Segunda Leitura

Trabalhar na segurança pública no Brasil exige doação além dos limites

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
Os agentes da Segurança Pública recebem, diariamente, uma nova notícia a por em risco suas atividades. O risco, ao contrário do que se pensa, não vem apenas dos que vivem fora da lei. Vem de todos os lados, levando até os mais idealistas ao desestímulo e à consequente omissão.

Mas, antes de qualquer comentário a respeito, cabe um esclarecimento. Não sou um ingênuo desconhecedor das mazelas das forças de Segurança Pública. Em mais de 50 anos de atividades forenses, nas mais variadas posições, muitas delas com contato direto ou indireto com a polícia, dispenso informações a respeito. Conheço muito bem os abusos, tráfico de influência, corrupção e outras espécies de desvios funcionais.

Porém, aqui não é aos maus policiais que me refiro. Estes, tal qual magistrados e membros do Ministério Público, quando enveredem para a ilicitude, devem merecer todo o rigor da lei, sem contemplação. É que, além do mal que fazem, praticam-no com o escudo do Estado, sem os riscos de um marginal comum.

Portanto, dirigindo-me aos bons, aos que querem acertar, é que faço estes comentários. É este capital humano que o Brasil não pode perder. São estes que precisam ser resguardados, estimulados, reconhecidos, pois, se assim não for, a segurança da população, já precária, se tornará cada vez pior.

Vejamos como isto se dá no mundo real. Nas Faculdades de Direito ou fora delas (como nas Academias de Polícia Militar) há uma grande quantidade de estudantes, inclusive mulheres, que planejam fazer carreira na Segurança Pública.

Os interessados programam-se para os concursos públicos com dedicação, estimulados pelos resultados positivos de operações exibidas na mídia, sonham em bem servir seu país. Vencidas as várias etapas, em uma corrida de obstáculos que exige não só conhecimentos teóricos, mas também testes de força física, feito o curso na escola ou Academia de Polícia, entram em plena atividade. E aí a vida reserva-lhes algumas surpresas não muito agradáveis, que vão muito além das normais do cargo.

A primeira delas é ter que ouvir, mesmo tendo poucos dias de exercício, as mais diversas críticas ao sistema, acusações de corrupção e de arbitrariedade. Em outras palavras, quando deveriam receber estímulo da sociedade, recebem uma sucessão de frases pessimistas (“polícia não tem futuro, faça concurso para juiz”) e, por vezes, agressivas. Evidentemente, isto não será fonte de estímulo, mas sim fator de desânimo.

Em um segundo momento, terão dificuldade em saber o que podem ou não podem fazer. Sim, porque já não vivemos sob o império da lei. Esta tem sua validade decidida a cada dia, de diferentes formas. Princípios que nem se sabe bem de onde vêm, regra geral ostentando nomes pomposos e pouco compreensíveis, acabam valendo mais do que um artigo do Código Penal. E às vezes tais princípios são considerados implícitos na Constituição, ou seja, só existem na cabeça de quem os reconhece. E este reconhecimento vai variar conforme o intérprete queira.

No entanto, lá na ponta, o policial foi ensinado, e prestou compromisso, a cumprir a Constituição e as leis de seu país e não a decifrar comandos implícitos. E aí podem dar-se duas coisas: a) a frustração de ver um trabalho, por vezes planejado por longo tempo e com risco de vida, resultar em nada; b) acabar sendo processado por abuso de autoridade, porque, se crime não havia e houve prisão, não será difícil concluir que houve abuso.

Exemplo. O TJ-SP absolveu um condômino que tinha 21 pés de maconha plantados em seu apartamento, em São Paulo. Foi condenado em primeira instância por tráfico, sustentou ser viciado, foi absolvido e a Câmara Criminal pediu que os policiais fossem investigados.[1] Não li o processo e por isso não critico a decisão.

Observo apenas que a polícia agiu a pedido de alguns vizinhos que reclamaram, “após perceberem que o som da casa estava ligado havia três dias”, algo que foge às regras normais de convivência. Nenhuma lei ou ato administrativo menciona quantos pés de maconha são necessários para uso próprio. A conclusão, quando da apreensão,  foi a de que, sendo 21, o destino era a venda. Mas, tudo isto pode gerar dúvidas, discussões, afinal o autuado talvez precisasse de uma quantidade expressiva por dia. Ao final só uma coisa é certa: estes policiais, agora, não atenderão tal tipo de ocorrência, cruzarão os braços.

