Academia de Polícia

Colaboração premiada não pode prescindir da devida investigação criminal

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

23 de agosto de 2016, 12h11

Spacca
Já tivemos a oportunidade de tratar do tema da colaboração premiada aqui neste espaço nas colunas Colaboração premiada e legitimidade do delegado de polícia e Sigilo e colaboração premiada na visão do Supremo. Dessa vez, o objetivo é tratar da imprescindibilidade da investigação criminal e, em consequência, da polícia judiciária, para a eficácia da colaboração premiada enquanto meio de obtenção de provas.

Como premissa basilar, a colaboração premiada não é um fim em si mesma. Também não tem como finalidade estampar a capa do jornal do dia seguinte ou das revistas de final de semana. A colaboração premiada consiste em instituto de capital importância para a investigação de organizações criminosas, sobretudo aquelas que apresentam alto grau de inserção no seio estatal.

De acordo com a legislação mais moderna que a rege (Lei 12.850/2013), a colaboração premiada é disciplinada como meio de obtenção de provas, posição já assentada na doutrina, como bem coloca Gilson Langaro Dipp[1], assim como já firmada pelos tribunais superiores, como por exemplo no HC 90.688-PR (relator ministro Lewandowski), julgado pelo Supremo Tribunal Federal, onde se depreende que:

“Nessa ocasião a Corte fixou entendimento de não constituir esse documento meio de prova, mas meio de obtenção dela assim não se submetendo necessariamente ao contraditório ou ampla defesa, podendo manter-se sobre ele o sigilo às demais partes (não envolvidas no acordo) ou interessados, enquanto não conveniente para a instrução ou até que a lei o dispense”.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 127.483/PR, sob relatoria do ministro Dias Tóffoli[2], firmou entendimento no sentido de que:

No mérito, o Plenário considerou que a colaboração premiada seria meio de obtenção de prova, destinado à aquisição de elementos dotados de capacidade probatória. Não constituiria meio de prova propriamente dito. Outrossim, o acordo de colaboração não se confundiria com os depoimentos prestados pelo agente colaborador. Estes seriam, efetivamente, meio de prova, que somente se mostraria hábil à formação do convencimento judicial se viesse a ser corroborado por outros meios idôneos de prova. (grifos nossos)

Entretanto, para a efetivação do benefício, fundamental que se alcance um ou mais objetivos previstos no artigo 4° da Lei 12.850/2013:

I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Portanto, para que se alcance os objetivos previstos pela lei, desde a localização da vítima, até mesmo o rastreamento do produto ou proveito das infrações penais, imperiosa a necessidade de um robusto material probatório a fim de reforçar as palavras do colaborador.

Ademais, a legislação também é taxativa no sentido de que “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”, conforme previsão do artigo 4°, § 16, igualmente consolidada na doutrina e na jurisprudência. Veja-se, a título de exemplo, a decisão do Min. Celso de Mello, de 22/09/2015, nos autos da Pet. 5700-DF, que faz aprofundada análise do tema:

O aspecto que venho de ressaltar – impossibilidade de condenação penal com suporte unicamente em depoimento prestado pelo agente colaborador, tal como acentua a doutrina (EDUARDO ARAÚJO DA SILVA, “Organizações Criminosas: aspectos penais e processuais da Lei nº 12.850/13”, p. 71/74, item n. 3.6, 2014, Atlas, v.g.) – constitui importante limitação de ordem jurídica que, incidindo sobre os poderes do Estado, objetiva impedir que falsas imputações dirigidas a terceiros “sob pretexto de colaboração com a Justiça” possam provocar inaceitáveis erros judiciários, com injustas condenações de pessoas inocentes. Na realidade, o regime de colaboração premiada, definido pela Lei nº 12.850/2013, estabelece mecanismos destinados a obstar abusos que possam ser cometidos por intermédio da ilícita utilização desse instituto, tanto que, além da expressa vedação já referida (“lex. cit.”, art. 4º, § 16), o diploma legislativo em questão também pune como crime, com pena de 1 a 4 anos de prisão e multa, a conduta de quem imputa “falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente” ou daquele que revela “informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas” (art. 19). Com tais providências, o legislador brasileiro procurou neutralizar, em favor de quem sofre a imputação emanada de agente colaborador, os mesmos efeitos perversos da denunciação caluniosa revelados, na experiência italiana, pelo “Caso Enzo Tortora” (na década de 80), de que resultou clamoroso erro judiciário, porque se tratava de pessoa inocente, injustamente delatada por membros de uma organização criminosa napolitana (“Nuova Camorra Organizzata”) que, a pretexto de cooperarem com a Justiça (e de, assim, obterem os benefícios legais correspondentes), falsamente incriminaram Enzo Tortora, então conhecido apresentador de programa de sucesso na RAI (“Portobello”).

