Opinião

STJ decide contra entendimento do STF sobre investigação 'supervisionada'

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1 de dezembro de 2016, 6h10

Segundo decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça, a instauração de procedimentos investigatórios criminais pelo Ministério Público, relativos a agentes público com foro por prerrogativa de função, não depende de prévia autorização do respectivo tribunal. O entendimento foi adotado pela 5ª Turma, que acolheu recurso do Ministério Público do Rio Grande do Norte contra decisão de segunda instância que havia considerado necessária a autorização judicial para instauração de investigação. O número do Recurso Especial não foi divulgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão do segredo de Justiça (leia aqui).

O recurso teve origem em procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, com o objetivo de apurar supostos crimes contra a administração pública estadual. Em virtude de possível envolvimento de agente público com "foro privilegiado", os autos foram encaminhados pelo Ministério Público ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, que, com base em entendimento do Supremo Tribunal Federal, considerou que haveria necessidade de prévia autorização judicial para instauração do procedimento investigatório.

O relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, apontou que a legislação atual não indica a forma de processamento da investigação, devendo ser aplicada, nesses casos, a regra geral trazida pelo artigo 5º do Código de Processo Penal, que não exige prévia autorização do Poder Judiciário. Segundo o Ministro, “não há razão jurídica para condicionar a investigação de autoridade com foro por prerrogativa de função a prévia autorização judicial. Note-se que a remessa dos autos ao órgão competente para o julgamento do processo não tem relação com a necessidade de prévia autorização para investigar, mas antes diz respeito ao controle judicial exercido nos termos do artigo 10, parágrafo 3º, do Código de Processo Penal.”

Esta decisão contraria entendimento já consolidado na Suprema Corte, cujo Regimento Interno, inclusive, possui dispositivo que atribui àquela Corte competência para determinar a instauração de inquérito de investigados com foro no Supremo Tribunal Federal, a pedido do Procurador-Geral da República, da autoridade policial ou do ofendido.

Porém, segundo o relator, a norma regimental — recepcionada no ordenamento jurídico atual por ser anterior à Constituição de 1988 — não possui força de lei: “Nada obstante, ainda que se entenda pela necessidade de prévia autorização do Supremo Tribunal Federal para investigar pessoas com foro naquela corte, não se pode estender a aplicação do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que disciplina situação específica e particular, para as demais instâncias do Judiciário, que se encontram albergadas pela disciplina do Código de Processo Penal e em consonância com os princípios constitucionais pertinentes.”

Efetivamente, esta decisão da 5ª Turma colide, não somente com o disposto no Regimento Interno da Suprema Corte (que deveria ser observado, no particular e por analogia, pelo Superior Tribunal de Justiça), como com algumas decisões daquele colegiado, senão vejamos:

Em decisão unânime, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, na sessão do último dia 25 de outubro, acolheu parcialmente o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 135.683, impetrado pela defesa de um ex-senador da República, invalidando as interceptações telefônicas realizadas no âmbito das investigações criminais, que serviram de base para a denúncia oferecida perante o Tribunal de Justiça de Goiás. Segundo a Turma, o réu, à época senador da República, detinha foro por prerrogativa de função e as interceptações telefônicas exigiriam autorização do Supremo Tribunal Federal. Com a decisão, todos os atos investigatórios (e eventuais provas) derivados das interceptações telefônicas foram desentranhados do processo, cabendo ao Tribunal de Justiça de Goiás “verificar se remanesce motivo para o prosseguimento da ação com base em provas autônomas que possam sustentar a acusação.”

