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DPVAT é seguro compulsório, e não uma espécie de tributo

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

14 de dezembro de 2016, 17h03

Spacca
A compreensão do regime jurídico do seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT) ainda está a exigir melhor reflexão sobre notas particulares do caráter obrigatório do pagamento do prêmio, como prestação devida a partir da relação jurídica de contrato de seguro legalmente obrigatório[1], sem qualquer confusão com alguma espécie de “tributo”.

Quanto à natureza jurídica do DPVAT, algumas formulações orientam-se para admitir que essa seria uma espécie de tributo, na forma de “contribuição parafiscal”. No entanto, essa construção não resiste a um exame mais profundo das relações jurídicas consolidadas em pagamento do “prêmio” como consectário de um contrato legalmente obrigatório, a qual não detém natureza jurídica tributária, como igualmente confirma a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do próprio Supremo Tribunal Federal.

Apenas para melhor esclarecimento, o DPVAT foi instituído pela Lei 6.197/74, que incluiu o inciso ‘l’ no artigo 20, do Decreto-lei 73, de 21 de novembro de 1966, o qual trazia o rol dos contratos de seguros legalmente obrigatórios.

Vejamos o que diz o texto legal, in verbis:

“Art 20. Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:

a) danos pessoais a passageiros de aeronaves comerciais;

b) responsabilidade civil do proprietário de aeronaves e do transportador aéreo;

c) responsabilidade civil do construtor de imóveis em zonas urbanas por danos a pessoas ou coisas;

d) bens dados em garantia de empréstimos ou financiamentos de instituições financeiras pública;

e) garantia do cumprimento das obrigações do incorporador e construtor de imóveis;

f) garantia do pagamento a cargo de mutuário da construção civil, inclusive obrigação imobiliária;

g) edifícios divididos em unidades autônomas;

h) incêndio e transporte de bens pertencentes a pessoas jurídicas, situados no País ou nêle transportados;

i) crédito rural;

j) crédito à exportação, quando julgado conveniente pelo CNSP, ouvido o Conselho Nacional do Comércio Exterior (CONCEXl) – Danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não;

l) danos pessoais causados por veículos automotores de vias terrestres e por embarcações, ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não;

m) responsabilidade civil dos transportadores terrestres, marítimos, fluviais e lacustres, por danos à carga transportada.

Parágrafo único.  Não se aplica à União a obrigatoriedade estatuída na alínea "h" deste artigo”.

Como se pode verificar, o DPVAT soma-se a outros tipos de seguros, igualmente obrigatórios, contidos na legislação, sem qualquer confusão com “tributos”, a exemplo dos demais seguros obrigatórios listados no referido artigo 20 do Decreto-Lei 73, de 21/11/1966, assim como o seguro obrigatório de edifícios, previsto no artigo 1.346 do Código Civil e artigo 13 da Lei 4.591/64, e o seguro de transporte multimodal de cargas, estabelecido pela Lei 6.194/74.

Os prêmios tarifários do seguro DPVAT são estabelecidos por meio de resoluções emitidas pelo CNSP ou pela Susep, após estudo atuarial feito por esta última, baseado nos dados arrolados na Circular Susep 360/2008 (Anexo III) e nos demonstrativos mensais dos resultados dos consórcios.

Nessa linha, a Susep, para fixar o preço dos prêmios, parte da premissa de que o montante dos prêmios puros arrecadados deve ser suficiente para financiar os sinistros administrativos do ano de análise, independentemente da data em que serão pagos (i), mais os sinistros judiciais que serão pagos no ano de análise (ii), bem como os custos e despesas necessários a operacionalização do sistema (iii).

O DPVAT oferece coberturas para danos por morte, invalidez permanente e reembolso de despesas médicas e hospitalares (Dams), como qualquer outro seguro. O que confere sua obrigatoriedade é a assunção, pelo proprietário do veículo, do dever de pagar o prêmio[2], sob pena de multa, como prevê o artigo 21, do Decreto-lei 73/66 na sua redação:

“Art 21. Nos casos de seguros legalmente obrigatórios, o estipulante equipara-se ao segurado para os efeitos de contratação e manutenção do seguro.

§ 1º Para os efeitos dêste decreto-lei, estipulante é a pessoa que contrata seguro por conta de terceiros, podendo acumular a condição de beneficiário.

§ 2º Nos seguros facultativos o estipulante é mandatário dos segurados.

§ 3º O CNSP estabelecerá os direitos e obrigações do estipulante, quando fôr o caso, na regulamentação de cada ramo ou modalidade de seguro.

§ 4º O não recolhimento dos prêmios recebidos de segurados, nos prazos devidos, sujeita o estipulante à multa, imposta pela SUSEP, de importância igual ao dôbro do valor dos prêmios por êle retidos, sem prejuízo da ação penal que couber”.

A obrigatoriedade não se refere ao pagamento do prêmio, mas quanto ao ato de contratação e manutenção do veículo segurado pelo DPVAT, conforme o artigo 21, do Decreto-lei 73/66. Essa é a sua diferenciação como seguro legalmente obrigatório.

No seguro obrigatório DPVAT, encontram-se presentes todos os elementos do contrato de seguro privado: garantia do pagamento da indenização (i), interesse legítimo de obter indenização por danos pessoais (ii), risco de acidente de trânsito (iii), prêmio pago anualmente pelos proprietários de veículos automotores (iv).

Logo, o prêmio do DPVAT não equivale a tributo, eis que não preenche os requisitos previstos no artigo 3º do CTN, logo, não pode se converter em espécie de contribuição parafiscal.

