a declaração judicial de ilegalidade de uma ideia considerada errada pode trazer à sociedade e ao desenvolvimento de um ambiente de livre debate.

A consequência que primeiro chama atenção se refere à abertura da possibilidade de supressão, até mesmo por via judicial, de palavras de conteúdo semelhante contidas em publicações escritas, redes sociais, públicas por excelência, ou em discursos e pregações televisionadas, cujo alcance transcende aqueles presentes no culto e chega às casas de todos os cidadãos, inclusive daqueles que por qualquer motivo não queiram ter acesso a esse tipo de manifestação e possam se sentir ofendidos. A decisão parece se filiar à posição de que em tais casos seria perfeitamente aceitável a prolação de ordem judicial para que determinadas (ou todas) pessoas sejam proibidas de veicular trechos bíblicos homofóbicos por serem ilegais, independentemente de aquela ser sua crença mais profunda. Considerando que as redes sociais ganham cada vez mais relevância para a comunicação interpessoal, e até para a própria expressão do indivíduo, e que os pastores televisivos têm grande presença no cotidiano do brasileiro, não é exagerado pensar que tal cenário poderia trazer sérios riscos para a liberdade de expressão de crença, ainda mais em um ambiente em que a discussão sobre essa liberdade ainda engatinha.

É justamente por essa precariedade que entendo que, ao decidir simplesmente pela ilegalidade da manifestação de determinada opinião sem maiores considerações, o Tribunal de Justiça de São Paulo perdeu uma perfeita oportunidade para ponderar os benefícios e malefícios, inclusive para as minorias, de um sistema legal que privilegia a interceptação de ideias ofensivas como valor absoluto, em detrimento do direito genérico à livre expressão que detém o ofensor.

Ao se filiar à crença de que ideias erradas e ofensivas devem ser abolidas por excelência, os julgadores demonstraram, e é certo que este pensamento é recorrente na cultura brasileira, total descrença em um ambiente de livre debate de ideias, como se esse exercício livre, desmedido e sem regras pudesse fazer florescer somente a ideia considerada errada.

Como dito, à primeira vista este é um caminho razoável, principalmente se for levado em consideração que o ambiente ultraconectado que surgiu com o desenvolvimento da rede mundial de computadores dá margem a propagação de toda sorte de ideias, das mais sensatas às mais nefastas. Assim, a criação de um ambiente regulado para expressão de ideias, que pode chegar no limite de banir algumas delas ou modular sua forma de manifestação, parece inicialmente auxiliar na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, tal pensamento ao meu ver encerra alguns riscos que certamente merecem ser considerados por nossos julgadores.

O primeiro risco é a valorização de uma ideia no mínimo ingênua e no limite perigosa, que é a intenção de criar uma comunidade sem ofensas, uma sociedade inofensiva. O pensamento de que a troca de ideias pode ocorrer de maneira pacífica, sem que nenhum dos debatedores seja ofendido pelo outro é irreal e, no limite, utópica. A produção de conhecimento depende da permissividade da ofensa daquele que discorda ou mesmo daquele que é objeto da ideia propagada, na medida em que não é incomum que novas ideias gerem repulsa. Nestes casos, se for levado em consideração a qualidade subjetiva do ofendido, qualquer ideia nova poderia ser interceptada no casulo, sem espaço para debate.

Essa permissividade, porém, deve ser acompanhada com o apreço a um ideal que me parece ter pouca aceitação fora do ambiente acadêmico, que é aquele que se baseia no princípio de que qualquer pessoa pode estar errada e que, portanto, nenhuma ideia está blindada de ser oferecida a escrutínio público para ser objeto de checagem por todos. Essa checagem pode resultar em discursos, ensaios acadêmicos, em plena desconsideração e até na satirização mais extrema, que certamente pode ofender aquele que proferiu o discurso que está sendo checado. Penso comigo, aliás, que no caso analisado essa última saída, se bem engendrada, teria potencial de ser mais efetiva que a ordem judicial em minar o discurso homofóbico proferido pela associação religiosa. Resta descobrir se seria autorizada pelo Poder Judiciário.

Este último ponto, aliás, traz à tona o segundo e, para mim, principal risco, principalmente para minorias, de uma sociedade que se filia ao ideal de abolição de ideias consideradas perigosas e ofensivas.