No julgamento do Recurso Ordinário Constitucional, o relator, ministro Dias Toffoli, leu diversos trechos das respectivas degravações para demonstrar que, “desde o início das investigações, em 2008, já havia indícios do possível envolvimento de políticos de expressão nacional — inclusive com a produção de relatórios à parte relativos a essas autoridades, com foro por prerrogativa de função — e que o Ministério Público tinha ciência desses fatos.” Afirmou, inclusive, que em alguns trechos, os relatórios sinalizam que a remessa do caso “atrapalharia as investigações.” Nada obstante, apenas em junho de 2009 é que a Polícia Federal remeteu os autos à Suprema Corte. Segundo o relator, “embora o recorrente não tenha sido o alvo direto das investigações, o surgimento de indícios de seu envolvimento tornava impositiva a remessa do caso para o Supremo Tribunal Federal e o prosseguimento das interceptações configurou um modus operandi controlado, cujo intuito seria o de obter, por via oblíqua, mais indícios de envolvimento do então Senador, sem autorização do Supremo Tribunal Federal”.

Em outra oportunidade, a mesma 2ª Turma já havia concedido um Habeas Corpus de ofício para extinguir, por ausência de justa causa, a Ação Penal 933, ajuizada contra um deputado Federal, acusado de praticar um crime eleitoral. Em questão de ordem, os ministros entenderem que houve nulidade na investigação com relação ao réu, uma vez que o procedimento foi supervisionado por Juízo incompetente. De acordo com os autos, o deputado federal foi indiciado em inquérito supervisionado por juiz de primeiro grau quando cumpria mandato de prefeito. Recebida a denúncia em primeira instância, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal após a diplomação do réu como Deputado Federal. Pela decisão, a competência para supervisionar investigação de crime eleitoral imputado a prefeito é do Tribunal Regional Eleitoral, segundo destacou o relator da ação, ministro Dias Toffolli, citando o Enunciado 702 da súmula do Supremo Tribunal Federal. No caso, segundo o ministro, houve indícios de que o então prefeito teria praticado crime eleitoral por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em troca de votos, valendo-se do cargo que ocupava. “Nesse contexto, não poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro grau e muito menos poderia a autoridade policial direcionar as diligências apuratórias para investigar o prefeito e tê-lo indiciado”, disse. Dessa forma, segundo o relator, “a usurpação da competência do Tribunal Regional Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de nulidade aquela investigação realizada em relação a este detentor de prerrogativa de foro”.

O mesmo entendimento foi adotado no julgamento do Inquérito 2.116, em que o Ministério Público Federal pedia a apuração de possível envolvimento de um senador em suposto esquema de desvio de verbas federais em obras municipais. O Plenário decidiu que o Inquérito deveria prosseguir sob a fiscalização da Suprema Corte. Também no julgamento do Inquérito 3.305, no qual um deputado federal era acusado de fazer parte de quadrilha destinada ao desvio de recursos públicos. A denúncia foi rejeitada em razão de o inquérito ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados. O relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, ressaltou que o entendimento do Supremo Tribunal Federal é de que a competência do Tribunal para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Uma vez identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à Corte. “É inadmissível que uma vez surgindo o envolvimento de detentor de prerrogativa de foro, se prossiga nas investigações”, afirmou o Ministro. Seu voto foi acompanhado por unanimidade.

Também no mesmo sentido, a 1ª Turma determinou o arquivamento do Inquérito 3.552, no qual um Deputado Federal era acusado de contratação de uma funcionária fantasma em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Os ministros acolheram a questão de ordem apresentada pela defesa no sentido de que a investigação criminal havia sido conduzida em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados, usurpando a competência do Supremo.