Os riscos podem ser externos. O jornal O Estado de São Paulo noticiou: “PCC planejou assassinato de agentes”. Segundo apuração realizada, estava planejada a morte de agentes penitenciários, policiais civis e militares, cujos endereços e rotinas já haviam sido levantados, sendo que as mortes seriam executadas como se fossem latrocínios, a fim de não despertar suspeitas sobre a facção.[2] Evidentemente, os policiais escolhidos não eram corruptos e, por isso, atrapalhavam os planos da organização criminosa. Alguém, além de suas famílias, está preocupado com isto?

Em outro momento o desestímulo vem da jurisprudência. O exercício da função policial, mais do que outras, sujeita o agente a ofensas, provocações. Claro que isto não é privilégio das forças de segurança. Servidores públicos em geral estão sempre sob risco, principalmente em locais de grande afluência de público, como, por exemplo, hospitais e repartições do INSS.

Ocorre que a 5ª Turma do STJ, decidindo o REsp 1.640.084/SP, na última quinta-feira (15/12), concluiu que “crime de desacato a autoridade é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)”. Em outras palavras, não existe mais o crime de desacato previsto no artigo 331 do Código Penal. A fundamentação do voto do relator é tecnicamente muito boa. Só precisa agora explicar para o PM que estiver atendendo uma ocorrência que, se alguém lhe disser aos gritos os mais cabeludos palavrões ele terá que ficar calado na frente de todo mundo.

Óbvio que o cidadão tem o direito de crítica, de manifestação, de exigir transparência no serviço público. Mas entre isto e ter direito a desacatar há uma longa distância. Amanhã ou logo mais a frente, em meio a uma sessão no STF, exibida na TV em tempo real, alguém poderá tecer comentários sobre a mãe do ministro que vote contra os seus interesses e isto não significará nada. A sugestão do parecer do MPF na decisão do STJ, que é a da vítima entrar com uma ação cível de indenização, não é das mais animadoras. A ofensa exige resposta imediata e não 6 ou mais anos depois.

Por vezes, o risco vem dissimulado. O delegado de polícia recebe uma ocorrência e esta, por si só, suscita dúvidas. Vítima e suspeito sempre têm versões opostas. Imagine-se, por exemplo, um tiro disparado, que poderá tanto ser tido como homicídio tentado ou crime de perigo (artigo 121, c.c. 14, inciso II ou 132, ambos do Código Penal). Cabe ao delegado decidir se é um ou outro, disto resultando ou não a lavratura de auto de prisão em flagrante e o recolhimento do acusado à prisão (artigo 304, § 1º do Código de Processo Penal).

Seja qual for a sua decisão, poderá um promotor de Justiça, pelo simples fato de ter opinião jurídica contrária, entender que houve crime de prevaricação e, sob o argumento de que exerce o controle externo da Polícia Judiciária, determinar que se investigue a autoridade policial. Provavelmente ao final, depois de alguns anos, o “crime de hermenêutica” será considerado inexistente. Mas o delegado será um a mais a omitir-se sempre que puder. E o promotor, certo de que está salvando o Brasil, seguirá na sua imaturidade a colaborar para o descalabro da Segurança Pública. Sem que ninguém lhe ponha freios.

Mas nada está pronto e acabado, sempre há a possibilidade de tornar-se pior. O PL 280/2016, apresentado pelo senador Renan Calheiros ao Senado, especifica minuciosamente a ação policial, aumentando a série de possibilidades de ser reconhecido o crime de abuso de autoridade.[3]

Neste quadro, não é de se admirar que a violência urbana aumente a cada dia e que o crime organizado cresça, ao ponto de crer-se que até determinou que as torcidas de futebol cessem suas brigas em São Paulo.[4] O Estado, ineficiente, embalado em sonhos de uma sociedade perfeita, mostra-se cada vez mais fraco, nem sequer a Suprema Corte é respeitada. Em um cenário como este, ser policial e manter seus ideais é tarefa para gigantes. Faço votos de que não desistam.


[1] Folha de São Paulo, 17/12/2016, B8.
[2] Estado, 16/122017, Metrópole A-17.
[3] http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=196675&tp=1, acesso 2/12/2016.
[4] http://esporte.ig.com.br/futebol/2016-12-08/paz-organizadas-pcc.html, acesso em 17/12/2016.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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