Denúncia rejeitada

Juiz vê crime do Estado na ditadura, mas segue STF sobre Lei da Anistia

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8 de dezembro de 2016, 6h53

A certeza de violação aos direitos humanos em crime cometido pelo Estado durante o regime militar não bastou para que um juiz aceitasse uma denúncia do Ministério Público Federal. Pelo contrário. O juiz Silvio César Arouck Gemaque, da 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo, rejeitou a acusação contra três médicos legistas por crime de falsidade ideológica que teria sido praticado durante o regime militar.

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Pedro Pomar, membro do PCdoB, foi morto por agentes do Doi-Codi mesmo estando desarmado. Reprodução 

Quase que lamentando sua própria decisão, o magistrado deixa claro que a razão para rejeitar a acusação é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que entende que tais crimes estão cobertos pela Lei de Anistia (Lei 6.683/1979). “Ressalvando meu entendimento pessoal, não há alternativa senão rejeitar a denúncia”, afirmou Gemaque.

Segundo o MPF, no dia 17 de dezembro de 1976, os médicos legistas acusados inseriram declaração falsa no laudo de exame necroscópico de Pedro Ventura Pomar, visando assegurar a ocultação e a impunidade do crime de homicídio da vítima.

Consta no documento que o “examinado faleceu ao manter tiroteio com a polícia após receber voz de prisão” e concluíram como causa mortis “hemorragia interna traumática produzida por instrumento perfuro-contundente.” Tais informações seriam inverídicas, de acordo com MPF, e menções a lesões indicativas de execução foram omitidas no laudo.

A denúncia narra que, naquele dia, agentes do Doi-Codi atiraram contra uma casa onde eram realizadas reuniões do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), matando duas pessoas, entre elas Pedro Pomar. A versão divulgada na ocasião era de que as vítimas haviam oferecido resistência armada aos policiais. Anos depois, comprovou-se que elas estavam desarmadas.

Ainda de acordo com o MPF, tais condutas foram cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil em um sistema de repressão política baseado em ameaças, invasões de domicílio, tortura, morte e desaparecimento dos inimigos do regime, sendo que os denunciados participavam ativamente das atividades de violação dos direitos humanos auxiliando os responsáveis por tais atos, ocultando o terror que vitimavam os cidadãos.

Direito humano violado
“Não restam dúvidas de que tais fatos configuram graves violações aos direitos humanos. É certo que os massacres não ocorreriam se os agentes militares não tivessem contado com a colaboração, muitas vezes, conivente e partícipe, de civis, como profissionais das mais variadas origens, como no caso em tela, em que, nesta fase de cognição sumária, se vê indícios de autoria por parte de médicos do IML”, disse Silvio César Gemaque.

Na decisão, o magistrado cita alguns tribunais internacionais dos quais o Brasil faz parte, os quais entendem que estes tipos de crimes são imprescritíveis. O Estatuto de Roma, por exemplo, descreve o que são crimes contra a humanidade, como “perseguição de grupos por motivos políticos”’, “desaparecimento forçado de pessoas”, “sequestro de pessoas por um Estado”, entre outros. “Assim, forçoso reconhecer que a acusação apresentada pelo Parquet Federal refere-se a crime conexo com os crimes de homicídio e desaparecimento forçado de pessoas”, explica Gemaque.

Por outro lado, o STF entende que a Lei de Anistia extinguiu a responsabilidade penal de todos aqueles que cometeram crimes políticos e crimes comuns relacionados a crimes políticos entre 2 de setembro de  1961 e 15 de agosto de 1979, o que forçou o juiz a rejeitar a denúncia. “Este é o panorama traçado pela jurisprudência do país, a partir de sua mais alta Corte, sendo que, ainda que em dissonância com o que tem sido decidido no âmbito dos Tribunais Internacionais”, diz o juiz.

O magistrado ainda ressalta que o país perde “uma oportunidade de punir eventuais autores de crimes graves praticados contra os direitos humanos, punição esta que serviria de exemplo para que fatos como esse não mais ocorressem. Frise-se que a história do Brasil demonstra um exacerbado autoritarismo, que desde meados do II Império, teima, muitas vezes, em fazer valer, sob o império da força, sua vontade, o que também, sob esse prisma, justificaria um enfrentamento, pelo devido processo legal, de crimes praticados sob o manto do autoritarismo estatal, ainda que marginal”.

Jurisprudência de não prosseguir 
A impossibilidade de condenar alguém por crime político cometido no período de ditadura militar tem sido a jurisprudência dominante do Judiciário brasileiro. Em 2015, o juiz Alessandro Diaferia, da 1ª Vara Federal Criminal, negou prosseguimento de ação contra sete agentes da repressão militar envolvidos na morte de um metalúrgico nas dependências da sede paulista do DOI-Codi.

Alessandro Diaferia entendeu que não há amparo legal para a denúncia, porque o crime foi cometido durante "regime por muitos denominado ditadura militar", e a anistia extinguiu a punição de crimes políticos cometidos nesse período.

"A Anistia é uma forma de punição que se caracteriza pelo esquecimento jurídico dos crimes e foi concedida pelo Congresso Nacional por meio de lei, não suscetível de revogação e que possui como decorrência a extinção de todos os efeitos penais dos fatos, remanescendo apenas eventuais obrigações de natureza cível", escreveu o juiz. Com informações da Assessoria de Imprensa da Justiça Federal de São Paulo. 

Processo 0011715-42.2016.403.6181

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