Ideias do Milênio

"A democracia está sofrendo uma espécie de regeneração das instituições"

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30 de dezembro de 2016, 6h50

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Entrevista concedida pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Hoje faremos uma viagem no mundo da literatura com todas as suas interfaces com a vida real, com a política, com a economia, com a sociologia, tendo como cenário o mundo, mas também muito a América Latina. Para isso, temos a companhia de um dos maiores escritores latino-americanos do século XX e do XXI, o escritor peruano Mario Vargas Llosa.

Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, Marquês de Vargas Llosa, já era um nobre nas letras muito antes de receber o título da coroa espanhola em 2011. Aliás, quando isso aconteceu já havia recebido um prêmio muito mais prestigioso para o ofício que ama e do qual vive há quase 60 anos. O peruano é ganhador do Nobel de Literatura de 2010.

Minha mãe contou que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que eu lia. Eu tinha pena quando elas terminavam e queria continuar depois do final. — Discurso de agradecimento Prêmio Nobel

Em recente passagem pelo Brasil, onde esteve à convite do Fronteiras do Pensamento, Vargas Llosa falou de literatura, claro, lembrando obras e autores que influenciaram a formação dele e também do seu jeito de escrever, mas também de política, jornalismo, e foi generoso com o escritor tido como seu antagonista latino-americano, o colombiano Gabriel García Marquéz. Aos 80 anos, Mario Vargas Llosa mostrou que segue mais curioso, ativo, empolgado e militante do que nunca.

Nos anos 1990 chegou a ser candidato a presidente no Peru com a plataforma baseada em privatizações e no enxugamento do Estado. A derrota para Alberto Fujimori não o desanimou a seguir acompanhando a situação política na América Latina, sobre a qual escreve com frequência. Mas ele mudou suas opiniões com o passar dos anos. De marxista admirador dos ideais da revolução cubana na juventude, passou a ser um duro crítico do regime dos irmãos Castro. Aos 80 anos, se considera um defensor do liberalismo radical, mesmo assim não poupou palavras fortes para o recém eleito presidente americano, Donald Trump. Ao ver um comício de Trump, disse: “Considero esse homem um verdadeiro demagogo, palhaço e irresponsável”.

Marcelo Lins — Hoje em dia não é tão raro alguém chegar aos 80 anos, como você chegou, mas, ao mesmo tempo, o mais raro é alguém chegar aos 80 anos com tanta vitalidade, trabalhando tanto e vendo a vida e o que passou até hoje. Como resistir desta forma por tanto tempo?
Mario Vargas Llosa —
Depende muito do que a pessoa faz. Se trabalha com o que gosta, tem muito mais entusiasmo pela vida do que se faz algo de que não gosta ou se não faz nada. Mas tenho a sorte de poder dedicar minha vida a coisas que têm a ver com minha vocação, a um trabalho que sempre me entusiasmou e me estimulou. E creio que essa é uma razão muito importante para amar a vida, para sentir que ela vale a pena. Seria bem diferente se eu tivesse que fazer coisas de que não gosto, com as quais não me identifico, mas escrever, ler e dar palestras têm a ver com minha vocação, então agradeço muito a minha vocação, que me manteve com muitas ilusões e com um grande amor à vida.

Marcelo Lins — Tem precisamente na memoria o momento em que percebeu que seria possível viver de escrever?
Mario Vargas Llosa —
Na verdade foi minha agente literária e minha grande amiga Carmen Balcells. Eu era professor na Universidade de Londres e tinha organizado minha vida em função de um trabalho de que gostava — eu gostava de ensinar literatura —, e ao mesmo tempo tinha tempo para escrever. Até que apareceu essa senhora em Londres e me disse: “Desista da universidade e garanto que conseguirá viver de seus livros.” Eu disse: “É uma loucura. Tenho dois filhos, é impossível.” Mas ela insistiu tanto que acabei cedendo, e ela tinha razão. Mas fiz isso com muito medo, porque me parecia impossível viver somente de escrever. Eu escrevo livros e também artigos em jornais, mas é verdade, consegui viver de meu trabalho de escritor, e isso me deu muita independência, sobretudo a grande sorte de poder dedicar todo meu tempo e minha energia a coisas de que gosto.

