Diário de Classe

Caso Renan: e que nossas instituições não enlouqueçam!

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10 de dezembro de 2016, 7h10

Spacca
No filme Os Deuses Devem Estar Loucos, de Jamie Uys, o piloto de um pequeno avião sobrevoa um escondido rincão do continente africano. Em um determinado momento, esse piloto atira das alturas uma garrafa de Coca-Cola, que cai nas proximidades de uma tribo aborígene. A descoberta dessa garrafa pelos membros da tribo provoca uma série de eventos, desencadeados a partir da tentativa de dar significado a um objeto completamente estranho àquele contexto de convivência. Num primeiro momento, o artefato é visto como um presente dos Deuses, com muitas possibilidades de uso a serem descobertas. Posteriormente, uma série de situações que envolvem a pequena garrafa passam a gerar um número cada vez maior de conflitos. Os participantes que exercem algum tipo de autoridade no contexto da tribo, então, determinam que a solução encontrada para resolver de vez todas as disputas é jogar o objeto para fora do planeta! Um dos membros da tribo fica encarregado da tarefa e sai numa jornada de intensos choques culturais com a cultura standard do ocidente. Mas isso é conversa para outra coluna.  

Os acontecimentos desta última semana, envolvendo o embate interinstitucional entre o Legislativo e o Judiciário, fizeram-nos lembrar essa primeira parte do filme, produzido ainda no início da década de 1980. Todavia, no caso tupiniquim, o objeto “desconhecido” era — nada mais, nada menos — a Constituição Federal, e os “aborígines”, todos nós, que participamos da comunidade jurídica e que sofremos os influxos do modo de ser da política nacional.

Ora, dentre as diversas possibilidades de uso abertas por uma Constituição, a segurança institucional e a conservação das vias regulares e democráticas de solução de controvérsias certamente são as mais evidentes e reverenciadas. Isso já tivemos a oportunidade de dizer aqui mesmo nesta ConJur, ainda por ocasião da decisão monocrática do ministro Marco Aurélio que desencadeou todo o imbróglio. Todavia, a sequência surreal de atos que se seguiram a essa decisão merece um arrazoado à parte.

Em primeiro lugar, cumpre assinalar que tensões institucionais, que parecem aumentar a zona de atrito entre Legislativo e Judiciário (ou, ainda, entre Executivo e Legislativo; e Executivo e Judiciário), fazem parte de qualquer democracia. Especialmente quando se trata de uma democracia que possui um sistema presidencialista, de nítida separação tripartite de Poderes, como ponto de estofo de sua engenharia constitucional. Mesmo os Estados Unidos, uma referência frequente quando o assunto é democracia constitucional, já sofreram — e ainda sofrem — com algum aumento no nível de tensão entre as instituições: desde Marbury v. Madson, em 1803; passando pela tensão entre a Suprema Corte e o governo Roosevelt ao tempo do New Deal; pelas decisões que definiram o sentido dos direitos civis na década de 1960; e chegando a questões mais recentes — e altamente polêmicas — como o caso Bush v. Gore e as questões relativas ao chamado Obama Care.

Ou seja, o problema não é propriamente o conflito. A questão nuclear está no modo como fazemos uso (no melhor sentido heideggeriano do Zuhandenheit) da Constituição para o caso conflituoso. Veja-se o exemplo de John Marshall em 1803. Quais as possibilidades que tinha o então chief justice diante de si? 1) Conceder a ordem a Marbury, seu correligionário, correndo o risco de ter sua decisão descumprida pelo executivo; 2) ou denegar a ordem e dizer que, embora tivesse todos os requisitos jurídicos preenchidos para se apossar do cargo de juiz de paz, por uma questão meramente política, Marbury não poderia fazê-lo. Eis que, tendo diante de si toda a tradição do constitucionalismo, e inspirado no aprendizado histórico advindo de sir Edward Coke, o justice Marshall decide (e não simplesmente “escolhe”), pela via institucional adequada, preservar a estabilidade constitucional a partir de um argumento objetivo e indeclinável que legou para a posteridade o leading case da judicial review.

Há vários níveis de leitura possíveis aqui, mas, independentemente disso, o aprendizado institucional que podemos retirar dessa decisão é que a Constituição — e em consequência seu guardião, que é, no caso, o Poder Judiciário — deve agir para restituir o equilíbrio aparentemente perdido. Definitivamente não para aumentar os níveis de combustão interinstitucional. E isso não por um argumento utilitarista. Ao contrário, trata-se de um princípio comum a todo o constitucionalismo que é nomeado, por Nicola Matteucci, como Constituição equilibrada.

Ou seja, a decisão monocrática do ministro Marco Aurélio é, por princípio, constitucionalmente inadequada. Num possível paralelo com os Estados Unidos, essa decisão está longe da ideia de equilíbrio constitucional que pode ser percebida no aresto de Marshall no caso Marbury v. Madson e mais próxima das decisões ativistas que a Suprema Corte impunha contra Roosevelt ao tempo do New Deal. Ou seja, é constitucionalmente inadequada porque proporciona um desequilíbrio interinstitucional que passa longe da conformação da melhor tradição que compõe o horizonte normativo de uma democracia constitucional.