[…]

 Registre-se, de outro lado, por necessário, que o Estado não poderá utilizar-se da denominada “corroboração recíproca ou cruzada”, ou seja, não poderá impor condenação ao réu pelo fato de contra este existir, unicamente, depoimento de agente colaborador que tenha sido confirmado, tão somente, por outros delatores, valendo destacar, quanto a esse aspecto, a advertência do eminente Professor GUSTAVO BADARÓ (“O Valor Probatório da Delação Premiada: sobre o § 16 do art. 4º da Lei nº 12.850/2013”): “A título de conclusão, podem ser formulados os seguintes enunciados: A regra do § 16 do art. 4º da Lei 12.850/13 aplica-se a todo e qualquer regime jurídico que preveja a delação premiada. O § 16 do art. 4º da Lei 12.850/13, ao não admitir a condenação baseada exclusivamente nas declarações do delator, implica uma limitação ao livre convencimento, como técnica de prova legal negativa. É insuficiente para o fim de corroboração exigido pelo § 16 do art. 4º da Lei 12.850/13 que o elemento de confirmação de uma delação premiada seja outra delação premiada, de um diverso delator, ainda que ambas tenham conteúdo concordante. Caso o juiz fundamente uma condenação apenas com base em declarações do delator, terá sido contrariado o § 16 do art. 4º da Lei 12.850/13 (…).”

Importante destacar aqui que o dispositivo reforça a necessidade de ampla investigação a fim de que a colaboração premiada possa ser corroborada por um conjunto de provas e indícios visando amparar os elementos trazidos pelo colaborador. A decisão do Min. Celso de Mello prossegue ainda, no sentido de:

4. A investigação penal como dever jurídico e resposta legítima do Estado à “notitia criminis”: o investigado como sujeito de direitos e titular de garantias oponíveis ao Estado.[…]  firmou-se, nesta Suprema Corte, orientação jurisprudencial no sentido de que “a simples apuração da ‘notitia criminis’ não constitui constrangimento ilegal a ser corrigido pela via do ‘habeas corpus’” (RTJ 78/138). É por tal motivo que a não realização da investigação penal (quer por recusa de sua instauração, quer por sua extinção ou trancamento) só se justificará, excepcionalmente, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RT 742/533 – RT 747/597 – RT 749/565 – RT 753/507 – RTJ 168/498-499, v.g.), se os fatos puderem, desde logo, evidenciar-se como “inexistentes ou não configurantes, em tese, de infração penal” (RT 620/368), pois – insista-se –, havendo suspeita de crime, e existindo elementos idôneos de informação que autorizem a investigação penal do episódio delituoso, tornar-se-á essencial proceder à ampla apuração dos fatos, satisfazendo-se, desse modo, com a legítima instauração do pertinente inquérito, a um imperativo inafastável fundado na necessidade ético-jurídica de sempre se promover a busca da verdade real, tal como tem sido decidido por esta Suprema Corte (RTJ 181/1039-1040, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). […] As circunstâncias expostas no depoimento que venho de mencionar, que evidenciariam a suposta ocorrência de práticas delituosas perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada, tornam indispensável, em sede de regular “informatio delicti”, o aprofundamento da investigação dos delitos noticiados (crime eleitoral de falsidade ideológica e delito de lavagem de dinheiro). A investigação penal, em contexto como o ora referido, traduz incontornável dever jurídico do Estado e constitui, por isso mesmo, resposta legítima do Poder Público ao que se contém na “notitia criminis”. A indisponibilidade da pretensão investigatória do Estado impede que os órgãos públicos competentes ignorem aquilo que se aponta na “notitia criminis”, motivo pelo qual se torna imprescindível a apuração dos fatos delatados, com o consequente e necessário aprofundamento da investigação estatal.