Estava certo que nunca me dariam o Nobel. Eu tinha feito tudo para não ganhá-lo. Ganhei, mas sigo mantendo as ilusões e os projetos até o último momento. Lutar contra o tempo mantém o homem vivo. — Mario Vargas Llosa.

Marcelo Lins — Você também sempre escreveu em jornais. Acha que é possível fazer esse paralelo com o jornalismo também? Ou seja, é possível haver um jornalismo no qual a forma também é importante, apesar de termos sempre de seguir o que é real, as informações, mas esse cuidado com a forma é importante também para o texto jornalístico?
Mario Vargas Llosa —
Sem a menor dúvida, mas digamos que a forma nunca pode ser igual no jornalismo e na literatura. A linguagem jornalística deve ser bem cuidada, mas deve ser muito mais funcional que a literatura. O jornalismo que informa ou que opina tem de chegar imediatamente ao leitor com as ideias, com a informação que essa língua transmite. Já na literatura a língua pode ser um personagem, ela pode ter uma vida própria, nos deslumbrar com sua beleza, sua originalidade… Esse tipo de prosa é incompatível com o jornalismo. Não o cuidado com a forma. Ele deve ser tão rigoroso no jornalismo como na literatura. Mas na literatura a linguagem pode aparecer como uma presença que vale por si mesma, por sua elegância, beleza… No jornalismo isso seria completamente artificial, antinatural, não é? Um escritor que dedica muito tempo ao jornalismo, como é meu caso, tem de ser muito consciente de que não se pode fazer literatura e jornalismo com a mesma prosa.

Marcelo Lins — Entrando na política, que também é uma paixão sua. O século XX foi muito marcado por uma disputa, às vezes uma guerra, entre esquerda e direita, entre o modelo e o projeto comunista e o projeto capitalista da sociedade de mercado, mais liberal, e você esteve dos dois lados. Na juventude, era muito próximo da esquerda. Como foi essa transição? Houve um fato específico que o fez mudar de posição?
Mario Vargas Llosa —
Um fato, não. Muitos fatos. Foi um processo de desencanto com o modelo coletivista, estatizante que o comunismo representava. E o que aconteceu comigo aconteceu também com inúmeros intelectuais da minha geração, da geração imediatamente anterior e da posterior, um grande desencanto ao ver o que significou o socialismo real: ditaduras, fracasso econômico, alguns regimes tão despóticos que produziram enormes sofrimentos, além do fracasso, da dissolução da União Soviética, a conversão da China de país comunista a país capitalista, autoritário, mas capitalista, e o que ficou do comunismo são exemplos que não devem ser imitados, não é verdade? Coreia do Norte, Cuba, Venezuela… Um desastre! São países onde se morre de fome, onde a repressão é algo absolutamente sistemático para toda forma de dissidência ou de crítica. Então é muito difícil, a esta altura, manter um ideal com modelos tão catastróficos. Isso levou muita gente, assim como eu, a ver na democracia o único caminho para se ter um desenvolvimento econômico que garantisse a liberdade, a diversidade, os direitos humanos, o direito à crítica… É uma evolução que tem muito a ver com o grande fracasso dos países que diziam trazer o paraíso à Terra e o que trouxeram foi o inferno.

Marcelo Lins — Ao mesmo tempo, está claro que as injustiças, as ditaduras e os regimes autoritários não são monopólio do comunismo, das esquerdas.
Mario Vargas Llosa —
Claro que não, mas a democracia sempre esteve contra todas as ditaduras, sejam de extrema direita ou de extrema esquerda. E desprezo pelas ditaduras eu sempre tive, porque sofri com elas como peruano, como latino-americano, porque vivi mais tempo em ditaduras do que em democracias. Em relação ao Brasil, vejo com otimismo o que está acontecendo. É um processo muito interessante, não contra a democracia, mas que exige a regeneração da democracia, o repúdio à corrupção, que pede transparência, decência nas instituições democráticas. Em última instância, isso é muito saudável e pode resultar numa grande purificação das instituições, algo que pode servir de modelo ao resto da América Latina.

