Tribuna da Defensoria

Depoimento da audiência de custódia pode ser utilizado na Ação Penal?

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal especialista em ciências criminais professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”. Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

23 de agosto de 2016, 11h59

Prosseguindo com o debate provocado na coluna anterior, em que sustentei a admissibilidade de atividade probatória na audiência de custódia, chegamos agora, inevitavelmente, na seguinte discussão: o conteúdo da audiência de custódia pode ser aproveitado como expediente probatório na eventual ação penal?

Na primeira edição do meu livro Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro, defendi que o depoimento da pessoa presa colhido na audiência de custódia não pode ser usado contra ela durante a fase processual, concluindo, então, que o ideal seria que o resultado da audiência não apenas fosse encartado em autos apartados, mas também que se proibisse a sua juntada nos autos do processo principal.

Ainda que pendente a votação da matéria em turno suplementar, esta foi a orientação acolhida na redação final do PLS 554 quando da sua aprovação pelo Plenário do Senado Federal em 13/7/2016, restando assentado que “A oitiva a que se refere o § 5º será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e a necessidade da prisão, a ocorrência de tortura ou de maus-tratos e os direitos assegurados ao preso e ao acusado” (artigo 306, § 6º). Já a Resolução 213 do CNJ economizou palavras e, por vedar a atividade probatória na audiência de custódia, nem sequer abordou expressamente esta questão, omitindo-se quanto à possibilidade de eventual fala da pessoa presa sobre o mérito do caso penal ser utilizada como prova incriminatória na fase processual.

No âmbito doutrinário, o tema divide opiniões, havendo tanto quem defenda a tese da impossibilidade de utilização do conteúdo da audiência de custódia como expediente probatório na ação penal[1] quanto quem não enxergue nenhum inconveniente neste procedimento[2].

Assim como na coluna anterior, também aqui estou aproveitando a segunda edição do meu livro para mudar de entendimento.

A relação deste tópico com o texto publicado na coluna anterior é direta e consequencial. Vejamos. Para quem defende a proibição de atividade probatória na audiência de custódia, eventual colheita de confissão da pessoa presa naquela ocasião consistirá em prova ilícita, devendo ser desentranhada do processo nos termos do artigo 157, caput, do CPP[3], proibindo-se, então, a sua utilização como expediente probatório na fase processual. Esta deverá ser a conclusão se mantido o cenário normativo desenhado no PLS 554 e na Resolução 213 do CNJ. Por outro lado, para quem admite a atividade probatória na audiência de custódia, não há argumento capaz de impedir a utilização de eventual confissão da pessoa presa na fase processual.

Fora desta discussão sobre a atividade probatória, isto é, considerando um caso em que a audiência de custódia tenha tratado exclusivamente da legalidade e da necessidade da prisão, sem qualquer incursão no mérito do caso penal, não vejo motivo e considero até mesmo impertinente se proibir a juntada dos autos da audiência de custódia em apenso aos autos do processo principal, e isso porque o devido processo legal e a garantia da publicidade dos atos processuais não devem conviver com pronunciamentos ocultos[4].

Por fim, é preciso dizer que eventual confissão da pessoa presa na audiência de custódia não se afigura uma prova irrepetível[5] e poderá, inclusive, ser objeto de retificação pelo acusado quando do seu interrogatório ao final da instrução. Embora eu concorde com Andrade e Alflen quando afirmam que “(…) eventual confissão prestada na audiência de custódia não é mais importante ou menos importante que uma confissão prestada após o ajuizamento da ação penal condenatória[6], penso que o juiz deve considerar, para fins de formação do seu convencimento diante de uma divergência entre a confissão da pessoa presa na audiência de custódia e uma eventual retificação no interrogatório realizado ao final da instrução, que (I) o momento da audiência de custódia — principalmente nos casos de prisão em flagrante — pode ser processualmente precoce para que a pessoa presa se defenda adequadamente e que (II) o acusado melhor exerce a autodefesa após acompanhar a oitiva das testemunhas e da vítima.


[1] Neste sentido, cf. LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Afinal, quem continua com medo da audiência de custódia? (parte 2). Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-fev-20/limite-penal-afinal-quem-continua-medo-audiencia-custodia-parte2 Acessado no dia 06/08/2016; CHOUKR, Fauzi Hassan.  Audiência de Custódia: Resultados preliminares e percepções teórico-práticas, p. 28. Disponível em: https://www.academia.edu/18010764/Audiência_de_Custódia_-_Resultados_preliminares_e_percepções_teórico-práticas Acessado no dia 06/08/2016.

[2] Cf. BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Art. 12. In: ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFEN, Pablo Rodrigo (org.). Audiência de Custódia: Comentários à Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 139-158; ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFLEN, Pablo Rodrigo. Audiência de Custódia…, p. 138-140.

[3] Art. 157, caput, do CPP: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.

[4] Embora tratando de outro tema, o STF já se manifestou contrário aos pronunciamentos ocultos quando decidiu que, reconhecido o excesso de linguagem da pronúncia, o correto a ser feito é anular aquela decisão, e não apenas desentranhá-la e “envelopá-la”, subtraindo o direito dos jurados de conhecerem o seu teor (RHC 127.522, rel. min. Marco Aurélio, 1ª Turma, j. 18/08/2015).

[5] Neste sentido, também a lição de Rodrigo da Silva Brandalise, para quem “(…) não pode ela [a confissão da pessoa presa na audiência de custódia] ser considerada prova irrepetível, pois o réu terá, obrigatoriamente, disponibilizada a oportunidade de ser interrogado em juízo quando da ação penal oferecida. Ele não perde seus direitos processuais fundamentais por ter agora declarado, ainda que fuja – ou seja, revel –, pois o direito ao interrogatório remanescerá, inclusive em sede de apelação nos termos do artigo 616 do Código de Processo Penal (…)” (Art. 12. In: ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFEN, Pablo Rodrigo (org.). Audiência de Custódia: Comentários à Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 139-158).

[6] Audiência de Custódia no Processo Penal Brasileiro, p. 140.

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    é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.

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