Tribuna da Defensoria

Restringir HC, além de inconstitucional, não acaba com a corrupção

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20 de dezembro de 2016, 7h38

Chegamos ao cabo de mais um ano (forense) — um ano recheado de emoções jurídicas, em todas as áreas de interesse. Na esfera legal, simplesmente começou a viger um novo código processual, diploma primeiramente voltado aos procedimentos cíveis, mas com inegável e escancarada repercussão em outros ramos do Direito. Suas implicações, já muito analisadas nesta coluna, são evidentes, inclusive no atuar prático do defensor público [1].

No espaço constitucional, é difícil imaginar período mais conturbado: motivados por deslizes políticos, culminando até mesmo em um excepcional impeachment, os mais diversos grupos se expressaram. Esse fenômeno inicialmente social rapidamente se desdobra em discussões jurídicas — estas, sim, a nos interessar neste espaço.

Protagonista nessa peça dramática foi o Ministério Público Federal, ator que procurou aproveitar seu momentâneo brilho para solucionar o problema da corrupção, com sutis medidas. Simples como contar até dez, portanto, seria extirpar esse vício. A tentadora proposta (de lei e de emenda constitucional) foi prontamente acolhida pelo povo nas ruas, há muito esgotado, com razão, do amoralismo complacente brasileiro.

Me causou autêntico espanto, contudo, uma breve leitura nos projetos originalmente enviados ao Congresso Nacional (agora, reenviados, pelo ministro Luiz Fux [2]). De fato, existe uma clamorosa correnteza pela sua aprovação, alimentada pelos setores acusatórios e pela população, que, sendo leiga, ignora suas minudências. No outro lado do ringue, a rouca voz da Defensoria Pública, mormente a carioca [3], acenando sempre com a Constituição.

Seria imprudente e excessivamente pretensioso sentenciar tal antítese em qualquer sentido que fosse, dentro de tão exíguo ensaio, razão pela qual opto por me debruçar sobre uma das medidas: a inegável restrição do uso do habeas corpus. Mas não sem antes desenhar uma breve digressão.

A origem do famoso HC remonta ao direito inglês, onde surge o referido instrumento como forma de dar uma ordem (writ) de apresentação do corpo da pessoa (leia-se “da pessoa viva, em carne e osso” — uma alerta que, nos dias correntes, se faz necessária), com vistas aos mais diversos fins, entre os quais sua libertação. Essa dinâmica pode ser percebida pela literalidade do diploma processual penal, cujo artigo 656 estatui que “recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar”, existindo, inclusive, oportunidade de se interrogar o paciente (artigo 660).

No ordenamento pátrio, em legislação de 23 de maio de 1821 havia previsão de que ninguém poderia ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita — valor basilar, extraído do direito natural, que nunca mais saiu do nosso horizonte (embora, por vezes, sejamos obrigados a repetir o óbvio, a exemplo do habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria do Rio de Janeiro, buscando extinguir as apreensões ilegais de adolescentes que se dirigiam à praia).

O habeas corpus propriamente dito adveio apenas, ao menos de forma explícita, no CPP de 1832, sendo repetido pela Constituição Republicana de 1891, a qual protegia aquele que sofria ou se achava em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder. A jurisprudência rapidamente consagrou uma interpretação amplíssima do remédio, ainda que o direito mutilado não fosse, diretamente, o de ir e vir.

Seguiu-se a edição do diploma processual atual e, posteriormente, da Constituição Federal vigente. O cotejo, aqui, é bastante interessante: enquanto o CPP fala em iminência de sofrer coação, o constituinte apenas exigiu que o paciente esteja ameaçado de sofrer, de modo que a exigência da carta cidadã é mais branda — uma distante ameaça ao jus libertatis bastará para viabilizar a impetração.

Note-se, pois, uma imperiosa releitura da lei federal à luz da Constituição, como, de fato, têm feito os tribunais de cúpula. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça enxergou o cabimento do HC, mesmo que suspenso condicionalmente o feito [4], bem como para discutir legalidade de medida protetiva consistente na proibição de o suposto autor do fato se aproximar da vítima [5]. Algumas vezes, porém, o STJ deslizava, exigindo a assinatura do impetrante, sob pena de não conhecer tão urgente pedido, em uma demonstração de sua conhecida jurisprudência defensiva, em desconformidade com o princípio da primazia do julgamento de mérito, robustecido pelo novo CPC (vide artigo 932, parágrafo único).

Por outro lado, quando inexistir, em absoluto, qualquer possibilidade de violação do direito de ir e vir, incabível será o remédio em análise. Permanecendo em exemplos de julgados deste ano, é o que motivou o Supremo Tribunal Federal a afastar o habeas quando buscar o trancamento de processo de impeachment (haja vista a discussão tratar de direitos políticos [6]) e de direitos do preso, na execução penal, sem relação com seu status libertário, como a visitação [7] ou a liberdade de culto.

Tal panorama, de um modo geral, não gerava inquietações doutrinárias, sobretudo por respeitar os limites (amplos) delineados pela Constituição: havendo ameaça ao direito de liberdade, cabível seria o habeas corpus. Essa leitura é fulcral no Estado Democrático de Direito, uma vez que o código processual fora elaborado em um período autoritário, muitas vezes não deixando recurso à vista da defesa, que sempre enxergou no HC a última esperança de reverter ilicitudes de maior ou menor grau — é o caso do recebimento da denúncia, para o qual, ao contrário do não recebimento, não existe previsão de impugnação específica.

