Opinião

Manter depósito no exterior deveria ser crime?

Autor

  • André Menescal Guedes

    é advogado e sócio-diretor do Nelson Wilians & Advogados Associados à frente dos Estados do Maranhão e Ceará. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. LLM em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC).

19 de dezembro de 2016, 5h47

Ao cabo de sete meses de muitas discussões, findou o prazo da anistia fiscal brasileira com uma arrecadação que não chega sequer a um terço do que poderia ter sido recolhido de impostos, tendo por base os estimados 150 bilhões de dólares em ativos lícitos de brasileiros no exterior.

Como a quantidade de brasileiros com recursos fora do país sempre foi historicamente alta, e dado que o percentual do tributo previsto na lei foi dos mais elevados do mundo, mesmo assim o resultado da arrecadação foi expressivo, despertando o interesse do governo numa segunda rodada.

Por ora, tudo indica que uma reabertura manterá algumas restrições presentes na primeira fase, razão pela qual se impõe uma reflexão sobre o cenário prático da imensa maioria dos contribuintes que permanecem irregulares. Numerosos são os brasileiros nesta condição, e cujos ativos no exterior, além de perfeitamente lícitos, originaram-se fora do país, não tendo sido remetidos para fora do país ilegalmente.

Impedidos ou não de participar do primeiro programa, muitos dos contribuintes descobertos veem-se hoje divididos entre o interesse de corrigir seu passado e o medo das consequências dessa iniciativa, em razão da ultrapassada legislação penal brasileira acerca da mera manutenção de depósitos no exterior.

É que, promulgada há exatas três décadas, a Lei 7.492 previu equiparação de efeitos entre o indivíduo que envia ilegalmente recursos para o exterior e aquele que, tendo-os recebido já em território estrangeiro, os mantém sem declarar à repartição federal competente.

Assim, o dilema que se apresenta àqueles que queiram se regularizar pela via ordinária, por quaisquer razões que os tenham levado a não participar do programa, é simples: se, por um lado, o pagamento do tributo e seus acessórios, de maneira espontânea, atrai a extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, por outro, no âmbito do crime cambial/financeiro de manter depósitos não declarados no exterior, nada na legislação pátria prevê que a retificação de declarações ao Banco Central afaste a repercussão criminal.

Com a evolução da jurisprudência, já se sabe que a interpretação de “manter” vem associada às regras do próprio Banco Central para a declaração de ativos no exterior. No julgamento da Ação Penal 470, o STF pôde estabelecer que, sem o decurso do prazo para transmissão de declaração ao Banco Central, ainda que tenha havido crime tributário ou outra irregularidade, evasão de divisas não há. Já disseram também os tribunais, em várias oportunidades, que a mera denúncia espontânea perante a Receita Federal não é capaz de ilidir a responsabilidade pelo crime cambial, conclusão que não pretendemos aqui refutar.

O que pouco se discute são as consequências para o indivíduo que, tendo deixado de prestar declarações ao Banco Central e à Receita Federal, deseje regularizar sua situação perante ambos. Se, antes de qualquer fiscalização, o contribuinte não só retifica suas declarações à Receita Federal, adimplindo os tributos e seus respectivos acessórios, mas também presta as declarações extemporâneas ao Banco Central — o que também se dá com o pagamento de expressiva multa —, não parece fazer sentido que, embora salvo da persecução criminal pelo crime fiscal, siga assombrado pela acusação da chamada evasão imprópria.

Se, na evasão imprópria, a só omissão de declaração anual ao Banco Central arrasta o contribuinte, a um só tempo, para a condição de infrator administrativo e de criminoso, caracterizando o chamado crime de mera conduta, parece incompatível com a punibilidade, na esfera penal, o fato de haver clara previsão, nas normas do Banco Central, para transmissão com atraso da declaração.

Afronta o princípio da intervenção mínima, balizador relevante das normas penais, que uma obrigação suficientemente regulamentada na esfera administrativa, e cujo descumprimento é corrigível por simples retificação, venha carregada com o peso de uma responsabilidade criminal, sobretudo porque a correção do malfeito, ainda que em retardo, pressupõe inexistência de dolo.

Nesse aspecto, o Direito Comparado — com a devida parcimônia, sempre um excelente norte —, também nos dá sua contribuição: a maior parte dos países do mundo trata a manutenção de depósitos não declarados no exterior como mero ilícito administrativo, sanável pelo pagamento de multa.

Não se questiona que, em face do irrefreável movimento internacional de combate à evasão fiscal, ao planejamento tributário ilícito e à lavagem de dinheiro, todos aqueles que se encontrarem em situação de irregularidade deverão, por bem ou por mal, oferecer ao alcance do fisco os bens ainda ocultos.

O que merece nossa atenta consideração é o futuro de tal modalidade criminosa, num cenário econômico em que a política monetária do país decerto dispensa, diferentemente do que ocorria na já remota década de 80, a criminalização deliberada de condutas cujos autores, em prol de si próprios, da sociedade e das reservas cambiais, só procuram segurança na hora de acertar suas contas com o governo.

Cervantes disse que o tempo amadurece todas as coisas. Que estejam prontos, então, os julgadores a enfrentar o tema nos anos que estão por vir.

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    é advogado e sócio-diretor do Nelson Wilians & Advogados Associados à frente dos Estados do Maranhão e Piauí. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. LLM em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC).

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