Retrospectiva 2016

Instituto dos Advogados Brasileiros deu
voz aos reclamos da advocacia

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27 de dezembro de 2016, 9h06

À altura das suas tradições bicentenárias, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), na vanguarda do Direito desde 1843, travou intensas lutas no decorrer de 2016 em defesa do Estado Democrático de Direito, flagrantemente ameaçado por decisões judiciais que, sob o pretexto de promover o combate à corrupção, vêm desprezando preceitos constitucionais, inclusive cláusulas pétreas, como o princípio da presunção da inocência, e pisoteando garantias consagradas pela Constituição cidadã promulgada em 1988, como o direito ao contraditório e à ampla defesa.

No dia 5 de outubro, o IAB foi ao Supremo, na condição de amicus curiae na Ação de Declaração de Constitucionalidade 44 – impetrada pelo Conselho Federal da OAB –, em defesa da presunção da inocência, atingida pela decisão do Supremo Tribunal Federal que, em julgamento de um pedido de Habeas Corpus, em fevereiro, permitiu a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da sentença, desrespeitando o art. 283 do Código de Processo Penal.

A ADC foi uma das duas protocoladas para garantir o cumprimento do estabelecido no CPP, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”.

Da tribuna do plenário do Supremo, afirmei que o endurecimento da legislação penal continuaria abarrotando as prisões de pobres e negros que integram a população carcerária que lota o sistema penitenciário do país, e não uma meia dúzia de ricos presos pela operação “lava jato”.

Desse modo, o IAB deu voz aos reclamos da advocacia brasileira, que, nos últimos tempos, vem sendo submetida a processos dolorosos nos quais suas prerrogativas têm sido ignoradas. Sob a inadmissível alegação de que a relativização das garantias constitucionais é necessária para reprimir a corrupção e a impunidade, a advocacia brasileira tem enfrentado a supressão de direitos fundamentais dos cidadãos por ela representados.

No julgamento das ADCs, o ministro Marco Aurélio, designado relator, determinou em seu voto a imediata suspensão de todas as execuções antecipadas de pena e a revogação de todas as prisões decretadas antes das condenações se tornarem irrecorríveis. O ministro relator afirmou que a Corte, classificada por ele como a “última trincheira da cidadania”, ao admitir, no julgamento do Habeas Corpus, a prisão após a confirmação da sentença pela segunda instância, permitira a subversão de garantia constitucional, quando deveria assegurá-la.

A maioria dos integrantes da Corte Suprema, no entanto, por seis votos a favor e cinco contra, negou a liminar e considerou constitucional a execução antecipada da pena. Logo após a lamentável decisão, propagada equivocadamente como definitiva – alguns veículos de comunicação chegaram a divulgar que o STF estabelecera a obrigatoriedade da execução da pena provisória de prisão a partir da confirmação da sentença pela segunda instância –, alertei que a Corte Suprema examinara apenas o pedido de liminar, sem apreciar o mérito das ADCs.

E registrei que o STF não determinara que os tribunais prendessem os réus condenados após o cumprimento do duplo grau de jurisdição e que, ademais, era preciso aguardar o julgamento do mérito, quando o Supremo poderá rever seu entendimento.

Dois dias após o STF negar a liminar, o ministro Marco Aurélio deferiu medidas cautelares em habeas corpus suspendendo duas prisões autorizadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Uma das duas pessoas que ficaram livres da prisão antecipada fora condenada pela 6ª Vara Criminal de Santos (SP) a 10 meses de reclusão, em regime inicial fechado, pelo furto de 15 barras de chocolate avaliadas em R$ 75. A defesa apelou com base no princípio da insignificância, mas a segunda instância, além de não reformar a pena, determinou a sua prisão, enquanto o STJ não admitiu o recurso especial. Esta situação kafkiana não é o roteiro de um filme de ficção, mas a realidade da explosiva situação carcerária brasileira.