Pois bem. Chegamos à proposta do MPF, buscando “racionalizar” o uso do habeas corpus, evitando abusos, desenhando um todo novo artigo 647 do CPP. Nada mais absurdo e na contramão da sistemática de defesa dos direitos fundamentais atual, tendo em vista que os diplomas convencionais garantem a permanência do HC e do recurso de amparo (similar ao nosso mandado de segurança) mesmo em períodos de excepcional e temporária restrição de direitos humanos, enquanto garantia instrumental indispensável [8].

A medida em questão reduz o HC a níveis lamentáveis. Se aprovada fosse, respiraria por aparelhos o referido instrumento. Primeiro, porque se voltaria apenas aos prejuízos diretos à liberdade atual de ir e vir. A incompatibilidade com a previsão constitucional é patente: agressões menos diretas à liberdade ou golpes em perspectiva deixariam de estar abarcados pelo remédio. Um a zero Constituição Federal.

O comando sonhado pelo órgão acusador prossegue, em seu parágrafo primeiro, vedando diversas aplicações do habeas corpus, excetuando somente os casos em que sua concessão implicasse a soltura imediata do paciente (se filiando à inconstitucional lógica de que o HC se destinaria tão somente a agressões diretas e imediatas à liberdade).

A primeira exclusão é a de sua concessão de ofício. Para o projeto de lei que pretende extinguir a corrupção (é bom retomar essa observação teleológica, tendo em conta a distância entre a finalidade da lei e seu conteúdo), caso o julgador do habeas perceba uma aberrante ilicitude, mas que não repercuta na imediata soltura do paciente, ficaria de mãos atadas. É incompreensível: alguém condenado ao regime aberto, mas preso, por um erro qualquer, num presídio federal de segurança máxima não poderia ser solto, ex officio, pelo magistrado que atente para essa circunstância, não ventilada na petição, obrigando a uma nova impetração, fazendo sangrar os princípios da economia processual, da eficiência e da duração razoável do processo.

Também seria extirpada a concessão de liminares, excetuadas as hipóteses mencionadas, desde que haja translado dos autos para os julgadores. Ou seja: para prender, basta a convicção do magistrado com fulcro nos elementos indiciários; para soltar, toda prudência é pouca, sendo melhor aguardar uma profunda análise do processo. Enquanto isso, o paciente se diverte em nossas masmorras medievais.

Se preocupou, ainda, o projetista em eliminar qualquer discussão acerca da admissibilidade do HC sucedâneo de recurso ou concedido com a dita supressão de instância. Trata-se de falha gritante no tocante à ponderação de interesses: a liberdade do paciente não vale mais que formalidades procedimentais? Acaso alguém pode questionar o custo benefício de se conceder uma ordem por instância superior, quando a inferior restou omissa, negligenciando seu dever de proteger o cidadão?

Tampouco seria concedida ordem para desfazer situação jurídica oriunda de nulidade ou para trancar investigação ou processo, salvo se estiver em jogo a liberdade imediata do sujeito. Trocando em miúdos, desaparece do jogo processual a muitas vezes única medida capaz de provocar a autoridade judiciária para que desfaça vícios graves. Investigações ou processos sem sustentação legal ou sem justa causa poderiam seguir seu curso. Curioso é que o Ministério Público quer, e bem, investigar, mas não quer quem breque investigações. Dá o que pensar.

A cereja do bolo é a escancarada artimanha institucional que exige, para a concessão da ordem, a prévia requisição de informações ao promotor natural. Traduzindo: as informações dos magistrados, protocolares e, por vezes, morosas, já não bastam — será obrigatório que o promotor do caso, que é parte no processo, se manifeste. Mais um tiro no fim último do HC, que é a célere provocação da autoridade.

Que os tempos são estranhos, ninguém duvida. Que os ânimos estão exaltados, idem. Por consequência, há que se ter calma, respirar fundo e raciocinar: restringir o habeas corpus, além de ser uma solução completamente inconstitucional, acabaria com a corrupção? Qual é a lógica desse silogismo ministerial? Ou melhor, existe lógica, existe silogismo, existe raciocínio? A impressão que dá é que, sentindo um cheiro de queimado, optou-se por borrifar um aromatizante no ambiente.

A sociedade, principalmente o meio jurídico, precisamos nos informar bem sobre o que pretendemos. As convicções políticas, todas elas válidas se livremente exercidas, não podem servir de argumento único e último. Caso contrário, embarcando na solução simplista da medida comentada nesse artigo, estaríamos anuindo à criação de uma nova figura jurídica: a do placebo constitucional. E, desse modo, perde o cidadão, e, assim, perdemos todos.


1 Para uma ambientação suficiente com o novo CPC, recomenda-se a recente obra publicada, de autoria de diversos colegas: SILVA, Franklin Roger Aves(Org.). O Novo Código de Processo Civil e a Perspectiva da Defensoria Pública. 1ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 1.

4 STJ. 5ª Turma. RHC 41.527/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 3/3/2015.

5 STJ. 5ª Turma. HC 298.499/AL, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 1/12/2015.

6 STF. Tribunal Pleno. HC 134315 AgR/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 16/6/2016.

7 STF. 2ª Turma. HC 127685/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 30/6/2015.

8 É o que se depreende do artigo 27.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

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