Opinião

Publicidade e motivação das deliberações administrativas dos tribunais

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26 de agosto de 2016, 16h50

Introdução: a transparência dos atos estatais sob os auspícios da Emenda Constitucional 45/2004
A exigência de transparência plena do Estado como elemento de afirmação do ideal democrático, em que a publicidade restritiva deve ser uma apertada exceção, há de ser constantemente implementada e aperfeiçoada. Esse dever estatal de conferir acesso às informações viu-se reforçado em meio à Reforma do Judiciário, promovida pela Emenda Constitucional 45/2004, que alterou o texto do artigo 93, X da Carta da República para determinar que as decisões administrativas dos tribunais sejam proferidas em sessão pública — a redação anterior se limitava a estabelecer apenas que as decisões seriam motivadas.

A publicidade, já dizia Kant, é elemento que integra a noção de República e que permanece até hoje como desafio das sociedades na efetivação de um governo que se pretenda republicano. Em suas palavras, “todos os atos respeitantes ao direito de outros homens, cuja máxima não é compatível com a publicidade, são injustos”[1].

Certo é que a noção principiológica de publicidade não pode se limitar aos atos processuais, até porque, se há um direito fundamental à informação e, por extensão à publicidade dos atos estatais, a implementação desse direito deve se orientar pelo critério da máxima efetividade.

Há que se ter claro que em meio a um Estado Democrático Constitucional de Direito o princípio da publicidade tem o condão de agir, ao mesmo tempo, como limitador e como meta da atuação da administração pública (na qual inegavelmente se insere a feição administrativa do Poder Judiciário). E se assim o é, está a publicidade a controlar o poder outorgado ao administrador, pois o ato que desbordar seus limites será de todos conhecido, como também está a legitimar seu comportamento, na medida em que a transparência viabiliza o referendo dos atos praticados.

E assim deve ser também em relação às decisões administrativas de um tribunal. Em recente julgamento, o Conselho Nacional de Justiça foi chamado a se manifestar acerca da utilização, pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de um mecanismo eletrônico, constituído por uma pequena máquina manual conectada por um sistema wireless a um computador central e a um telão, por meio da qual os desembargadores votavam nas indicações a vagas na própria corte e ao Tribunal Regional Eleitoral. No Procedimento de Controle Administrativo 0003491-88.2013.2.00.0000, alegou-se que tal procedimento valorizava indevidamente a impessoalidade e o sigilo da votação, ao arrepio das disposições constantes da Recomendação CNJ 13/2007, a qual indica que as listas tríplices referentes às vagas de quinto constitucional (artigo 94 da Constituição da República) devem ser formadas por meio de votos abertos, nominais e fundamentados[2].

Na mesma oportunidade, o Conselho Nacional de Justiça debruçou-se sobre o pedido formulado nos autos do Procedimento de Controle Administrativo 0005816-36.2013.2.00.0000, no qual se discutiu a legalidade de decisão emanada do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, em sessão secreta e com votos não fundamentados, elaborou duas listas tríplices para o provimento de vagas destinadas ao quinto constitucional daquela casa.

O presente artigo tem por escopo abordar, nos termos dos mencionados procedimentos julgados pelo CNJ, as questões que gravitam em torno da necessidade de observância dos princípios da publicidade e da motivação nas votações feitas no âmbito dos tribunais brasileiros, aí incluídas aquelas que envolvam eleição e indicação de membros para os tribunais regionais eleitorais e a rejeição de listas sêxtuplas ou a formação de listas tríplices para as vagas de quinto constitucional destinadas à própria corte.

1. Do sistema constitucional de defesa da publicidade dos atos decisórios
A expressão “sistema constitucional de defesa da publicidade”, que encabeça o presente subtítulo, foi tomada de empréstimo a partir de percuciente decisão da lavra do ministro Dias Toffoli[3], como referência à noção de que a ratio que se extrai dos artigos 93, IX e X da Constituição da República vai no sentido de que sejam divulgados os fatos e fundamentos das deliberações proferidas por órgãos e juízos, sejam elas administrativas ou judiciais. Esse sistema estaria fundado nas normas insculpidas, respectivamente, nos artigos 37, caput e 5º, LX da Carta de 1988, sendo possível até mesmo falar em um direito fundamental de acesso aos dados processuais, que tem como corolário ou contrapartida um dever estatal de transparência.

Recordando o magistério do saudoso Marcos Juruena Vilella Souto, vale anotar, in verbis: “Ao que parece, por transparência se quer muito mais, lançando-se, aqui, a ideia de que o verdadeiro controle visível ou transparente se dá quando se revela a intimidade das autoridades investidas de poder, naquilo que se refere ao exercício desse poder. Em outras palavras, o exercício de uma função pública, voltada para o público, deve permitir o seu constante acompanhamento, sem que o direito de intimidade, inegável aos indivíduos, especialmente contra o próprio Estado, possa ser alegado para afastar esses controles”[4].

