Opinião

Novo CPC revoga entendimento sumular a respeito das astreintes no RS

Autor

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

26 de agosto de 2016, 6h49

A convite dos eminentes processualistas Roberto Campos Gouveia Filho, Lorena Guedes e Luciana Debeux, participei, nos dias 5 e 6 de agosto, do II Congresso Pernambucano de Direito Processual Civil, evento organizado em parceria pela OAB-PE e pela Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). O professor Misael Montenegro Filho, com quem dividi mesa, em determinado ponto da sua exposição teceu severas críticas a um julgado da lavra das Turmas Recursais Cíveis Reunidas dos Juizados Especiais Cíveis do Rio Grande do Sul. Aquilo despertou a minha atenção, pois já havia lidado profissionalmente com problema semelhante aqui em Minas Gerais. Tomei nota e me comprometi a retornar ao assunto no futuro.

O acórdão foi fruto de um incidente de uniformização de jurisprudência[1]. Conquanto não se trate de julgamento recente, a atualidade do que restou decidido persiste, seja porque ali se formou entendimento sumular hoje seguido por juízes daquele estado, seja ainda em razão do regramento em rota oposta pelo CPC/2015.

A divergência entre turmas recursais, que deu ensejo ao referido incidente, era sobre a possibilidade ou não de redirecionamento do valor considerado excessivo em astreintes a um destinatário que não o próprio demandante. Aqueles que entendiam positivamente escoravam-se no Enunciado 132 do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), ao que tudo indica inspirado no regramento dos processos coletivos[2], aprovado por quorum qualificado no XXVI Encontro – Fortaleza (CE), entre os dias 25 e 27 de novembro de 2009: “A multa cominatória não fica limitada ao valor de 40 salários mínimos, embora deva ser razoavelmente fixada pelo juiz, obedecendo ao valor da obrigação principal, mais perdas e danos, atendidas as condições econômicas do devedor. Na execução da multa processual (astreinte), que não tem caráter substitutivo da obrigação principal, a parte beneficiária poderá receber até o valor de 80 salários mínimos. Eventual excedente será destinado a fundo público estabelecido em norma estadual”.

O voto da relatoria resume a tese vencedora. Argumentou-se, de um lado, que as astreintes têm o papel de vencer a vontade do demandado, pressionando-o a cumprir determinada obrigação. Sua natureza é coercitiva, sem efeito remuneratório ou reparatório. Por isso, a revisão sempre foi admitida, inclusive de ofício, para evitar enriquecimento sem causa. De outro lado, porém, a revisão que frequentemente o Judiciário imprime ao montante acumulado pela incidência da multa acaba servindo para fomentar o inadimplemento das decisões judiciais. E o grand finale: i) configurado o excesso na penalização é preciso estabelecer, para evitar enriquecimento sem causa, um limite como aceitável em relação ao demandante; ii) no que tange à sobra das astreintes, e dentro da ideia de preservação da dignidade da Justiça, seu recolhimento deve direcionar-se a um fundo, seja o destinado ao reaparelhamento do Judiciário, seja a outro externo, ligado aos direitos dos consumidores. A opção recaiu sobre o Fundo Estadual de Defesa do Consumidor (Fecon), porquanto percebeu o relator, prudentemente, a presença de um potencial fator de quebra da imparcialidade na hipótese de redirecionamento da importância monetária ao próprio orçamento do Judiciário. Os demais julgadores acompanharam o voto de relatoria e, à unanimidade, a Súmula 26 foi instituída: “É possível a destinação parcial das astreintes ao Fecon”.

Antes do CPC/2015, havia interpretações destoantes quanto à titularidade das astreintes, sobretudo porque a legislação revogada não apresentava solução taxativa, de maneira que uns entendiam-na devida ao próprio demandante, ao passo que outros defendiam que o melhor seria destiná-la ao estado[3]. Mas logo se consolidou o entendimento jurisprudencial de que as astreintes possuíam caráter eminentemente privado, sendo o demandante seu único destinatário, com posicionamento firme do Superior Tribunal de Justiça: i) embora o texto de lei revogado não fosse expresso sobre o tema, inexistia lacuna legal, pertencendo exclusivamente ao autor o crédito decorrente da aplicação das astreintes; ii) despontava a impossibilidade de estabelecer titularidade ao estado do valor alcançado pela incidência da multa, pois uma tal interpretação desbordaria em inconstitucionalidade por afronta ao princípio da reserva legal (artigo 5º, caput, da CF/88) — qualquer penalidade de caráter público deve conter um patamar máximo, a delimitar a discricionariedade da autoridade que a imporá em detrimento do particular infrator; iii) quando o ordenamento processual quer destinar ao estado o produto de uma multa sempre o faz expressamente, com a estipulação normativa de parâmetros para a sua aplicação, como se depreende do artigo 14 do CPC/73[4].

