Opinião

A ADPF 402 sob o prisma do provocante texto de Bruce Ackerman

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31 de dezembro de 2016, 6h12

O presente artigo discute uma vez mais alguns aspectos ligados à ADPF 402, ainda em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, inicialmente sob o prisma do provocante texto de Bruce Ackerman (Good-bye, Montesquieu, Comparative Administrative Law, 2010, com cuidadosa tradução publicada na RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 265). Ou seja, o cerne desta reflexão gira em torno da temática da separação de poderes, sobre a qual Bruce Ackerman questiona a atual serventia das ideias de Montesquieu, pensador que, a despeito de sua importância e de sua grandeza, não teria “noção sobre os partidos políticos, sobre a política democrática, sobre os modernos desenhos constitucionais, e sobre as técnicas burocráticas contemporâneas” (p. 128).

Sem ingressar nas críticas feitas, observa-se que, para Ackerman, haveria uma cega confiança e seguimento nas premissas desse pensador do século XVIII, sem maiores reflexões, assumindo-se ser possível captar corretamente a complexidade contemporânea por meio de uma separação tripartite de poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário, mas, nas palavras do autor:

“Quase três séculos depois, já passa da hora de repensar a santíssima trindade de Montesquieu. Apesar de seu status canônico, ela nos mantêm cegos para o surgimento, em nível mundial, de novas formas institucionais que não podem ser categorizadas como legislativas, judiciárias ou executivas. Embora a tradicional fórmula tripartite falhe ao capturar os modos característicos de operação de tais formas, essas unidades novas e funcionalmente independentes estão desempenhando um papel cada vez mais relevante em governos modernos. Uma “nova separação de poderes” está emergindo no século XXI. A compreensão de suas características distintivas requer o desenvolvimento de um modelo conceitual que contenha cinco ou seis categorias — ou talvez mais. E, assim, nós devemos dar um carinhoso adeus a Montesquieu, para então criar novas bases para o direito administrativo comparado, que deem conta dos desafios dos governos modernos”.

Contudo, a despeito de sua abordagem aparentemente heterodoxa, com relação à tradição jurídica, mais voltada para o Direito Administrativo, em nenhum momento de sua análise Ackerman propõe uma concentração de poderes em um dos ramos do poder. Antes, propõe expansão e fragmentação, de modo a permitir maior controle, dando como exemplo a necessidade de atribuir alguma culpa ao gênio de Montesquieu para o resultado espetacularmente fraco das disputas eleitorais nos Estados Unidos, especialmente utilizando como exemplo o caso Bush v. Gore:

“Considere, por exemplo, a infame disputa eleitoral entre Bush e Gore em 2000. Montesquieu merece parte da culpa pelo desempenho espetacularmente fraco das instituições dos Estados Unidos quanto à resolução daquela disputa. Dado o compromisso tradicional dos Estados Unidos com a trindade de Montesquieu, parecia óbvio para seus mais proeminentes participantes, naquele contexto, que a administração das eleições é apenas mais uma função ordinária do poder executivo. Afinal, certamente não pertence nem ao judiciário, nem ao legislativo — e a única outra categoria que resta é o executivo. Portanto, a administração de eleições deve pertencer ao executivo — e seria completamente estranho aos Estados Unidos pensar em uma quarta categoria, não é? Essa tricotomia irrefletida permitiu ao executivo da Flórida se envolver em maquinações políticas ao supervisionar o processo administrativo pelo qual Bush foi finalmente declarado “vencedor”. Os Estados Unidos precisam urgentemente de uma Comissão Eleitoral independente, mas não a terão enquanto não acordarem de seu torpor montesquiano e se juntarem ao movimento rumo a uma nova separação de poderes que, atualmente, vem ganhando o mundo”.

Não se propôs — como poderia parecer à primeira vista —, que uma instituição (a Suprema Corte) fosse investida dos poderes ou das possibilidades de superação da trindade atribuída a Montesquieu, pois, como soa evidente, a concentração de poderes conduz a um inafastável absolutismo (seja a balança desequilibrada para quaisquer dos poderes existentes):

“É suficiente notar algumas questões evidentes. Primeiro, a questão de coordenação: quanto maior o número de centros-de-poder que isolamos das instituições políticas e jurídicas clássicas, maior o problema em coordenar o crescente número de poderes separados, de forma a gerar um todo coerente. Segundo, a questão da legitimidade democrática: se formos muito longe na tentativa de isolar poderes do controle político direto, poderemos privar o processo democrático de seu significado central — deixando os representantes eleitos do povo à mercê…”.

Pois bem, com tais considerações, passemos para uma breve reflexão sobre a polêmica em torno da ADPF 402, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e cuja petição inicial, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade, volta-se contra “ato do Poder Público lesivo a preceitos fundamentais a interpretação constitucional e a prática institucional, prevalentes na Câmara dos Deputados, pela qual se tem admitido que o Presidente daquela Casa permaneça no exercício de suas funções a despeito de passar a figurar na condição de réu em ação penal instaurada perante o Supremo Tribunal Federal”.

Busca-se, com essa ADPF, a obtenção de decisão com eficácia vinculante, para que se fixe o entendimento de que “é incompatível com Constituição a assunção e o exercício dos cargos que estão na linha de substituição do Presidente da República por pessoas que sejam réus em ações penais perante o Supremo Tribunal Federal, admitidas pela própria Corte Suprema”.

