Opinião

O que mudará na Constituição italiana caso o "sim" vença o referendo

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1 de dezembro de 2016, 5h09

Nas últimas semanas, os cidadãos italianos no exterior receberam por correio uma cédula para votação em um referendo constitucional, a ser realizado no dia 4 de dezembro próximo. O objetivo do referendo é aprovar o texto de uma lei constitucional, aprovada pelo Parlamento italiano, que traz “disposições para a superação do bicameralismo paritário, a redução do número de parlamentares, a contenção dos custos de funcionamento das instituições, a supressão do CNEL e a revisão do título V da parte II da Constituição”.

Tendo em vista a multiplicidade dos temas tratados pela lei constitucional, a relativa escassez de notícias sobre o contexto político interno italiano na imprensa brasileira, e a barreira linguística muitas vezes existente, considerando-se que muitos descendentes de italianos não são fluentes no idioma de seus ancestrais, não é de se surpreender que um número significativo de integrantes da comunidade ítalo-brasileira esteja em busca de mais informações a respeito das consequências de sua escolha, para que possa votar de maneira mais consciente.

O objetivo deste artigo é explicar objetivamente quais serão as principais alterações na Constituição italiana caso a lei constitucional seja aprovada. É importante também ter em vista as implicações políticas do voto, levando-se em conta o contexto interno italiano e da comunidade italiana no exterior.

Isso porque o referendo assumiu um caráter fortemente político. As pesquisas de opinião têm apontado para uma vitória do “não” à lei constitucional, o que configurará uma derrota do governo de centro-esquerda de Matteo Renzi. Renzi, inclusive, prometeu renunciar caso a lei não seja aprovada [1]. Por outro lado, Silvio Berlusconi publicou um vídeo nas redes sociais exortando os cidadãos italianos no exterior a votarem “não”, pois afirma que a aprovação da lei constitucional fará com que percamos o direito de eleger representantes no Senado[2].

A fim de esclarecer, de uma maneira objetiva, o que mudará caso a lei constitucional seja aprovada, passo a destacar os pontos a meu ver principais. Registro, porém, que dada a complexidade da reforma, não será possível esgotar a matéria.

Principais alterações[3]:

Parlamento: se a reforma for aprovada, o Parlamento italiano continua bicameral, formado pela Câmara dos deputados e pelo Senado. Haverá, porém, uma maior diferença na função de cada câmara. Enquanto a Câmara dos deputados será “titular da relação de confiança com o Governo” e exercitará “a função de endereço político, a função legislativa e aquela de controle dos trabalhos do Governo”, o Senado terá a função de representar “as instituições territoriais” e de “amálgama entre o Estado e os outros entes constitutivos da República” (artigo 55).

Essas funções se refletem nas novas regras sobre a composição do Senado. De 315 membros, 6 dois quais eleitos pelos cidadãos italianos no exterior, o novo Senado passará a ter 95 membros representantes das instituições territoriais e 5 membros que poderão ser nomeados pelo Presidente da República (artigo 57). A reforma abole a figura dos senadores eleitos no exterior — tema que pode ter especial relevância para os ítalo-brasileiros — embora mantenha a regra correspondente para a Câmara, ou seja, 12 deputados eleitos no exterior.

Os senadores não serão mais eleitos por sufrágio universal e direto (artigo 58), mas escolhidos indiretamente pelos Conselhos das Regiões entre os próprios membros e entre prefeitos de cidades dos respectivos territórios. Como consequência, o mandato dos senadores deixará de ser de 5 anos (artigo 60), e passará a coincidir com o mandato das instituições territoriais das quais os senadores são provenientes. O mandato dos senadores escolhidos pelo Presidente da República, entre “cidadãos que ilustraram a pátria por altíssimo mérito no campo social, científico, artístico ou literário”, terá a duração de 7 anos, vedada a recondução. Não existirá mais, portanto, a figura dos senadores vitalícios.

Formação das leis: caso seja aprovada a reforma, a função legislativa, em regra, não será mais exercitada coletivamente pelas duas câmaras, mas as leis serão aprovadas somente pela Câmara dos Deputados. O preceito comporta uma série de exceções, tais como as leis de revisão da Constituição, e as leis que digam respeito a minorias linguísticas, a referendos populares, a funções principais das cidades e à aplicação de normativos e políticas da União Europeia.

Além disso, caberá exclusivamente à Câmara dos Deputados, e não mais a ambas as câmaras, a aprovação da lei orçamentária e da prestação de contas do Governo, bem como, por maioria absoluta, do endividamento em caso de eventos excepcionais.

Os projetos de lei aprovados pela Câmara poderão ser examinados pelo Senado por solicitação de 1/3 dos seus membros. Caso o Senado proponha alterações no texto, o projeto de lei retornará à Câmara, que deliberará de maneira definitiva. O Senado, se aprovado pela maioria absoluta de seus membros, também poderá encaminhar à Câmara projetos de lei para exame.

Participação popular: a reforma também procura favorecer “a participação dos cidadãos na determinação das políticas públicas”. Além de manter a iniciativa popular de leis por meio da proposta de 500 mil eleitores, passa a ser prevista uma lei constitucional que estabeleça “condições e efeitos de referendos populares propositivos”, além de outras formas de consulta popular (artigo 71).

Ficará mantida também previsão de referendo popular para a “ab-rogação, total ou parcial, de uma lei ou ato com força de lei” por iniciativa de 500 mil eleitores ou cinco conselheiros regionais.