De qualquer forma, se alguma dúvida persistia mesmo depois do posicionamento do STJ, hoje, com a entrada em vigor do CPC/2015, ela se dissipou por completo. É que o legislador foi categórico, pontual e fulgurante ao estabelecer que “[o] valor da multa será devido ao exequente” (CPC/2015, artigo 537, parágrafo 2º). Logo, não há mais espaço para a aplicação da Súmula 26, surgida numa época na qual havia mesmo uma lacuna na legislação processual revogada, embora seu preenchimento não se apresentava dificultoso ante um olhar atento para o sistema normativo considerado em sua totalidade.

Mas fica uma pontinha de dúvida mesmo diante da clareza que emana da nova legislação processual: será que o entendimento sumular deixará de ser aplicado? Afinal, em sua base está um enunciado elaborado por juízes. E enunciados por aqui têm força descomunal. Não raro, valem mais que a lei. Numa perspectiva pragmática, o fenômeno é uma infeliz realidade entre nós.

A crítica é dura, e a faço respeitosamente. Mas cá entre nós: o que fez o Fonaje, ao editar o Enunciado 132, foi nada menos que legislar. Pura e simplesmente. Ao produzi-lo, legislou, e, a partir de então, muitos juízes passaram a seguir o entendimento fixado. A divergência eclodiu, sendo superada pela via do incidente de uniformização de jurisprudência, cujo resultado foi a Súmula 26, conferindo ao enunciado uma capa de jurisdicionalidade. O ovo da serpente foi chocado[5], dele emergindo a possibilidade de o Judiciário, sem base legal, fazer filantropia com chapéu alheio.

No fundo, a Súmula 26 consagra os danos punitivos em sede de ações individuais, os quais, para o STJ, não encontram respaldo no ordenamento brasileiro[6][7]. E há dificuldades processuais oriundas dessa estranhíssima aproximação pragmática entre processos individual e coletivo: 1) lesão ao contraditório: o autor formula pedidos indenizatórios em seu favor, não buscando em processo próprio benefício de terceiros; o réu, por sua vez, deseja não ser condenado, pouco importando a quem seus recursos poderão ser destinados. Decisões de tal jaez podem estar desprezando a influência de ambos os litigantes, além de lhes acarretar amarga surpresa; 2) afronta à regra da inércia: demandantes formulam pedidos em seu favor, não em prol de terceiro, a significar que a Súmula 26 permite a atuação oficiosa da jurisdição com a consequente produção de tutela jurisdicional que extrapola os limites do pedido (ultra petita).

E tem gente que não se amedronta com enunciados. Eu, sim, e muito; e nem tenho vergonha de assumir. Lenio Streck tem horror a eles[8], e ninguém compromissado com o Estado Democrático de Direito pode virar as costas para seus argumentos. Também já demonstram semelhante preocupação Eduardo José da Fonseca Costa, Glauco Gumerato Ramos e Marco Paulo Denucci Di Spirito[9]. É que vez por outra, sem querer querendo, seus prolatores extrapolam o limite de apenas sugestionar interpretações possíveis ao direito positivado, e o que se constata, como produto final, são simulacros de leis. Enunciados transfiguram-se em leis. E quando elaborados por um grupo de juízes, a coisa se complica, pois a chance de serem aplicados irrefletidamente por outros julgadores aumenta sobremaneira — não me deixam na mão estudos em psicologia comportamental cognitiva cujo enfoque é o viés de grupo (in-group bias)[10].