O ano de 2016 também ficará marcado pelos manifestos do IAB em repúdio à inadmissível violação das prerrogativas dos advogados e dos direitos e garantias dos cidadãos, consumada pela divulgação, pela mídia televisiva, de conversas telefônicas travadas entre as partes, em flagrante afronta ao Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal reconhece a advocacia como função essencial à administração da Justiça (art. 133, da CF), sendo o advogado inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão. Essa inviolabilidade inerente ao exercício da advocacia é protegida, especialmente, pelo art. 7º, inciso II, da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil).

O combate à impunidade só pode se dar em estrita observância ao princípio da legalidade, limitando os abusos e impedindo agressões ao amplo direito de defesa e à liberdade de julgamento. Por esta razão, fiz questão de subscrever o primoroso e histórico discurso proferido pelo orador oficial do IAB, José Roberto Batochio, na sessão solene comemorativa aos 173 anos do nosso instituto, realizada no dia 28 de setembro. No seu manifesto irretocável, redigido em absoluta comunhão com o espírito libertário que sustenta as tradições quase bicentenárias do IAB em defesa da justiça e dos direitos fundamentais, Batochio criticou o autoritarismo que veste a toga e se entrega à volúpia punitiva.

Movido pelo mesmo sentimento de indignação, uma semana antes, eu mesmo havia criticado duramente as chamadas “10 Medidas contra a Corrupção” elaboradas pelo Ministério Público Federal no decorrer da operação “lava jato” e reunidas por vários deputados no projeto de lei 4.850/2016. O fiz no evento promovido pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, com o apoio do IAB e da OAB-RJ, com o objetivo de analisar e debater as propostas de combate à corrupção que desprezam direitos fundamentais garantidos pela Constituição.

O PL 4.850/2016 foi rejeitado na sua totalidade pelo IAB, com aprovação unânime pelos consócios do parecer elaborado pela Comissão de Direito Penal contrário à proposta legislativa, na sessão ordinária de 23 de novembro. O posicionamento do instituto foi encaminhado no dia seguinte a todos os deputados, que, seis dias depois, em votação na Câmara, mantiveram, e com modificações, somente quatro das dez medidas originais. A palavra do IAB, que tem o peso de quase 200 anos de serviços prestados à construção e ao aprimoramento do Direito, será sempre uma ação de resistência a tentativas de extinção de direitos fundamentais.

Sempre sob o pretexto de estabelecer medidas contra a corrupção, assim como outras iniciativas legislativas semelhantes, o PL 4.850/2016, na sua forma original, visava a promover indevidamente profundas alterações no sistema processual penal, abrangendo outros crimes e aumentando as penas para eles previstas.  As aberrantes mudanças sugeridas no Código Penal e de Código de Processo Penal propunham a validação de provas ilícitas, a restrição ao uso do Habeas Corpus para todos os crimes e a inclusão do teste de integridade para o agente público, num claro risco de violação de direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana.

O parecer da Comissão de Direito Penal foi assinado pelos advogados Victoria de Sulocki, Christiano Fragoso, Eric Cwajgenbaum, Fernando Máximo de Almeida Pìzarro Drummond, João Carlos Castellar, Kátia Rubinstein Tavares, Leonardo Costa de Paula, Letícia Lins e Silva, Maíra Fernandes, Renato Neves Tonini, Ricardo Pieri, Sergio Chastinet Duarte e Tiago Lins e Silva.

Tempos difíceis tem vivido a advocacia brasileira. Em flagrante desrespeito ao direito à ampla defesa e ao contraditório, decisões judiciais recentes vêm afrontando princípios constitucionais consagrados e ameaçando as garantias que somente o processo penal democrático é capaz de conferir ao sistema jurídico.

 Contra essas graves arbitrariedades, o IAB tem lutado pela preservação do pleno exercício do direito de defesa. Vale frisar que a geração de advogados que viveu os tempos da ditadura militar se viu forçada a exercer a profissão sem poder lançar mão do instrumento do habeas corpus, suspenso pelo regime totalitário. Hoje, a advocacia enfrenta as arbitrariedades decorrentes do direito penal do inimigo, que suprime garantias processuais, antecipa a punição e impõe penas desproporcionais.