Um raciocínio relativamente simples, de fato, foi colocado por Pierpaolo Cruz Bottini aqui mesmo nesta ConJur (Réus podem integrar linha sucessória da Presidência da República). Observou-se que um candidato ao cargo de presidente da República, se for réu em ação penal, enquanto for candidato, não encontrará vedação constitucional para que assuma o cargo, uma vez eleito. Se considerarmos o que dispõe a Lei da Ficha Limpa, para qual, em regra, precisa ocorrer algum tipo de condenação por órgão colegiado para que alguém não possa se candidatar, coloca-se igualmente em xeque o raciocínio de que aqueles que estão na linha sucessória (vice-presidente, presidente da Câmara dos Deputados, presidente do Senado), se forem réus em ações penais, não possam assumir a Presidência da República.

O que a interpretação do Supremo Tribunal Federal parece ter querido, em linhas gerais, foi implementar uma mecânica que não encontra propriamente bases ou raízes constitucionais, levando além do limite o postulado republicano, a partir do qual se pode construir qualquer interpretação, naquilo que J.G.A Pocock chamou de “o momento maquiavélico” (The Maquiavellian Moment, The Florentine Thought and the Atlantic Republican Tradition. 2ª Ed. Princeton: PUP, 2003) para o ressurgimento do pensamento republicano. É preciso refletir sobre isso, pois:

“A proposta de Pocock, mais do que uma nova hipótese de história das ideias, é ela mesma uma releitura dos clássicos à luz da percepção do tempo. A começar no próprio título ‘Momento Maquiavélico’, que o autor reconhece ser tributário de uma sugestão do seu colega de Cambridge Quentin Skinner, que traduz o tempo em que Maquiavel escreveu e vivenciou as consequências das suas ideias (inclusive as consequências não pretendidas), e ainda as intenções de Maquiavel assumiram a forma prevista (…) O momento maquiavélico procura identificar duas linhas de mudança histórica e conceitual que Maquiavel percepcionou nos seus escritos: de um lado o momento em que a forma de governo – ou seja o regime construído por Cosme de Medicis no início do Séc. XV é visto como sendo frágil mas possível e necessário; e o momento em que a ‘república’ encontra problemas na sua própria natureza e tem dificuldades de lhes dar resposta” (LEITE PINTO, Ricardo. O Momento Maquiavélico na Teoria Constitucional Norte-Americana. 2ª Ed. Lisboa: ULE, 2010, p. 11).

Os chamados “revivalistas republicanos” estão situados na fronteira entre o Direito Constitucional e a Ciência Política, como observa Ricardo Leite Pinto, e apegam-se a duas preocupações: qual seria a melhor forma de governar a sociedade e qual o estado da natureza humana, ou seja, bom governo relativamente ao bom exercício do poder político e bons cidadãos, mas as críticas existentes não podem ser sublimadas: 1) o ideal republicano não seria adequado à contemporaneidade por ser um “republicanismo para um mundo que não mais existe”; 2) o universalismo, um de seus ingredientes, ignora a heterogeneidade dos grupos sociais e suas representações, surgindo-se "o problema do arco-íris republicano"; 3) sua concepção de bem comum, objetivo ou substantivo, gera a alienação, hierarquia e exclusão social; 4) é considerado "elitista", de um ponto de vista específico, pois confere especial atribuição aos tribunais como "palco do diálogo republicano" e da "deliberação política", fazendo-o também contraditório com relação a uma de suas premissas de expectativa de maior participação popular e de reforço da cidadania; 5) apresenta reflexos totalitários, caminhando para uma interpretação que não é privilegiadora dos postulados democráticos (LEITE PINTO, Ricardo. O Momento Maquiavélico na Teoria Constitucional Norte-Americana. 2ª Ed. Lisboa: ULE, 2010, p. 199-223).

Nesse sentido, articulando os raciocínios visitados, nem bem seria o caso de se dizer que o Supremo Tribunal Federal disse “adeus a Montesquieu”, da perspectiva de Ackerman, pois não se pode dizer adeus a quem não esteve presente, além de podermos observar que o resultado provisório desta ADPF 402 representa um incoerente e extremado “revival republicano” sem bases constitucionais, muito embora sejam temas e questões extremamente importantes: é que o palco de discussões não é adequado do ponto de vista Constitucional, e a interpretação realizada parece violar o texto da Constituição. Melhor que a corte suprema tivesse dito “seja bem-vindo, Montesquieu, quando estiver acomodado, pensemos em sua partida”.

A interpretação extraída do artigo 86, parágrafo 1º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, a propósito, precisa ser revisitada (guardadas as devidas proporções) pela interpretação que Miguel Reale fez sobre o papel constitucional do vice-presidente da República sob a égide da Constituição de 1967, que não deveria conduzir a interpretação simplista de que ao vice-presidente caberia presidir todas as reuniões do Congresso Nacional, mas, sim, observadas as regras e a sistematicidade do texto constitucional, algumas delas. É que regras restritivas devem ser interpretadas restritivamente (REALE, Miguel. A Presidência do Congresso Nacional na Constituição de 1967. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 62, n.2, 1967), sobretudo quando envolve a separação dos poderes, assim como a denúncia ou queixa aptas a afastar o presidente de suas funções deveria ser recebida enquanto o presidente estivesse ocupando o cargo, e não antes de vir assumi-lo alguns dos seus substitutos pertencentes aos demais poderes, muito menos se autoriza, desde um ponto de vista constitucional, o afastamento de presidente de casa legislativa por não poder assumir, hipotética e futuramente, o cargo de presidente da República pro tempore.

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