Embargos Culturais

Hans Kelsen e o tema do caráter transcendental da Justiça divina

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

28 de agosto de 2016, 8h00

Spacca
Hans Kelsen nasceu em Praga, em 1891, quando as margens do Moldava ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Kelsen foi o autor intelectual da Constituição republicana austríaca. Lecionou na Universidade de Viena de 1919 a 1929. Foi juiz na Áustria por nove anos, de 1921 a 1930. Em 1934, publicou sua Teoria Pura do Direito. Fugiu do nazismo e foi recebido nos Estados Unidos, em Berkeley, onde lecionou até 1952. Em outubro de 1973, aos 92 anos, morreu na Califórnia[1].

Kelsen foi injustamente acusado de reducionista por ter defendido alguma pureza científica no que se refere ao Direito. A ciência jurídica seria ciência pura, preocupada com normas. Retomou kantianamente a teoria da norma fundamental, radicada na primeira norma posta, de feição constitucional. A norma posta deve-se a uma norma suposta; a norma hipotética fundamental viria solucionar a questão do fundamento último da validade das normas jurídicas. Afinal, o que legitimaria o Direito? E quais as relações, por exemplo, entre a legitimidade normativa e a legitimidade especulativa, entre elas, alguma concepção decorrente da inspiração teológica?

Estado e Direito se confundiriam em Kelsen. Não haveria leis inconstitucionais ou decisões ilegais. Para o mestre de Viena, o cientista do Direito deve se preocupar com a lei e com problemas de aplicabilidade desta, tão somente. Kelsen nos deu conta de que o conhecimento jurídico só seria científico se buscasse a neutralidade. A pureza do Direito decorreria de corte epistemológico que definiria o objeto e de um corte axiológico que afirmaria a sua neutralidade. Para Kelsen, autêntica seria a interpretação do Direito pelos órgãos competentes: a decisão judicial qualificaria uma norma jurídica individual. Mas o pensamento de Kelsen não se esgota nas primeiras dez páginas de seu famoso livro. Há muito mais a ser explorado.

Há um aspecto da imensa produção intelectual de Kelsen que não pode ser negligenciado. Ainda que conhecido (e por isso elogiado ou criticado) pela Teoria Pura do Direito, não se pode deixar de ler um ensaio publicado originalmente em uma revista porto-riquenha, em 1953, traduzido e divulgado no Brasil; trata-se do instigante artigo A ideia de justiça nas Sagradas Escrituras[2]. Exploro agora apenas os três primeiros parágrafos desse ensaio, que anunciam uma das mais belas e profundas discussões sobre a legitimidade do Direito, com foco nas Sagradas Escrituras. Registro que a preocupação de minhas observações não é de ordem metafísica ou teológica, não tenho competência e treinamento para isso: pretendo apenas insistir na importância de um autor, muitas vezes negligenciado por preconceitos reducionistas. Kelsen é também autor de texto seminal que cuida das relações entre Direito e religião. Desse texto, colho apenas uma pequeno fragmento introdutório, na expectativa de estimular o leitor.

Principia Kelsen enfatizando que “um dos elementos mais importantes da religião cristã é a ideia de que a justiça é uma qualidade essencial de Deus (….) como Deus é o absoluto, sua justiça deve ser justiça absoluta, isto é, eterna e imutável”[3]. Percebe-se aqui alguma convergência com as doutrinas jusnaturalistas clássicas, a exemplo da insurgência de Antígona, filha de Édipo e de Jocasta, e antagonista de Creonte, na trilogia de Sófocles, em extraordinária passagem do teatro grego, recorrentemente citada. A Justiça, nesse sentido jusnaturalista original, centrado na insurgência de Antígona pela negativa de poder enterrar seu irmão, transcenderia no tempo, na topografia e na experiência histórica.

Kelsen também parte da premissa de que “apenas uma religião cuja divindade é tida como justa pode desempenhar um papel na vida social”[4]. A atribuição da Justiça a uma concepção de divindade, conceito em seguida aplicável às relações humanas, observou Kelsen, implicaria “(…) certa tendência para racionalizar algo que por sua própria natureza é irracional — o ser transcendental, a autoridade religiosa e suas qualidades absolutas”[5]. Trata-se de um problema, ou de um falso problema, que afasta tentativas de aproximação conceituais entre o tema do justo e o tema do válido.

Refutando as conclusões que seguiriam do argumento, a exemplo do fato de que a própria injustiça existe, Kelsen ponderou que “os fatos da fé estão além da cognição racional”, arrematando que “a natureza transcendental de Deus, em geral, e sua justiça absoluta, em particular, são inacessíveis ao conhecimento humano, baseado na experiência dos sentidos controlada pela razão e, portanto, sujeita aos princípios da lógica”[6]; para Kelsen, “o que é incompatível com a cognição racional não é, de maneira alguma, incompatível com a fé religiosa”.

Acomodando a cognição racional com a fé, essa última também enquanto instância constitutiva da experiência individual[7], Kelsen explorou nesse ensaio um argumento afeto à transcendência, a exemplo da Justiça, revelando que não se preocupava apenas com os problemas da imanência, a exemplo da validade da regra jurídica coercível. É um Kelsen que revigora as indagações de um problema essencial da convivência humana, relativo aos porquês dos regramentos instituídos, e que se mostrou como demasiadamente humano[8] e, por isso, tão importante para aqueles que pensamos que tudo que é humano não nos é estranho[9]. Para Kelsen, “a justiça é um mistério — um dos muitos mistérios — da fé”[10].


[1] Kelsen, Hans, Autobiografia de Hans Kelsen, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e de José Ignácio Coelho Mendes Neto. Estudo introdutório de Otavio Luiz Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli. Dedico esse ensaio a Otavio Luiz Rodrigues Junior, jurista preparadíssimo e sensível, intelectual integrante de uma espécie em extinção, para a qual a cultura, a reflexão e o elevamento espiritual consistem nos verdadeiros instrumentos de libertação.
[2] Kelsen, Hans, O que é Justiça?, São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 27-80. Tradução de Luis Carlos Borges, diretamente da edição inglesa, What is Justice?, Berkeley and Los Angeles: University of California, 1957.
[3] Kelsen, Hans, cit., p. 27.
[4] Kelsen, Hans, cit, loc. cit.
[5] Kelsen, Hans, cit, loc. cit
[6] Kelsen, Hans, cit., pp. 27-28.
[7] Conceito colhido em D. M. Mackinnon, Faith, in Macquarrie, John, Dictionary of Christian Ethics, Philadelphia:  The Westminster Press, 1967, p. 125.
[8] Inegável aqui a referência a ensaio de Friedrich Nietzsche, “Menschliches, Allzumenschliches”, publicado em 1878.
[9]Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, Terêncio.  
[10] Kelsen, Hans, cit., p. 28.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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