Para o artigo 3º do Código Tributário Nacional, tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

A compulsoriedade do DPVAT não diz respeito ao pagamento da prestação (prêmio), mas ao ato de contratar, à universalidade da cobertura. A obrigação imposta pela lei é de fazer, de contratar o seguro. Ainda que seja cobrado junto com a taxa de licenciamento de veículos, como técnica de praticidade, isso não o converte em tributo. O preço é consequência do contrato de seguro obrigatório.

A coercitividade no pagamento do DPVAT remete à compulsoriedade inerente aos contratos obrigatórios, que albergam a realização de um objetivo socialmente útil, sem qualquer relação com suposta ideia de “compulsoriedade” em razão do prêmio ser equivalente a algum “tributo”.

Neste sentir, o STJ consolidou entendimento de que o DPVAT é seguro obrigatório de responsabilidade civil, afastada qualquer natureza jurídica tributária, em recurso especial representativo da controvérsia no regime do artigo 543-C do CPC[3]. Está correto. Não basta que a norma jurídica se assemelhe à regra-matriz de incidência tributária. Urge confirmar se estão presentes os requisitos do conceito constitucional de tributo e suas espécies.

Quanto à destinação do valor do prêmio do contrato de direito privado, de um lado temos as receitas públicas destinadas ao SUS e ao Denatran, sem que isso as converta em natureza de “tributo”, visto que, em consonância com artigo 4º do CTN, a destinação, por si, não é elemento apto para imputar esta qualificação a qualquer exação; e, de outro, temos o pagamento do prêmio propriamente dito, decorrente da mesma relação de direito privado entre os proprietários de veículos automotores e as seguradoras integrantes dos consórcios.

Vale repisar que a destinação para gastos públicos não é algo inerente à receita tributária, porquanto preços, sanções pecuniárias ou prestações contratuais (públicas) possuem idêntica destinação: compor as receitas estatais[4]. Tudo dependerá da forma como a Constituição organiza o papel do Estado na ordem econômica e social, além do modelo de discriminação constitucional de rendas do federalismo e todo o plexo de custos dos direitos individuais.

O prêmio é destinado ao custeio das indenizações securitárias e das despesas relacionadas à consecução desse fim. Do valor total do prêmio pago pelos proprietários de veículos automotores, do seguro DPVAT, 45% são destinados ao SUS, administrado pelo governo federal, para custeio do atendimento médico-hospitalar das vítimas de acidentes de trânsito, por força do disposto nas leis 8.212/91 e 9.503/97. E 5% do valor dos prêmios arrecadados são destinados ao órgão nacional de trânsito (Denatran) para aplicação em programas e ações educativas para prevenção de acidentes de trânsito, conforme disposto na Lei 9.503/97. Os outros 50% são destinados à gestão e operacionalização do seguro DPVAT.

O DPVAT não se converte numa espécie de “ornitorrinco jurídico”, por suposta dúplice feição, pública e privada, da destinação das receitas. A variação das receitas vinculadas não modifica o regime privado da prestação ou do contrato que a origina. Tampouco o método de arrecadação altera a natureza jurídica do pagamento. São receitas distintas, que embora pagas conjuntamente não se confundem quanto às relações jurídicas da destinação.

Por conseguinte, o prêmio do DPVAT não se pode conceber como típica “contribuição parafiscal”, pois a materialidade da “hipótese de incidência” e o sujeito passivo não refletem uma ação estatal, a demarcar a base de cálculo e o sujeito passivo, indiretamente relacionados à ação estatal. E não se converte em tributo parafiscal, pelo fato de o produto de sua arrecadação serem receitas privadas, ao se destinarem ao consórcio de seguradoras, todas pessoas jurídicas de direito privado com finalidade lucrativa, que não exercem atividades de interesse público, ao menos diretamente.


[1] A respeito do contrato obrigatório, observaram Ernesto Tzirulnik, Flavio de Queiroz Cavalcanti, e Ayrton Pimentel: “Evidentemente o contrato obrigatório, até mais do que o contrato de adesão ou o contrato padrão, é distante do modelo clássico dos contratos, tal como desenhado nos códigos civis tradicionais. O afastamento existente entre o arcabouço do contrato clássico e o contrato obrigatório fez com que parte da doutrina negasse a estes a natureza jurídica de contrato. Muito se escreveu sobre a crise do contrato, ou mesmo o fim do contrato e assim avante, em razão da dificuldade de adaptação dos juristas tradicionais às novas realidades”. TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flavio de Queroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro de Acordo com o Novo Código Civil brasileiro. 2. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 147.
[2] “Art 12. A obrigação do pagamento do prêmio pelo segurado vigerá a partir do dia previsto na apólice ou bilhete de seguro, ficando suspensa a cobertura do seguro até o pagamento do prêmio e demais encargos.
Parágrafo único. Qualquer indenização decorrente do contrato de seguros dependerá de prova de pagamento do prêmio devido, antes da ocorrência do sinistro.”
[3] REsp 1.418.347 MG. Relator: min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção, j. em 8/4/2015.
[4] Nas escolas econômicas, o conceito de tributo sempre foi concebido a partir da destinação, ou a finalidade de atendimento às despesas públicas. Contudo, a destinação do tributo é irrelevante para sua definição, como observa Cocivera: “Nel tributo lo scopo per il quale è dovuta la prestazione patrimoniale è giuridicamente irrelevante”. OCIVERA, Benedetto. Principi di diritto tributario. Milano: Giuffrè, 1961. p. 162.

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