E o que se seguiu depois foi um verdadeiro circo de horrores de argumentos que, literalmente, depenaram a Constituição de 1988. Nem a tribo africana de Os Deuses Devem Estar Loucos, perplexa diante da garrafa de Coca-Cola, poderia gerar tais tipos de possibilidades bizarras de uso para o desconhecido instrumento. Primeiro, o presidente do Senado Federal — e, consequentemente, do Congresso Nacional — utiliza-se de táticas evasivas para não ser encontrado pelo oficial de Justiça do Supremo Tribunal Federal. Posteriormente, a Mesa do Senado se recusa a cumprir decisão exarada de ministro da mais alta corte do país, alegando que há uma evidente afronta à legalidade e, se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º., II da CF/1988), então, mais do propriamente, uma das casas-de-se-fazer-leis deste país é que não deverá estar obrigada a cumprir tamanho disparate (e, convenhamos, é dos grandes, já que a decisão do ministro teve como fundamento normativo um acordão ainda não finalizado e que, portanto, não havia sido publicado!). Agora, note-se o tamanho do problema: se esse tipo esquisito de “desobediência civil” pega, o que nós faremos com as dezenas (quiçá, centenas) de decisões judiciais que são despejadas todos os dias e que violam, frontalmente, a Constituição, as leis e os mais diversos atos normativos legitimamente confeccionados neste continental país? Por óbvio, decisões abusivas e ilegais devem ser corrigidas. Mas há meios institucionais para isso…

Por outro lado, e no mesmo dia, o Plenário do Supremo Tribunal Federal voltou a se pronunciar sobre a questão. E estamos dizendo que voltou porque, há pouco tempo, o Supremo iniciou o julgamento de uma ADPF que discutia uma questão de fundo idêntica a esta que viabiliza o novo pedido da Rede (igualmente autora, por sinal, da ação anterior). A justificativa do referido partido para mover uma nova ação, contudo, liga-se ao fato de existir, desde a semana passada, um fato novo, a saber: o senador Renan Calheiros ter se tornado réu no STF em um processo que data do ano de 2007. Desse modo, o Plenário teve que se pronunciar sobre uma questão que, do ponto de vista abstrato, ainda estava pendente de julgamento — já que o ministro Dias Toffoli pediu vistas do processo — mas que, por essa peculiaridade concreta, somada à decisão de Marco Aurélio, voltou à pauta da corte. Diante desta — nova — situação, muitos ministros retificaram seus votos proferidos por ocasião do julgamento anterior. Caso emblemático foi o do decano da corte, ministro Celso de Melo, que afirmou que, em seu voto antecipado no julgamento anterior, havia entendido que haveria incompatibilidade entre a situação de réu em processo criminal tutelado pelo STF e o exercício da função, ainda que temporária, de presidente da República. Nesse caso, o sujeito-réu poderia permanecer na função que desempenha (Presidência da Câmara, do Senado ou mesmo do Supremo) desde que não fosse alçado à Presidência da República. Ou seja, na linha sucessória do presidente, o senador Renan Calheiros, se for chamado à responsabilidade do cargo, deverá ser preterido, passando-se diretamente à convocação da presidente do STF.

A maioria que se formou e acabou por consolidar o julgamento da matéria, com alguma nota secundária de entendimento, acabou por perfilar a posição do decano e, com isso, produziu aquilo que podemos nomear como o terceiro elemento dessa espécie de triunvirato do desastre constitucional: 1) o ministro Marco Aurélio profere uma decisão liminar que rompe com o equilíbrio constitucional; 2) a Mesa do Senado recusa-se a cumprir uma decisão, da qual ainda cabia recurso, sob o argumento de uma pretensa “desobediência civil”; 3) o Plenário do STF esboça uma solução salomônica, referenda-a e acaba, com isso, por fazer uma emenda constitucional (como se poder de reforma fosse) colocando ao lado da lista que compõe os eventuais sucessores da presidência da República (artigo 80 da CF/1988) a expressão “salvo se forem réus em processos criminais”.

Voltando para o filme que abriu essas reflexões, a decisão final do Supremo acabou por perfilar uma hipótese parecida com aquela dada pelo establishment da tribo para a garrafa de Coca-Cola: mandou atirar a Constituição para fora do planeta e, em seu lugar, escreveu algo que alguém quis (ele mesmo, STF; a “vontade popular”, seja lá o que isso queira dizer; ou algum acordo nada republicano de bastidores).

Claro que, para os incautos, este texto pode soar como uma defesa do que há de pior na política brasileira. No entanto, devemos lembrar a esses desavisados que não é disso que se trata. A defesa intransigente que aqui se faz é da Constituição, e não de uma pessoa ou grupo que ocupa, ocasionalmente, um lugar de poder. Partimos do pressuposto de que, se quisermos, realmente, transformar a política brasileira, devemos começar por produzir em nós algum tipo de sentido de Constituição (que Pablo Lucas Verdú chamava de “sentimento constitucional”). Por tudo o que aqui dissemos, esse é um trabalho ainda incompleto. Afinal, o que fizemos (e faremos) de nossa Constituição, ainda tão jovem e tão inexplorada no que tange às suas possibilidades de uso? Como já disse o mestre de todos nós, Paulo Bonavides, “fora da Constituição não há instrumento nem meio que afiance a sobrevivência democrática das instituições”[1].


[1] BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2004,  p. 13.  

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