Serão modificadas, todavia, as regras para aprovação do referendo. O “direito de participar” será de “todos os eleitores”, e não mais dos “cidadãos chamados a eleger a Câmara dos Deputados”. Atualmente, a proposta é aprovada se atender a dois requisitos: (i) se houver participação na votação da maioria daqueles que têm direito a voto e (ii) se for aprovada pela maioria dos votos válidos. Com a reforma, caso o referendo tenha sido proposto por 800 mil eleitores, a aprovação será facilitada, pois bastará a participação da maioria dos que votaram nas últimas eleições para a Câmara dos deputados (artigo 75).

Presidente da República: segundo as regras atuais, o presidente da República é eleito, por voto secreto, em sessão conjunta pelo Parlamento com a participação de três delegados de cada região eleitos pelos conselhos regionais (Valle d’Aosta tem apenas um delegado). O quórum para a eleição do presidente é de 2/3 dos membros da assembleia no primeiro escrutínio e maioria absoluta depois do terceiro escrutínio.

Pelas novas regras, o presidente da República será eleito somente pelo Parlamento, sem a participação dos delegados, uma vez que os senadores serão já os representantes das regiões. Haverá também alteração no quórum de votação, que passará a ser de 2/3 no primeiro escrutínio, 3/5 dos membros da assembleia a partir do quarto escrutínio e 3/5 dos eleitores a partir do sétimo escrutínio (artigo 83).

Outra alteração relevante será a de que o presidente da República não poderá dissolver o Senado, mas tão somente a Câmara dos deputados. Pelas regras atuais, é permitida a dissolução de ambas as câmaras, ou de qualquer uma delas (artigo 88).

Governo: o primeiro-ministro, mais conhecido na Itália como presidente do Conselho de Ministros ou Chefe do Governo, é nomeado pelo presidente da República, mas deve contar com a confiança do Parlamento. Atualmente, o primeiro-ministro deve apresentar-se perante Câmara e Senado em até 10 dias após a formação do governo, para obter a moção de confiança. Com a reforma, porém, o Senado não terá mais competência para isso: bastará a confiança da Câmara dos Deputados.

Outra novidade, em favor do governo, será a previsão de que projetos de lei de sua iniciativa que sejam “essenciais para a atuação do programa de governo”, excluídas algumas matérias, possam ter tramitação mais rápida na Câmara. Se isso for aprovado pela Câmara, serão inscritos como prioridade na ordem do dia e deverão ser aprovados em até 70 dias (artigo 72).

A reforma também disciplinará com mais detalhes as medidas provisórias com força de lei, que passarão a ser apresentadas, para conversão em lei, exclusivamente perante a Câmara dos Deputados (e não mais perante ambas as câmaras). O Senado ainda poderá examinar seu texto se houver aprovação de 1/3 dos senadores, de acordo com o mesmo procedimento previsto para as leis.

A nova redação do artigo 77 também estabelece restrições quanto às matérias que podem ser objeto de medida provisória. Não poderão tratar, por exemplo, de matéria constitucional, de aprovação de orçamentos e de autorização e ratificação de tratados internacionais. Além dos já existentes critérios da extraordinariedade, necessidade e urgência, as medias provisórias deverão ter por objeto “medidas de imediata aplicação e conteúdo específico, homogêneo e correspondente ao título”.

Regiões e províncias: segundo a redação atual da Constituição, “a República é constituída pelas cidades, pelas províncias, pelas cidades metropolitanas, pelas regiões e pelo estado”. São “entes autônomos, com próprios estatutos, poderes e funções” (artigo 114). Com a reforma, as Províncias serão extintas (com exceção das províncias autônomas de Trento e Bolzano).

Além disso, serão alteradas regras de competência legislativa das regiões. Atualmente, o artigo 114 estabelece matérias de competência legislativa exclusiva do Estado italiano, e matérias de competência concorrente entre o Estado e as regiões. Além disso, as regiões têm competência residual, ou seja, podem legislar sobre “toda matéria não expressamente reservada à legislação do Estado”.

Caso o referendo seja aprovado, as regiões não terão mais nem competência concorrente e nem residual. Sua competência legislativa ficará restrita a matérias expressamente previstas, tais como representação das minorias linguísticas, planificação do território regional e mobilidade no seu interior, programação e organização dos serviços sanitários e sociais, promoção dos bens ambientais e culturais e valorização e organização regional do turismo.

Corte Constitucional: a Corte Constitucional é composta por 15 membros. Atualmente, 5 são escolhidos pelo presidente da República, 5 pelas “supremas magistraturas ordinária e administrativa” e 5 pelo Parlamento em sessão conjunta. Com a reforma, esta última regra será modificada. A Câmara passará a escolher separadamente 3 membros e o Senado 2 membros.

Além disso, a Corte Constitucional, desde que motivadamente provocada por 1/4 dos membros da Câmara ou 1/3 dos do Senado, poderá fazer um “juízo preventivo de legitimidade constitucional” acerca de projetos de lei que disciplinem a eleição de membros do Parlamento. Em caso de declaração de ilegitimidade constitucional, a lei não poderá ser promulgada (artigo 73).

CNEL: caso seja aprovada a reforma, será extinto o Conselho Nacional da Economia e do Trabalho (CNEL). Trata-se de órgão auxiliar de consulta ao Parlamento e ao Governo, formado por especialistas e representantes das categorias produtivas. A Constituição atualmente prevê que tenha iniciativa legislativa no que se refere a legislação econômica e social (artigo 99).


3 Um quadro comparativo entre o atual texto constitucional e o texto após a reforma está disponível em: http://documenti.camera.it/leg17/dossier/pdf/ac0500n.pdf (acesso em 27.11.2016).

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