Marcelo Lins — Você passou parte de sua infância na Bolívia. Lá vemos algo diferente: um governo de esquerda que conseguiu fazer certos acordos com os setores mais conservadores do empresariado…
Mario Vargas Llosa —
O populismo, que é muito nocivo à democracia, está sofrendo derrotas muito interessantes na América Latina. A derrota de Evo Morales nessas eleições, muito interessante a derrota dos Kirchner na Argentina, a vitória de um governo democrático, liberal, que é o que Macri representa, que está desmontando todo esse construtivismo que foi asfixiante para a Argentina. Também é interessante o que acontece na Venezuela, onde hoje existe uma maioria esmagadora contra o regime, como se viu nas eleições para a Assembleia Nacional. E o que ocorreu no Brasil também foi um movimento antipopulista, antidemagógico. A minha impressão é que a democracia está sofrendo uma espécie de processo de regeneração das instituições muito positivo para o futuro da democracia latino-americana.

Marcelo Lins — E como vive entre Lima, Londres, mas principalmente hoje em dia Madri, sabemos que a Espanha viveu nos últimos anos muitas crises. Depois da grande crise econômica de 2008 e 2009, crises políticas, dificuldade de formar novos governos e ao mesmo tempo o surgimento de forças novas, de novos tipos de coalizões… Como é o universo político espanhol?
Mario Vargas Llosa —
Não é um processo diferente, porque esse movimento no qual apareceram novas forças nasce de um grande repúdio à corrupção. Houve muitos escândalos que afetaram as instituições. Isso fez surgir um movimento muito crítico que pede uma renovação profunda das instituições e isso provocou o último resultado eleitoral. O que está muito claro na Espanha é que o bipartidarismo acabou, que o Partido Popular e os socialistas não vão mais governar sozinhos. Eles vão ter de formar alianças, algo com que os espanhóis não estão acostumados. Então esse é um momento difícil, mas penso que terá resultados positivos a curto e a longo prazo, porque a democracia vai continuar funcionando, ela rendeu enormes benefícios à Espanha e não acho que haja nenhuma possibilidade de retrocesso ao populismo, muito menos a alguma forma de ditadura.

Marcelo Lins — Sobre as profundas diferenças políticas entre você e o colombiano Gabriel García Marquéz. Havia um antagonismo?
Mario Vargas Llosa —
Não existe antagonismo literário. Político, sim. Defendíamos coisas diferentes.

Marcelo Lins — No nível pessoal como isso se dava? Havia algum tipo de relação mais próxima ou não? Como você, um dos polos da relação, via isso?
Mario Vargas Llosa —
García Márquez e eu chegamos a um acordo: nunca falaríamos de nossas diferenças para dar trabalho aos nossos biógrafos. Então vou respeitar o pacto como ele respeitou e não vou falar de assuntos pessoais.

Marcelo Lins — Perfeito. Falando um pouco da obra desse grande escritor colombiano, o que diria dos paralelos e das diferenças entre…
Mario Vargas Llosa —
A maior diferença é que nele há uma inclinação muito grande para o fantástico. A diferença é que a minha obra é mais "realista". Embora haja uma problemática latino-americana que aparece tanto nos meus romances como nos dele. Mas creio que quem analisa melhor isso são os críticos e os leitores. O autor não tem perspectiva suficiente do que faz para fazer um julgamento objetivo sobre o que escreve. Mas é evidente que em García Márquez há uma tendência para o fantástico, que é um dos encantos do mundo de García Márquez. E na minha obra, não. Na minha o realismo prevalece. Um crítico escreveu uma coisa muito interessante. Ele assinalou essa diferença, mas disse que na minha obra o fantástico estava nas estruturas, não nas histórias nem nos personagens, mas na maneira de compor as histórias, na maneira de construir o tempo, por exemplo. É uma tese que sempre me deixou um pouco intrigado. Não sei se é verdade, mas gostei da tese.

