Segunda Leitura

A lição do Evangelho de Mateus adaptada às nossas relações jurídicas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

25 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
Mateus foi um dos doze Apóstolos de Cristo e “morava e trabalhava como coletor de impostos em Cafarnaum, na Palestina. Quando ouviu a Palavra de Jesus, “Segue-me”, deixou tudo imediatamente, pondo de lado a vida ligada ao dinheiro e ao poder para um serviço de perfeita pobreza: a proclamação da mensagem cristã!”[1]

O Evangelho de Mateus é um dos quatro evangelhos canônicos e é o primeiro livro do Novo Testamento”.[2] Ele se divide em cinco partes, sendo que na quarta está a parábola dos “Dois Filhos”. Jesus entrou em Jerusalém e pregava no Templo. Inquirido pelos sacerdotes, formulou a seguinte questão:

28. Mas, que vos parece? Um homem tinha dois filhos, e, dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha.

29. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi.

30. E, dirigindo-se ao segundo, falou-lhe de igual modo; e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor; e não foi.[3]

Prossegue a parábola, criticando os sacerdotes porque não acreditaram na mensagem de João Batista. Porém, fiquemos apenas com o questionamento da conduta dos filhos, comparando-a com nossos ideais e práticas. Entre a parábola e nosso mundo, dois mil anos depois, aparentemente não há relação. Mas, na realidade, há muito a questionar.

A diferença na atitude dos dois filhos está na oferta recusada e cumprida e na promessa feita e descumprida. Será o nosso comportamento semelhante a qual dos dois filhos? Será que cumprimos nossas promessas?

Natal é momento de reflexão, de perdão, de pensar no próximo ou, como se afirma no site da Canção Nova, “o propósito de ouro é buscar o bem do outro como se fora o seu”.[4]

Se o momento recomenda reflexão, não há como não pensar na atual situação do Brasil, com mais de 12 milhões de desempregados, insegurança, sistema de saúde péssimo, educação decadente e um número cada vez maior de miseráveis nas ruas.

Partindo dessa realidade que está sob nossos olhos e que nem os mais otimistas pensamentos conseguem mudar, em que medida, como o segundo filho da parábola, afirmamos que tudo está errado, mas nas nossas atitudes colaboramos para que tudo assim continue.

No plano pessoal, seria oportuno que festejássemos o Natal alterando hábitos, cumprindo nossas intenções de ajudar ao próximo. Ao invés de mandarmos impessoais cartões de Natal por e-mail, poderíamos procurar tornar melhor a vida dos muitos que à nossa volta trabalham duro para ganhar algo em torno de R$ 1.200,00 mensais. E que esta boa vontade fosse além do Natal.

Concordamos todos com o fato de que a distribuição de renda no Brasil é péssima e, com certeza, uma das causas das más condições sociais. Que tal alguém que recebe R$ 15.000,00 ou mais, abrir mão de 10% de sua remuneração, direcionando-a ao pagamento da Universidade de um estudante carente realmente interessado em evoluir? Saindo da retórica, da crítica sistemática, este modo de proceder seria uma excelente forma de cumprir o propósito de diminuir a desigualdade social.

No âmbito de nossas vidas profissionais, seria oportuno pensar no Brasil e não apenas em nossos interesses pessoais e imediatos.

Juízes e membros do Ministério Público devem ser bem remunerados e ter garantias constitucionais que lhes permitam exercer com independência suas funções. Isto é absolutamente certo. Se os profissionais que atuam na “Operação Lava Jato” não tivessem as garantias constitucionais da inamovibilidade (não poderem ser removidos sem justo motivo) e da vitaliciedade (poderem ficar no cargo até 75 anos, desde que não cometam falta grave), ela naufragaria nos primeiros seis meses.

Boa remuneração significa ter o mínimo para manter uma vida digna, ou seja, habitação, educação e saúde, basicamente. Não significa, todavia, enriquecer no serviço público. Quando os pagamentos se tornam excessivos (v.g., o pagamento de R$ 1.010,00 a cada dependente de magistrado no Estado do Rio de Janeiro[5]), alguém no outro lado pagará o preço.

Reportagens como a do Globo, apontando remuneração de magistrados acima do teto,[6] acabam jogando a sociedade contra os juízes, disseminando a desconfiança e a descrença. Se as lideranças institucionais ou associativas adequarem seus pleitos à realidade de um país envolvido em graves problemas econômicos, estarão cumprindo, com visão de estadista e não de líder sindical, a promessa feita quando assumiram seus cargos.

Atitudes pequenas também devem ser repensadas. O auxílio desemprego frequentemente é burlado por empregados e empregadores. A secretária do escritório de advocacia começa a trabalhar, mas, por estar recebendo auxílio-desemprego, pede para não ter o contrato de trabalho anotado na Carteira. Recebe, assim, com a cumplicidade do empregador, salário e benefício previdenciário. Aparentemente, um ato pouco ofensivo. Na verdade, a soma destas pequenas atitudes levam a Previdência Social ao desequilíbrio em suas contas. Seria bom lembrar que todos têm um compromisso ético, uma promessa não escrita, de colaborar com o país.

Alguns negociam nos seus contratos a expedição ou não de nota fiscal. Como se o Estado pudesse sobreviver sem receber tributos. E, contraditoriamente, reclamam das políticas públicas na área da saúde ou da educação. Como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Óbvio que prometem mas não cumprem, como o segundo filho da parábola.

Natal é um bom momento para mudança de hábitos, de práticas. O Brasil somos nós e não algo apartado, fora, distante. Se os deputados não são bons, somos nós os responsáveis, porque os elegemos. Se as instituições não funcionam, somos nós os responsáveis, porque não as fiscalizamos e não cobramos providências. Se temos uma sociedade dividida entre um percentual cada vez menor de pessoas da classe alta ou média e uma enorme quantidade de carentes, é porque, embora reconheçamos como injusta a distribuição de renda, nada fazemos de concreto para mudar tal estado de coisas.

Saiamos do conforto de nossa rotina, coloquemos nossas promessas na agenda, impressa ou eletrônica, para que possamos afirmar, com orgulho, no Natal de 2017: cumpri minhas promessas.

[1] http://santo.cancaonova.com/santo/sao-mateus-apostolo-e-evangelista/, acesso em 20/12/2016.

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Evangelho_segundo_Mateus, acesso 20/12/2016.

[3] Mateus 21:28-32, https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/21, acesso em 21/12/2016.

[4] http://formacao.cancaonova.com/liturgia/tempo-liturgico/natal/quais-sao-os-seus-propositos-de-natal/, acesso em 22/12/2016.

[5] http://itingagospel.com.br/portal/justica-aprova-auxilio-educacao-para-filhos-de-juizes-de-r-3-mil-por-mes/, acesso em 24/122016.

[6] http://oglobo.globo.com/brasil/mais-de-dez-mil-magistrados-recebem-remuneracoes-superiores-ao-teto-20340033

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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