Assim, de fundamental importância é a atividade de polícia judiciária, consubstanciada na atividade de investigação criminal, função precípua das polícias civis e federal, por mandamento constitucional, visando assegurar que o acordo de colaboração possa atingir a efetividade necessária, sobretudo no sentido de alcançar material probatório que corrobore as declarações do colaborador.

Desnecessário aqui reforçar o papel fundamental do Delegado de Polícia na proposição dos acordos, conforme já exposto por nós, assim como por Henrique Hoffmann e Francisco Sannini Neto no artigo Delegado de polícia tem legitimidade para celebrar colaboração premiada, onde se destaca “O delegado de polícia, como presidente do inquérito policial, é a autoridade mais indicada para saber quais as necessidades da investigação em desenvolvimento, sendo que a utilização de medidas cautelares constitui um dos possíveis caminhos a serem trilhados na busca pela verdade”.

Além da proposição, a atividade de investigação criminal realizada pela polícia judiciária visa dar concretude às palavras do colaborador, a fim de evitar que sejam apenas “palavras ao vento”, mas sim corroboradas por diversos outros meios de prova previstos na legislação penal. Nesse cenário, imperioso o sigilo da colaboração até a fase de eventual denúncia, conforme já exposto em artigo anterior, a fim de que se possa assegurar um mínimo de efetividade às diligências.

O instituto da colaboração premiada certamente é um dos grandes paradigmas no novo processo penal brasileiro, mas certamente não pode se sobrepor ou prescindir da devida investigação criminal, mecanismo que atua no processo de filtragem apontado por Aury Lopes Jr[3] que, conforme bem exposto por Henrique Hoffmann, para além de evitar um processo penal desnecessário, cumpre sua dupla função:

Não se trata de mecanismo unidirecional, como quer fazer parecer parte da doutrina ao iluminar apenas função preparatória, de colheita e acautelamento de provas para que o titular da ação penal ingresse em juízo. Além dessa finalidade subsidiária, que nem sempre ocorre (já que as investigações podem levar à reunião de elementos exclusivamente em favor da defesa), existe a missão preservadora, que é a principal, de inibição da instauração de processo penal temerário, resguardando a liberdade do investigado e evitando custos estatais desnecessários

Isabel Garcia de Paz[4], ao tratar da colaboração, sob a perspectiva do ordenamento espanhol, cita o paradigma utilitarista de Jeremy Bentham, segundo o qual seria preferível a impunidade de um dos cúmplices do que a de todos. Certamente, o instituto da colaboração premiada permite alcançar suspeitos de difícil identificação no curso de investigações criminais, visando a responsabilização da cadeia de comando em sua máxima escala mas, por outro lado,  não pode ser encarada unilateralmente como a tábua de salvação do caótico processo penal brasileiro, prescindindo da investigação criminal que, apesar das mazelas inerentes ao processo penal, tem sido o instrumento, consubstanciado no inquérito policial, que assegura uma eficaz ferramenta de colheita de elementos probatórios.

A colaboração premiada traduz, portanto, de mais uma ferramenta de persecução criminal, visando sobretudo atingir os altos estratos da criminalidade, delinquência que age nas sombras e que dificilmente é alcançada sem a utilização de ferramentas modernas de investigação mas que não deve, sob pena de levar o processo penal à ruína, desprezar o papel da investigação criminal realizada primordialmente pela polícia judiciária.


[1] DIPP, Gilson Langaro. A Delação ou Colaboração Premiada: uma análise do instituto pela interpretação da lei. Brasília: IDP, 2015, p. 9.
[2] STF. Informativo n° 796, de 24 a 28 de agosto de 2015. Disponível em <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo796.htm#Cabimento de HC em face de decisão de Ministro do STF e colaboração premiada – 1>
[3] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 280.
[4] GARCIA DE PAZ, Izabel Sánchez. El coimputado que colabora con la Justicia Penal – Con atención a las reformas introducidas en la regulación española por las Leyes Orgánicas 7/ y 15/2003. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia 07-05, 2005, p. 3.

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