Marcelo Lins — E numa região como a América Latina, com todo o surrealismo que existe nas relações reais, nos personagens reais, é um desafio ser um escritor fantástico a partir de uma realidade já tão fantástica.
Mario Vargas Llosa —
Sem dúvida alguma. Exatamente. Por isso Carpentier dizia que o surrealismo não era só literário na América Latina, mas estava na história, que às vezes a história na América Latina parecia surrealista.

Marcelo Lins — Falando um pouco de referências. Você mencionou alguns nomes, como Balzac, Flaubert obviamente, mas também Alexandre Dumas e outros. E fica um pouco a impressão que muitas vezes as referências de vários escritores e as suas também têm a ver com o que se leu na juventude.
Mario Vargas Llosa —
São as coisas que provavelmente marcaram mais minha experiência de escritor.

Marcelo Lins — Então as suas referências têm a ver com esse período da vida ou depois surgiram outras referências?
Mario Vargas Llosa —
Sim, depois surgiram muitas outras, mas as que tiveram uma influência decisiva na minha maneira de escrever foram experiências da juventude e do início da vida adulta. Faulkner, Flaubert, certamente Victor Hugo, as ideias de Sartre sobre a literatura, a ideia do compromisso do escritor, são ideias que li quando era jovem, estudante universitário, mas que me marcaram. Depois me distanciei muito de Sartre, mas sua ideia de que a literatura não é algo gratuito, que a literatura tem um impacto sobre a vida do indivíduo, da sociedade, que afeta a história, são ideias que continuam sendo válidas para mim e que explicam muito o tipo de literatura que faço, que está quase sempre se referindo a uma problemática social e histórica.

Marcelo Lins — Falamos um pouco sobre as fases da vida: a juventude, a maturidade e a velhice, e há essa fórmula muito comum e popular das pessoas que procuram eufemismos para falar principalmente da velhice. No Brasil, a gente usa a expressão “melhor idade” para dizer que não é tão ruim, que também há coisas boas. Mas pelo que tenho lido recentemente e visto você falar sobre essa fase da vida, parece encarar como uma coisa muito alegre, muito positiva esse momento da vida.
Mario Vargas Llosa —
Devemos aceitar que a vida é composta por etapas e que cada etapa tem sua própria problemática, mas também pode nos dar muitas satisfações, desde que não confundamos as etapas. Ao 80 anos não podemos fazer o que fazíamos aos 18 ou aos 20. Isso é lógico, mas ao mesmo tempo não há motivo para que aos 80 anos você deixe de viver, passe a esperar a morte. De forma alguma. Se aos 80 ou 90 anos você está vivo e lúcido, pode desfrutar muito da vida, desde que viva as experiências compatíveis com a idade que tem.

Marcelo Lins — Para muita gente a tecnologia e os computadores chegaram com muita força e são adversárias das formas mais antigas de expressão, como por exemplo, a literatura. Acha que esse conflito existe ou a literatura é mais forte do que isso?
Mario Vargas Llosa —
 Existe mais um problema do que um conflito. Na verdade há uma revolução tecnológica audiovisual que mudou muito a cultura do nosso tempo e há uma pergunta para a qual é difícil achar uma resposta: o que vai ocorrer com a literatura neste mundo no qual a presença da imagem é tão poderosa? A literatura não vai desaparecer, mas vai ser marginalizada. Se isso acontecesse, teria consequências gravíssimas. A literatura, além de produzir um grande prazer na vida, também é uma fonte muito importante para o funcionamento de uma sociedade democrática e livre. Acho que literatura é uma fonte muito importante de espírito crítico sem o qual não há uma democracia que funcione. E penso que pela primeira vez se apresenta o grande perigo de que a literatura fique um pouco à margem com a presença avassaladora da imagem na cultura de nosso tempo. Esse é um problema que ainda não resolvemos e sobre o qual paira uma grande incerteza.

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