Mas voltemos à minha dúvida. A leitura do acórdão, que suscitou a Súmula 26, leva a crer que não estou pensando bobagens. Já no início do voto de relatoria pressagia-se o que estaria por vir. O que ali se defende é de arrepiar. Reproduzo ipsis litteris: “A gênese e a motivação de criação dos Juizados Especiais sempre estiveram alicerçadas na celeridade e na informalidade, tanto que para isso é possível ao julgador, no caso específico, até mesmo se afastar da lei com o objetivo maior do justo, decidindo por equidade”. Não tem jeito, vou ter que formular umas perguntinhas. Que negócio é esse de se admitir, nos Juizados Especiais, julgamentos arredados da lei? Quer dizer então que a Constituição não constrange os juízes que lá exercem sua função? E o princípio da legalidade, alçado a cláusula pétrea pelo constituinte brasileiro? A equidade venceu à legalidade? O que se tem ali é niilismo legislativo; é isso, ou compreendi mal? Estado de Equidade? Magistrados agora se tornaram uma força subversiva contra a autoridade do Direito? Os mantras celeridade e informalidade podem tudo, inclusive licenciar julgamentos avessos à legalidade constitucionalizada? Pois bem, nunca é demais lembrar: o bom juiz Magnaud de hoje pode vir a se tornar o Gremilin de amanhã…[11]

O que vem depois, presente na maioria dos votos que integram o acórdão, não representa novidade. Os trunfos de sempre, razoabilidade e proporcionalidade, fartamente utilizados numa espécie de pavimentação para sustentar a solução eleita. Afinal, cabem tudo e qualquer coisa nesses conceitos. Mesmo assim, o CPC/15 decidiu também usá-los; mas isso já é outra história… Curioso é que nadinha de nada se afirmou sobre o entendimento majoritário, encampado pelo STJ, em especial sobre as razões que o sustentam[12]. A coerência foi jogada para escanteio.

A verdade é que tudo naquele acórdão ficaria muito bem na seara parlamentar. A questão, todavia, é que juízes não são legisladores. Devem atuar maniatados à racionalidade normativa, agrilhoados ao contexto hermenêutico, amarrados pela tradição vazada na doutrina e jurisprudência que os antecederam. Sua responsabilidade política os impele a isso. Não estão autorizados a se aventurarem rumo ao terreno do agir pragmático e finalístico, em socorro a justiças de ocasião, sempre subjetivas e surgidas à margem do debate democrático que legitima a produção legislativa de maneira geral.

O homem, este caminhante pela vida, é sempre alimentado pela esperança, tipo de compensação para a insegurança que o envolve cotidianamente (Mario Ferreira dos Santos). Se a esperança, contudo, não for suficiente, ao jurisdicionado restará o caminho da reclamação, fundada na pretensão de garantir a autoridade de decisões do STJ, empreitada dificultosa, haja vista o afunilamento, cada dia mais intenso, que vem sofrendo seu manejo contra acórdãos de turmas recursais[13].