Está, portanto, o princípio da publicidade a fundamentar a obrigatoriedade de votações públicas, nominais e abertas como regra geral para todas as deliberações judiciais e administrativas dos tribunais brasileiros, ressalvadas, por óbvio, aquelas hipóteses em que a norma constitucional imponha proceder de forma diversa. São apertadas as exceções, vale dizer, que preveem o voto secreto, as quais se referem a atos em que a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação (artigo 93, IX, parte final), à eleição de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça indicados para vagas no Tribunal Superior Eleitoral (artigo 119, I) e à eleição de juízes e desembargadores de tribunais de Justiça para cortes regionais eleitorais (artigo 120, parágrafo 1º, I).

Significa dizer que, afastadas as exceções mencionadas, a regra geral da votação pública, nominal e aberta incide, no âmbito do próprio tribunal, sobre as promoções de juízes singulares ao 2º grau de jurisdição[5] e sobre as formações das listas tríplices referentes ao quinto constitucional[6]; e, ainda, no que se refere às vagas das cortes eleitorais, aplica-se a regra tanto à eleição de juiz ou desembargador federal, como também à indicação dos nomes que ocuparão as vagas destinadas à advocacia.

É bem verdade que as exceções aventadas pelo legislador constitucional, tirante aquela que diz respeito à preservação da intimidade, são de todo criticáveis, não apenas porque inconsistentes em meio a um sistema de preponderância da publicidade, mas também porque exortam um sigilo que ontologicamente não se justifica. Todavia, se assim está posto, sigamos de lege lata, mas sem olvidar as palavras do eminente ministro Celso de Mello ao discorrer sobre a publicidade como fator essencial à visibilidade do poder e dela própria como pressuposto de uma democracia saudável e plena. Em suas palavras, “a Constituição da República, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo político-jurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta. Com essa vedação, o constituinte pretendeu tornar efetivamente legítima, em face dos destinatários do poder, a prática das instituições do Estado”[7].

2. Da fundamentação das escolhas dos nomes que ocuparão vagas nos tribunais
A existência de um precitado sistema constitucional de defesa da publicidade dos atos decisórios — a obrigar que as deliberações judiciais e administrativas dos tribunais sejam públicas, nominais e abertas — abre espaço para que se questione acerca da existência de um quarto predicativo que deve estar presente, a impor que as manifestações sejam também motivadas.

A questão não é pacífica e, para que se possa compreender sua amplitude e quais os avanços até agora promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça nesta seara, é preciso delimitar seus meandros. Tem-se como pano de fundo a necessidade ou a dispensa de motivação em meio à análise das listas sêxtuplas apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil ou pelo Ministério Público quando do preenchimento de vagas destinadas ao quinto constitucional (artigo 94 da Carta de 1988).

Nessa senda, dois cenários são possíveis: i) o tribunal recusa a lista sêxtupla que lhe foi apresentada, devolvendo-a à instituição de origem por entender que os nomes ali constantes não atendem aos requisitos legais para a eventual indicação; ii) o tribunal aprecia os nomes e reduz o elenco para uma lista tríplice que reúne as indicações a serem submetidas ao crivo do Poder Executivo. Questiona-se a necessidade de motivação dessas condutas — recusa e redução da lista — por parte do tribunal a que foram apresentados os nomes.

No primeiro caso, sobre a devolução da lista sêxtupla, a intervenção do Conselho Nacional de Justiça no tema é atualmente inviável, haja vista que a matéria se encontra judicializada nos autos do Mandado de Segurança 30.531, voltado a análise a necessidade ou não de se fundamentar essa deliberação administrativa, sendo que ambas as teses constam da jurisprudência histórica da corte[8].

O segundo cenário aventado, a referir a redução da lista sêxtupla em tríplice, contou com a devida manifestação do Conselho Nacional de Justiça quando do recente julgamento do Procedimento de Controle Administrativo 0005816-36.2013.2.00.0000.

A questão atinente à necessidade de motivação na espécie não é inédita no órgão, e sua jurisprudência era, até então, cambiante na matéria[9]. Neste mais recente pronunciamento, reafirmou-se que publicidade e motivação caminham juntas, vez que atreladas uma à outra como condições necessárias a uma ordem jurídica em que o exercício do poder se materializa com a imprescindível visibilidade que lhe deve ser inerente. Daí dizer, corroborando o entendimento no sentido de que a fundamentação é imprescindível também na redução da lista sêxtupla em tríplice, na linha do que consignado no voto do eminente relator, conselheiro Lelio Bentes Corrêa, que “o agente público não vota premido por suas convicções e interesses pessoais; ao contrário, deve agir sob o peso da responsabilidade do munus que exerce, e portanto deve não somente criar balizas objetivas para exercer sua escolha, como expor publicamente as razões que o levaram a determinada opção”.