Embora seja admissível que a permissão para manifestação de ideias erradas seja, de fato, potencialmente danosa, é inegável que suprimir tais ideias pode se tornar mais arriscado, na medida em que o ‘errado’ se torna qualquer coisa que a autoridade não goste de ouvir. É bem verdade que hoje a os julgadores parecem estar cada vez mais do lado das minorias, mas não existe qualquer garantia que isso será mantido no futuro ou mesmo de que estes julgadores não pensem eventualmente que estas minorias também devam ter sua palavra interrompida quando direcionada contra outros grupos.

É por essa razão que é no mínimo estranho que grupos marginalizados, os quais finalmente começam a ter consideradas e valorizadas suas ideias em um ambiente de livre debate, queiram, justamente no momento em que começam a colher frutos de sua inclusão neste ambiente, reduzi-lo.

O risco que esta tentativa de redução traz é palpável. O que inicialmente pode ser considerado uma vantagem competitiva para as minorias atacadas, pois passam a contar com o amparo do Judiciário para se proteger contra ofensas e ideias erradas, tem o potencial se voltar contra estas mesmas minorias ao longo do tempo, com a valorização dos interesses de grupos que eventualmente se vejam ofendidos por ideias e manifestações que visam questionar duramente o status quo.

Não é absurdo imaginar que a partir do momento em que se abre espaço para que um determinado grupo social se proteja judicialmente contra ataques intelectuais, este mesmo reconhecimento possa ser estendido a outro, sendo pura ingenuidade acreditar que o conceito de minoria ou maioria — poroso por si só — é suficiente para isoladamente atribuir esta proteção. Em outras palavras, a generalização deste expediente tem o potencial de calar a voz da própria minoria oprimida, que se verá impossibilitada de expor suas ideias sem limites contra opressores, ou seja, se verá sem importante parte das ferramentas que levaram ao desenvolvimento e reconhecimento de suas ideias. Neste cenário, seria admissível, por exemplo, a proibição de propagação de ideias homofóbicas ao mesmo tempo em que se admitiria a interrupção de qualquer manifestação tida como exagerada voltada a questionar líderes e dogmas religiosos.

Por fim, é necessário reconhecer novamente a importância da intenção dos julgadores de afastar da sociedade pensamentos como aquele manifestado pela associação religiosa. É inegável que manifestações racistas, homofóbicas e intolerantes causam danos para aqueles a quem se dirigem e isso jamais deve ser subestimado, principalmente em uma sociedade que se diz disposta a valorizar a dignidade do ser humano. No entanto, é de se reconhecer que este tipo de manifestação é fruto de ignorância e que a valorização de um ambiente de livre debate de ideias, em que estas afirmações possam ser checadas, escrutinadas e até ridicularizadas, é a cura e não a causa.

Ficou claro que o julgado, ao decidir pela ilegalidade da ideia considerada errada, tenta joga-la na obscuridade, assumindo o compromisso de aboli-la. No entanto, entendo que a solução proposta não se sustenta a longo prazo e que o melhor caminho a ser tomado é de reflexão a respeito do desenvolvimento de um verdadeiro ambiente de livre debate de ideias, sob risco de criarmos um ambiente de debate livre de ideias.


[1] É bem verdade que o respeito à Primeira Emenda da Constituição estadunidense impede que a discussão seja impedida por ordem judicial naquele país. No entanto, a menção serve para demonstrar que a falta de crença em um ambiente de livre debates não é algo exclusivo em nosso país. Em um exemplo crítico desta tendência, em 2014 uma estudante de Harvard defendeu abertamente que a liberdade acadêmica no campus fosse abolida em favor de uma “justiça acadêmica” e que ideias, opiniões e pesquisas consideradas preconceituosas fossem abolidas e até mesmo punidas. http://www.thecrimson.com/column/the-red-line/article/2014/2/18/academic-freedom-justice/

[2] Em outro exemplo mais próximo ao caso em análise, um pastor cristão foi preso no Reino Unido por dizer que a homossexualidade seria um pecado. Depois de as autoridades de Cumbria terem retirado as acusações, o pastor processou condado e recebeu £ 7.000 após a celebração de um acordo. http://www.newsandstar.co.uk/news/street-preacher-wins-compensation-after-cumbria-police-wrongful-arrest-1.793064

 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!