Durante o regime militar, os inimigos do poder eram os revolucionários da esquerda política. Hoje, são os que atuam no sistema financeiro. Amanhã, serão outros. Sejam quais forem, será sempre inaceitável, em qualquer época, o aviltamento do Estado Democrático de Direito como meio para, pretensamente, se alcançar a efetividade da Justiça.

Os primeiros meses de 2016 foram fortemente marcados pelo confronto e o radicalismo de ideias divergentes a respeito do rumo político a ser tomado no país, num clima de acirramento dos ânimos que nos aproximou do que vivemos em março de 1964. Não podemos nos deixar capturar pelos discursos midiáticos que vêm impregnando até mesmo instituições que têm o dever de defender a legalidade democrática. Viver sob a égide do Estado Democrático de Direito exige a atuação efetiva de todos para a concretização dos direitos sociais e políticos e do devido processo legal.

Por força da sua bicentenária tradição jurídica, o IAB assumiu a responsabilidade institucional de contribuir para a pacificação nacional naquele momento extremamente difícil para o País, ao assinar, em abril, o manifesto Conclamação Dirigida ao Povo Brasileiro, juntamente com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o Ministério da Justiça e o Ministério Público Federal, na sede da CNBB, em Brasília, na busca permanente por uma solução pacífica para a crise política.

No manifesto, as entidades conclamaram “todos os cidadãos e cidadãs, comunidades, partidos políticos e entidades da sociedade civil organizada a fazer a sua parte e cooperar para este mesmo fim, adotando em suas manifestações a busca permanente de soluções pacíficas e o repúdio a qualquer forma de violência, convictos de que a força das ideias, na história da humanidade, sempre foi mais bem-sucedida do que as ideias de força”.

Desde a fundação dos cursos jurídicos, em 11 de agosto de 1827, a advocacia brasileira tem percorrido uma trajetória marcada pela resistência a tempos de trevas e pela satisfação cívica de contribuir para o aprimoramento da ordem jurídica nacional. As muitas lutas travadas a partir do Século XIX incluíram a criação, em 1843, do Instituto dos Advogados Brasileiros, que nasceu com o propósito de constituir a Ordem dos Advogados do Brasil, fundada somente 87 anos depois, em 1930.

As reações quase bicentenárias da advocacia brasileira aos atentados praticados contra o estado democrático de direito em diversos momentos da História do país fortaleceram a importância do exercício da profissão. E culminaram no reconhecimento constitucional, pela Carta Magna promulgada em 1988, de que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”, conforme o seu art. 133.

Contudo, o momento atual tem sido de tristes ameaças à atuação do advogado – representante máximo na defesa do direito, da justiça e da liberdade. Por isso, foram muitas as ações do IAB em defesa da advocacia. Emitimos, por exemplo, parecer contrário ao PL 500/2015, do senador José Medeiros (PPS/MT), por ser inconstitucional e contribuir para a expansão do pernicioso fenômeno da criminalização da advocacia penal, ao criar a obrigação ao réu, em ações de improbidade administrativa e penais por crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, de comprovar a origem lícita dos recursos utilizados no pagamento de honorários advocatícios.

Enviamos ofícios às presidências da OAB-RJ e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, manifestando a preocupação do Instituto com o descumprimento das prerrogativas profissionais do advogado, como a de ser recebido pelos magistrados em seus gabinetes.

Repudiamos manifestações públicas de magistrados acerca de causas em andamento, por não se tratar de conduta apropriada, notadamente de integrantes das Cortes Superiores, os quais, aliás, estão investidos de competência recursal e originária para o julgamento dos processos. No 7º Congresso Brasileiro de Sociedades de Advogados, em São Paulo, enfatizei a necessidade de reação às constantes ofensas à advocacia.

São cada vez mais numerosos os casos inadmissíveis de violações às prerrogativas dos advogados e aos direitos e garantias dos cidadãos. Na esteira dos princípios do IAB, resistiremos a todas as formas de fundamentalismo, seja no Direito, na Justiça, na política ou na vida. Repudiaremos as ofensas à advocacia e lutaremos pela garantia do processo penal democrático. Manteremos o IAB na vanguarda do Direito, para honrar as suas tradições de quase 200 anos e continuar a ser o orgulho da advocacia brasileira.

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