Nessa toada, ressalvadas as exceções constitucionais ou a matéria pendente de julgamento definitivo, é imperioso dizer que ficaram para trás os tempos do segredo, das salas de conchavos e dos acordos de listas prévias, devendo preponderar absoluta a regra geral no sentido de que as deliberações judiciais e administrativas dos tribunais devem ser públicas, nominais, abertas e motivadas.

Conclusão
O presente artigo examinou o recente julgamento dos procedimentos de Controle Administrativo 0003491-88.2013.2.00.0000 e 0005816-36.2013.2.00.0000 no âmbito do Conselho Nacional de Justiça e suas repercussões sobre o dever estatal de publicidade e motivação das deliberações judiciais e administrativas dos tribunais brasileiros. Transcreve-se, nestas ultimadas linhas, a conclusão do eminente relator do julgado, in verbis: “Por fim, de ofício, determino, com efeitos ex nunc, a todos os Tribunais brasileiros, excetuados o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, nos termos da Resolução CNJ nº 216/2016, que adotem a votação nominal, aberta e fundamentada em todas as deliberações administrativas, excetuadas as hipóteses em que a Constituição permite o voto secreto (art. 93, IX, segunda parte; art. 119, I e art. 120, § 1º, I)” (grifos no original). 

De todos os méritos que se possam aventar como decorrentes desse emblemático julgamento — inclusive como fonte de influência para as questões ainda judicializadas —, o maior deles certamente foi o de espraiar a nova ordem jurídica de publicidade e motivação sobre todo o território nacional, ultrapassando as fronteiras geográficas das unidades federativas que lhes deram nascedouro, rompendo as fechaduras das salas de sessões dos tribunais e pondo termo ao indefinível silêncio das votações.


[1] KANT, Immanuel. Zum ewigen Frieden: ein philosopischer Entwurf. Darmstadt, p. 204 apud CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. 2.380 p
[2] O citado diploma, vale dizer, foi festejado em julgamento da lavra do eminente ministro Celso de Mello, onde se lê que seu conteúdo tem o escopo de, in verbis, “prestar integral reverência ao princípio democrático, que tem, na transparência e na publicidade dos atos e deliberações que se formam no âmbito da comunidade estatal (inclusive no seio dos colégios judiciários), um de seus mais expressivos valores ético-jurídicos”. Nesse sentido, MS 31.923 MC, relator(a): min. CELSO DE MELLO, julgado em 17/4/2013, DJe-074, publicado em 22/4/2013.
[3] É o que se observa no MS 28.390, relator(a): min. DIAS TOFFOLI, julgado em 29/8/2013, publicado em DJe-173 DIVULG 3/9/2013 PUBLIC 4/9/2013.
[4] SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Transparência na Administração Pública. Revista do TCM-RJ, Rio de Janeiro, n. 35, 2007, p. 37-38.
[5] Neste particular, assim o é desde o ano de 2005, por força da Resolução CNJ 6, atualmente substituída pela Resolução CNJ 106/2010.
[6] Também aqui, de há muito deve ser aplicada a regra de publicidade, à inteligência da Recomendação CNJ 13/2007, que trata da lista tríplice referente ao artigo 94, parágrafo único da Constituição da República.
[7] HD 75, tutela antecipada, relator(a): min. CELSO DE MELLO, julgado em 11/10/2006, publicado em DJ 19/10/2006.
[8] A liminar deferida apontou a existência de “aparente discordância entre os acórdãos referidos, motivo pelo qual não se pode afirmar qual a orientação vigente: se aquela proferida pelo Plenário, a exigir a devolução motivada da lista sêxtupla, ou a mais recente, exarada pela Segunda Turma deste Supremo Tribunal, no sentido da desnecessidade de fundamentação desse dever-poder dos Tribunais” (MS 30531, relator(a): min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 23/4/2012, publicado em 7/5/2012).
[9] PP 0000808-20.2009.2.00.0000, rel. conselheiro ALTINO PEDROZO DOS SANTOS, j. 14/4/2009; PCA 0006157-04.2009.2.00.0000, rel. conselheiro IVES GANDRA, j. 23/2/2010; PP 0007009-91.2010.2.00.0000, rel. conselheiro JOSÉ ADONIS CALLOU DE ARAÚJO SÁ, j. 26/4/2011; e PCA0000692-72.2013.2.00.0000, rel. conselheiro JORGE HÉLIO CHAVES DE OLIVEIRA, j. 16/4/2013.

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