Opinião

Precisamos falar (novamente) sobre aborto no Brasil

Autor

  • Leonardo Vizeu Figueiredo

    é procurador Federal mestre em Direito Constitucional e diretor da Escola da AGU da 2ª Região. Advogado constitucionalista e economicista presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-RJ. Ex-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ (2013-2015).

11 de dezembro de 2016, 5h42

Recentemente, a comunidade jurídica foi tomada de assalto por mais uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre aborto. A questão girou em torno da concessão de Habeas Corpus para acusados da prática de crime de aborto induzido em gestante, com o consentimento desta, além de formação de quadrilha. Em seu voto-vista, o ministro Roberto Barroso concedeu de ofício a ordem de soltura dos réus e considerou que a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. Entre os bens jurídicos violados, apontou a autonomia da mulher, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero, além da discriminação social e o impacto desproporcional da criminalização sobre as mulheres pobres.

Data máxima vênia aos judiciosos argumentos lançados, discordamos dos mesmos pelas razões que passamos a expor.

Inicialmente, sob aspectos de Teoria dos Poderes Constituídos, há que se ter em mente que nosso legislador constituinte originário reservou à União competência privativa para legislar sobre direito penal, a teor do artigo 22, I, da Constituição da República Federativa do Brasil (artigo 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;). Assim, não cabe ao Judiciário, ainda que via Corte Suprema, criar uma excludente de ilicitude sem previsão legal, mormente por se tratar de matéria sob a privativa reserva legal do Congresso Nacional. As hipóteses em que o aborto pode ser legalmente realizado são as descritas no artigo 128, inciso I (aborto necessário para salvar a vida da gestante) e II (aborto no caso de gravidez resultante de estupro) do Código Penal. Não cabe a mais ninguém ampliar o rol de excludentes criminais, a não ser ao legislador ordinário, que detém e expressa competência constitucional para tanto. O que se presenciou na decisão do ministro foi, salvo melhor juízo e maior engando, usurpação de competência legislativa.

Pela ótica da Teoria da Norma, havendo regra expressa a ser aplicada, não cabe ao operador do direito, seja o julgador, o parecerista ou qualquer outro, suplantar a regra expressa e escrita, com base em princípios genéricos de conteúdo vazio. Observe-se que a fundamentação dogmática no ministro relator foram os diversos direitos fundamentais da mulher. Todavia, de acordo com a Organização das Nações Unidas, são direitos fundamentais da mulher, dentre outros, nos termos da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher de 1948, a faculdade de decidir ter ou não ter filhos e quando tê-los.

Recentemente, a ONU defendeu a descriminalização do aborto para mulheres cujos fetos fossem acometidos do vírus da zika. Porém, ficou expresso na Declaração Política da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2016 sobre o Fim da AIDS que somente será admitido o aborto onde tais serviços são permitidos pela legislação nacional [1]. Conforme expresso nas Nações Unidas:

Buscando respostas transformadoras para a AIDS a fim de contribuir para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento de todas as mulheres e meninas (…)

61 (j): Remetemo-nos a todas as consequências para a saúde, incluindo as consequências para a saúde física, mental e sexual e reprodutiva, da violência contra mulheres e meninas, fornecendo serviços de cuidados de saúde acessíveis que sejam sensíveis ao trauma e que incluam medicamentos baratos, seguros, eficazes e de boa qualidade, suporte de primeira linha, o tratamento de lesões e apoio à saúde psicossocial e mental, contracepção de emergência, aborto seguro, onde tais serviços são permitidos pela legislação nacional, profilaxia pós-exposição para a infecção por HIV, diagnóstico e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, a formação de profissionais médicos para identificar de forma eficaz e tratar as mulheres vítimas de violência, bem como exames forenses por profissionais devidamente qualificados; (nossos grifos)

Assim, resta claro que não há, no âmbito das Nações Unidas nenhum reconhecimento do aborto como direito universal, humano ou fundamental da mulher. Some-se a isso que a legislação brasileira não reconhece a juridicidade do aborto como prática de controle de natalidade ou política de saúde pública, somente sendo excepcionalizado nas exceções do artigo 128, incisos I (risco de vida à gestante) e II (fruto de violência sexual) do Código Penal. Portanto, de acordo com a UNAIDS/ONU não há atualmente como se impor a prática de aborto na República Federativa do Brasil, mormente por meio de manifestação judicial.

Outrossim, a decisão do Supremo Tribunal Federal ignora por completo os direitos paternos do genitor, em ser ouvido e decidir sobre a vida do nascituro. Ora, se homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e se a concepção envolve o concurso de ambos, ainda que por vias de inseminação artificial, como se afastar o pai de uma decisão dessa relevância? Vamos simplesmente revogar sua paternidade e seus direitos inalienáveis como genitor?

Em relação aos aspectos biológicos, a ciência já comprovou, de forma irrefutável, que há vida na união do espermatozoide com o óvulo e pela sua nidação, ainda que a vida esteja em um estágio latente. Se não for aplicado qualquer medida para expulsar o embrião ou o feto, a tendência é que aquele organismo se desenvolva e se torne uma pessoa. Há que se ter em mente que se deve garantir a todos o direito de nascer, como corolário inexorável e inafastável do direito à vida.