[1] Acessar o inteiro teor do acórdão aqui: <http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=&proxystylesheet=tjrs_index&client=tjrs_index&filter=0&getfields=*&aba=juris&entsp=a__politica-site&wc=200&wc_mc=1&oe=UTF-8&ie=UTF-8&ud=1&lr=lang_pt&sort=date%3AD%3AR%3Ad1&as_qj=&site=ementario&as_epq=&as_oq=&as_eq=&partialfields=n%3A71004105821&as_q=+#main_res_juris>.
[2] Existe, como se sabe, expressa previsão na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) autorizando a destinação de condenações em dinheiro a fundos estaduais (artigo 13).
[3] Contra o entendimento preponderante, merece destaque a voz autorizadíssima de Barbosa Moreira: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. De outra banda, defendendo razões a favor do entendimento majoritário: TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 257-261.
[4] STJ, REsp 949.509-RS, rel. originário min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em: 8/5/2012. Disponível: <www.stj.jus.br>
[5] A feliz expressão é de Lenio Streck, frequentemente utilizada nos textos que escreve aqui na ConJur.
[6] “(…) 3. A aplicação irrestrita das ‘punitive damages’ encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio (…)” (STJ, AgRg no Ag 850.273/BA, rel. ministro Honildo Amaral De Mello Castro (desembargador convocado do TJ-AP), 4ª Turma, julgado em 3/8/2010, DJe 24/8/2010). No mesmo sentido, STJ REsp 401.358/PB, rel. ministro Carlos Fernando Mathias (juiz federal convocado do TRF 1ª Região), 4ª Turma, julgado em 5/3/2009, DJe 16/3/2009). “(…) c) é inadequado pretender conferir à reparação civil dos danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao direito penal e administrativo.” (STJ, REsp 1.354.536/SE, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 26/3/2014, DJe 5/5/2014. Recurso repetitivo). “(…) 1. Na presente reclamação a decisão impugnada condena, de ofício, em ação individual, a parte reclamante ao pagamento de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide e, nesse aspecto, extrapola os limites objetivos e subjetivos da demanda, na medida em que confere provimento jurisdicional diverso daqueles delineados pela autora da ação na exordial, bem como atinge e beneficia terceiro alheio à relação jurídica processual levada a juízo, configurando hipótese de julgamento extra petita, com violação aos arts. 128 e 460 do CPC.” (STJ, Rcl 12.062/GO, rel. ministro Raul Araújo, 2ª Seção, julgado em 12/11/2014, DJe 20/11/2014. Recurso repetitivo). Neste último julgado, a condenação a título de danos punitivos é mencionada como “danos sociais”.
[7] Esse parece ser também o entendimento de Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler. Vide MARTINS-COSTA, Judith; e PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva: punitive damages e o Direito brasileiro. Revista do CEJ. n. 28. p. 15-32. jan.-mar. 2005, p. 24, 25. Mesmo em sede de tutela coletiva, na União Europeia os danos punitivos são enfocados com restrição, como esclarece Elisabetta Silvestri: “All'opposto, è radicale il rifiuto dei punitive damages. Enunciando un principio addirittura rubricato come ‘Prohibition of punitive damages’, la Commissione raccomanda che la misura del risarcimento accordato ai membri della classe non ecceda la somma che rappresenta il totale di quanto, presumibilmente, ciascuno avrebbe potuto ottenere agendo in giudizio a titolo individuale. Una disposizione di questo genere forse non era strettamente necessaria: è noto, infatti, che nella maggior parte degli Stati Membri il diritto positivo non ammette condanne della parte soccombente ai danni punitivi." (SILVESTRI, Elisabetta. Unione Europea e tutela collettiva. In: Revista de Processo (REPRO), vol. 231, maio 2014. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, p. 235.
[8] Entre tantos de muitos textos em que Lenio Streck abordou essa temática, conferir, por exemplo: STRECK, Lenio. A febre dos enunciados e a constitucionalidade do ofurô! Onde está o furo? Revista eletrônica Consultor Jurídico. Acessado: 22/8/2016. Acessar aqui: <http://www.conjur.com.br/2015-set-10/senso-incomum-febre-enunciados-ncpc-inconstitucionalidade-ofuro>.
[9] FONSECA COSTA, Eduardo José; RAMOS, Glauco Gumerato; DENUCCI DI SPIRITO, Marco Paulo. A elaboração de enunciados para orientar a interpretação de uma nova legislação é algo positivo sob o ponto de vista científico e pragmático. Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), 94. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016. p. 223-230.
[10] O viés de grupo é manifestação da tendência tribal do ser humano. É aquilo de superestimar as habilidades e valores do grupo a que se pertence. Para um estudo pormenorizado dos vieses cognitivos em uma perspectiva jurídica, conferir: FONSECA COSTA, Eduardo José. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre Direito Processual, Economia e Psicologia. Tese (doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. Não publicada.
[11] Sobre os riscos de decisões pautadas na vontade de poder, com referências, inclusive, à ideologia nazista: SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. Controle remoto e decisão judicial. Quando se decide sem decidir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[12] Antes do julgamento que se mencionou no texto, o STJ já havia se pronunciado sobre o tema, mesmo que indiretamente: AgRg no Ag 1.133.970/SC, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 2/12/2010, DJe 9/12/2010; AgRg no REsp 1.138.150/PR, rel. ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 9/8/2011, DJe 22/8/2011; REsp 770.753/RS, rel. ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 27/2/2007, DJ 15/3/2007.
[13] Basta verificar o absurdo que representa a Resolução 03/2016 do STJ, que dispõe sobre a competência para processar e julgar reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão proferido por turma recursal estadual ou do Distrito Federal e a jurisprudência da corte. De novo, problemas de ordem normativa sendo (mal) resolvidos pelo imperturbável pragmatismo brasileiro.

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  • é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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