Justiça Tributária

O fim da imunidade tributária das igrejas é urgente

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

19 de dezembro de 2016, 8h08

Spacca
Raul Haidar [Spacca]“Acender as velas
Já é profissão.
Quando não tem samba
Tem desilusão.”
(José Flores de Jesus, o Zé Keti – 1921-1999)

Num dos mais recentes escândalos de nossa escandalosa pátria registrou-se manifestação de um dirigente de entidade religiosa que, aos gritos e perante repórteres de televisão, declarou ter recebido oferta de doação em cheque depositado em sua conta pessoal.

Segundo ele, por ter depositado o cheque em sua conta pessoal e declarado em sua declaração de rendimentos, com o pagamento do imposto, nada havia de ilegal. Também aos berros declarou-se vítima de retaliação em consequência de suas posições políticas.

Como já defendemos em nossa coluna de 28 de março de 2016 Pelo bem do país, imunidades fiscais precisam ser revistas. Já havíamos afirmado em 22 de outubro de 2012 que Nenhum sistema tributário pode gerar privilégios.

O incidente com o mencionado dirigente de entidade religiosa por certo não é caso isolado. A proliferação de inúmeras seitas, em sua maioria declarando-se cristãs, pode facilitar o uso indevido da imunidade tributária.

Não vai aqui nenhuma pretensão de julgar os atos praticados pelos que dirigem essas seitas ou igrejas. As autoridades fiscais estão aparelhadas para apurar e fazer os lançamentos devidos, quando forem constatadas infrações ou desvios no uso da imunidade.

Já ocorreu, por exemplo, que o município de São Paulo fez lançamento de IPTU sobre terreno pertencente a uma entidade religiosa (com mais de 100 anos de atuação) por ela utilizado como cemitério.

Como a entidade religiosa não promoveu o recolhimento do imposto, foi a dívida inscrita na dívida ativa. Citada na execução, foi oferecido à penhora o imóvel objeto do lançamento, ou seja, o terreno do cemitério. Oferecidos os embargos, o lançamento foi cancelado, reconhecendo-se a tese de que o cemitério equipara-se ao templo, eis que é utilizado em sepultamentos e também em rituais religiosos.

No caso, a instituição aufere rendimentos com a cessão do espaço para sepultamentos, além de auferir taxas pela manutenção do cemitério. Sendo, todavia, pessoa jurídica sem finalidade lucrativa, entendeu o Judiciário que o conceito de templo não se limita ao local destinado apenas às atividades de cultos, mas estende-se ao cemitério, eis que aí também são praticadas ações similares ao culto.

No caso restou não esclarecida uma questão: na hipótese de improcedência dos embargos, poderia o terreno do cemitério vir a ser levado a leilão?

Mas a questão da imunidade, como afirmamos, permite abusos. Já se tornaram comuns  a instalação de templos de diminutas dimensões, onde não cabem mais que 20 ou 30  pessoas. No bairro em que resido existe uma igreja evangélica desse tipo. Ao que parece só funciona à noite.

O desagradável e ilegal nesse caso é que os trabalhos religiosos são realizados com o uso de equipamento de som em elevadíssimo volume. Como já vi, para que o pastor seja ouvido por pouco mais de 10 pessoas, no pequeno espaço de uma garagem que foi transformada em templo, é necessário que ele o faça aos gritos e com o som no volume máximo. Ficamos na dúvida quando pastores gritam (como aquele do incidente citado no início) : Deus é surdo?

A imunidade é uma proibição de cobrar imposto. Parece-nos injusta e inadequada para este século, pois as igrejas já não podem ser perseguidas pelo governo, especialmente num país laico, onde todos são iguais perante a lei.

Várias entidades que se intitulam igrejas já se transformaram em impérios econômicos, cujo poder ninguém sabe até onde vai e cujos lideres exercem esse poder de forma totalmente obscura ou mesmo através de ordem hereditária. Não há exagero em vermos tal situação como estado dentro do Estado. Afinal, há redes de comunicação (TV, Rádio, jornal) e até partidos políticos agindo abertamente como órgãos subordinados a instituições religiosas, onde é possível a subordinação dos eleitos à hierarquia da seita.

Também não se exagera quando atribui-se a tais organizações uso indevido ou pelo menos discutível dos recursos que arrecadam. 

Há uma óbvia incoerência entre o que os líderes dessas religiões ou seitas pregam e o que praticam. Não importa qual o livro sagrado que supostamente  estudam ou divulgam, mas o discurso é sempre o mesmo: fazer o bem, praticar a humildade, ajudar o próximo etc.  

Por outro lado, não é razoável que  as receitas e despesas dessas entidades não sofram adequada fiscalização. Não basta, nem mesmo, que o padre, pastor, rabino ou pai de santo forneça recibo das doações recebidas. Deve ser fiscalizada a correta aplicação desses valores. A entidade deve, por receber um favor  muito relevante enquanto toda a sociedade dele não se favorece, tornar públicas as suas contas, que precisam passar por auditoria independente.

Assim, o correto seria a revogação das imunidades. Estas deveriam ser substituídas por isenções, sujeitas às mesmas normas de fiscalização a que se submetem as organizações sociais (ONGs) ou similares.

Se o Zé Keti registrou que acender as velas já é profissão, também não podemos nos esquecer que o nosso sistema, que Alfredo Augusto Becker denominou de “Carnaval Tributário” não precisa adotar como enredo o “Samba do crioulo doido”:

“Da união deles dois
Ficou resolvida a questão
E foi proclamada a escravidão.”

(Sérgio Marques Rangel Porto,
o Stanislaw Ponte Preta-1923-1968)

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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