No que tange a aspectos de direito comparado, os países do hemisfério norte tendem a ser mais tolerantes com o aborto, permitindo-o, até uma determinada fase da gravidez, por livre manifestação de vontade da gestante. Em outras regiões do globo, via de regra, pune-se o aborto como crime, autorizando-o somente em condições excepcionais, tais como em casos de risco à vida da mãe, problemas de saúde física ou mental, gravidez oriunda de estupro, defeitos ou má formação do feto, bem como por fatores socioeconômicos, no qual a gestante faz prova que não tem condições de criar seu filho. Atualmente, poucos países, como a Nicarágua e o Chile, proíbem o aborto sem qualquer exceção.

Nos Estados Unidos da América, a liberalização do aborto foi oriunda de duas decisões judiciais que se tornaram paradigma sobre o tema (leading case), ambas do ano de 1973, a saber, Roe vs. Wade, na qual a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucionais todas as leis estaduais que proibiam o aborto, e Doe vs. Bolton, esta de menor repercussão. Em Roe vs. Wade [2], Norma Maccorvey, mulher de pouca instrução, que já tinha tido dois filhos entregues a adoção, sob o pseudônimo de Jane Roe, recorreu à Suprema Corte americana para exigir o direito de abortar uma filha, alegando ter sido vítima de estupro. Anos mais tarde, Norma Maccorvey descobriu fora induzida ao erro por seus advogados, ávidos por fama e pela repercussão do caso. Interessante que, mesmo depois da vitória judicial, Maccorvey, alheia a todos os acontecimentos e que sequer compareceu a corte para as sessões de julgamento, não abortou a terceira filha. Só soube do resultado pelos jornais tempos depois e admitiu ter assinado uma série de documentos e confissões sem a devida assistência. Atualmente, Norma Maccorvey é uma militante do movimento contra o aborto nos EUA (pró-vida) e assinou em 2005, agora consciente do que estava fazendo, uma petição a Suprema Corte, que foi negada, pedindo a anulação do julgamento de 1973.

Em que pese à permissividade da legislação com a prática do aborto em casos pré-estabelecidos, tanto no Brasil quanto na maioria do mundo, a discussão sobre o tema está longe de ter fim. De forma bem maniqueísta, o debate ficou bipolarizado entre os pró-escolha, abortistas, e os pró-vida, não abortistas. Os defensores de sua prática indiscriminada valem-se dos mais diversos argumentos. Afirmam que a mulher tem livre direito de disposição de seu corpo, que as clínicas clandestinas de aborto colocam a vidas das gestantes em risco, que os países que liberaram o aborto experimentaram, ao longo do tempo, queda em suas taxas de criminalidade. Por sua vez, os partidários do movimento pró-vida, independentemente de seus credos e convicções, fixam seu raciocínio na defesa do direito à vida. Interessante notar que muitos dos defensores do movimento pró-vida se tratam de abortistas arrependidos, como Norma Maccorvey.

Por fim, não há nada de religioso em se posicionar contra o aborto e a favor do direito à vida. Trata-se de uma postura de dignidade da pessoa humana que é amplamente defendida por diversos segmentos sociais, religiosos ou não. Bernard Nathanson foi um médico especialista em ginecologia e obstetrícia, diretor, na década de 1970, do Center for Reproductive and Sexual Health, considerada, à época, a maior clínica de abortos do mundo ocidental. Segundo seus cálculos, foi responsável direto por 5000 abortos, incluindo se filho. No final da década de 1970, após assistir por ultrassonografia a luta de um feto, em processo abortivo forçado, por sua sobrevivência, passou a atuar ativamente contra o aborto e pela vida. Encerramos essa segunda parte de nossas reflexões, destacando que a defesa da vida não tem credo, tampouco religião. Em que pese Norma Maccorvey ter se convertido ao cristianismo, Bernard Nathanson declarava-se um pró-vida sem religião, até meados dos anos de 1990, quando se converteu ao catolicismo.


1 Vide UNAIDS, item 61, j, consulta realizada em 02/12/2016, ás 17:00 horas: http://unaids.org.br/wp-content/uploads/2016/11/2016_Declaracao_Politica_HIVAIDS.pdf.

2 Full Text of Roe v. Wade Decision U.S. Supreme Court ROE v. WADE, 410 U.S. 113 (Janyary 22, 1973) 410 U.S. 113 Roe et al. versus Wade, District Attornye of Dallas County, Appeal from the United States District Court for the Northern District of Texas, No. 70-18. Argued December 13, 1971 Reargued October 11, 1972 – Decided January 22, 1973; e Roe vs Wade, 314 F. Supp. 1217 (1970), [1] (PDF, verificado em 15 de fevereiro de 2008).

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    é advogado constitucionalista, mestre em Direito e presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-RJ. Ex-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ (2013-2015).

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