De igual maneira, o ministro Gilmar Mendes determinou o arquivamento do Inquérito 2.963, contra um senador da República, sua esposa e quatro filhos por suposta prática dos crimes de falsidade ideológica, desvio de contribuições previdenciárias e crimes contra a ordem tributária. O inquérito foi instaurado pela Polícia Federal em Boa Vista (RR), por requisição do Ministério Público Federal. A decisão, conforme o ministro, ocorreu sem prejuízo de que novo procedimento de investigação venha a ser instaurado para apurar os fatos citados na notícia-crime. Porém, ele entendeu que o inquérito deveria ser trancado por não ter sido requerido pelo Procurador-Geral da República. O relator observou que a requisição para a instauração do inquérito pela Polícia Federal foi realizada por Procurador da República, sem qualquer delegação do Procurador-Geral da República. “Como cediço, o inquérito para investigar fatos em tese praticados por membro do Congresso Nacional, na qualidade de coautor ou autor, não só é supervisionado pelo STF, como tem tramitação eminentemente judicial e não obedece ao processamento dos ordinários inquéritos policiais”, disse o ministro, salientando que, nesses casos, a abertura da investigação apenas se dá no Supremo Tribunal Federal, por requisição do Procurador-Geral da República ou de subprocurador-geral da República que atue na Corte mediante delegação. Também pode ser citado o julgamento da Petição 3.825.

Portanto, entende o Supremo Tribunal Federal ser inadmissível qualquer iniciativa (ou mesmo a continuidade) de uma investigação criminal quando haja suspeita de prática de infração penal por parte de detentor de foro por prerrogativa de função. Se cabe ao respectivo tribunal o processo e o julgamento do caso penal, por óbvio (pelo menos do ponto de vista da nossa normatividade) deve a anterior investigação criminal ser ao menos “supervisionada” pelo órgão colegiado.

Sobre a investigação criminal supervisionada judicialmente, assim afirmou o ministro Gilmar Mendes: “Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem, por crime comum, perante o Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do Supremo Tribunal Federal. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal.  A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República. No exercício de competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e Regimento Interno, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. Questão de ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. Conforme o Supremo Tribunal Federal: A outorga de competência originária para processar e julgar determinadas Autoridades (detentoras de foro por prerrogativa de função) não se limita ao processo criminal em si mesmo, mas, à base da teoria dos poderes implícitos, estende-se à fase apuratória pré- processual, de tal modo que cabe igualmente à Corte – e não ao órgão jurisdicional de 1ª instância – o correlativo controle jurisdicional dos atos investigatórios (Supremo Tribunal Federal: Reclamação 2349/TO, – Reclamação 1150/PR). A inobservância da prerrogativa de foro conferida a Deputado Estadual, ainda que na fase pré-processual, torna ilícitos os atos investigatórios praticados após sua diplomação (Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 94.705/RJ, relator Ministro Ricardo Lewandowski). A partir da diplomação, o Deputado Estadual passa a ter foro privativo no Tribunal de Justiça, inclusive para o controle dos procedimentos investigatórios, desde o seu nascedouro até o eventual oferecimento da denúncia.” (Inquérito 2411/MT, Informativo 483 do Supremo Tribunal Federal).

Observa-se que dentre as decisões indicadas, algumas (Habeas Corpus 94.705/RJ e Ação Penal 933) são de natureza geral e não particularmente para investigados com foro junto ao Supremo, razão pela qual a decisão ora prolatada pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça vai de encontro a decisões da Corte Constitucional (uma envolvia um Prefeito e outra um Deputado Estadual, ambos com prerrogativa de foro junto ao Tribunal de Justiça).

Nada obstante tais decisões, deve-se ressaltar ser um tanto quanto estranho que um órgão jurisdicional “supervisione” uma investigação criminal e depois processe e julgue o mesmo caso penal (sendo o relator também o mesmo, o que é mais grave). Sob o ponto de vista do Sistema Acusatório, e em respeito às suas regras e aos seus princípios, tal “investigação supervisionada” soa, no mínimo, inadequada e estranha aos postulados constitucionais.

Preocupa-nos, também, o fato desta recente decisão do Superior Tribunal de Justiça trazer uma tremenda insegurança jurídica, pois haveremos de perguntar: afinal de contas, a "investigação supervisionada" impõe-se apenas nos casos de investigados que tenham prerrogativa de foro junto ao Supremo Tribunal Federal ou deve ser observada em todos os casos?

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