Opinião

A superação de provimentos vinculativos: muito cuidado nessa hora!

Autor

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

18 de agosto de 2016, 9h03

À moda [1] do sistema jurídico anglo-saxão, a legislação processual trouxe para o Brasil a técnica da superação (ou overruling), cujo propósito segue rumo a: i) extirpar em definitivo da ordem jurídica provimento[2] obrigatório alvo de invencível desgaste pela dinamicidade social;[3] e ii) substituir o provimento eliminado por entendimento normativo que preencha o vazio que até então havia sido deixado. Se o sistema normativo traz em si uma obsolescência notada de tempos em tempos, é preciso que esteja abastecido de ferramental capaz de, num só é único lance, varrer velharias do seu espectro e promover uma auto-dinamização em socorro às conveniências e necessidades da sociedade.

Questão fulcral, hoje no centro do debate doutrinário, diz respeito a quem pode superar provimentos obrigatórios. Seria mecanismo cuja utilização estaria liberada a todo e qualquer órgão judicial, ou seu manejo reservar-se-ia apenas àquele tribunal responsável por ensejar a criação do procedente obrigatório? Advirta-se desde logo que não está em jogo aqui puramente um problema formal de competência, porquanto a dúvida repercute outrossim na eficiência esperada de um modelo de provimentos obrigatórios.

A leitura isolada do artigo 489, §1º, VI, do CPC-2015 sugere que a ferramenta estaria a disposição de qualquer juiz ou tribunal. Afinal, o texto normativo surge livre e solto impondo que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.” À primeira vista, tem-se a impressão que o sistema processual fez mesmo opção por manter pujante a criatividade dos juízes. No imorredouro puxar de cabelos entre estabilidade das decisões judiciais e mobilidade do Direito pela via jurisprudencial, teria a última outra vez logrado êxito.

No entanto, uma reflexão mais penetrante recomenda não ser esta a melhor resposta exegética. E a razão principal está encimada sobre a tutela da isonomia e segurança jurídica, base justificadora da adoção de um modelo de provimentos obrigatórios, sintetizada na indagação, já clássica, formulada pelo mestre lusitano, José Alberto dos Reis: "que importa a lei ser igual para todos se for aplicada de modo diferente a casos análogos?"[4]

É fato o ímpeto do brasileiro pela valorização quase sem peias da criatividade dos juízes, a prevalecer continuamente sobre a estabilidade das decisões judiciais.[5] Com precisão cirúrgica, Eduardo José da Fonseca Costa leciona que falta a boa parte dos tribunais brasileiros a chamada “reverência aos antecessores”: cada novo juiz que acende ao tribunal quer imprimir ali sua visão particular de mundo, não raro destoando de entendimentos majoritários pacificados há décadas, um personalismo individualista absolutamente incompatível com o ideário republicano.[6] Nutrimos àquele fetiche pelo avanço, pela criação, pela mudança, cuja contrapartida denuncia perigoso desdém à história institucional que haveria de caracterizar as construções jurisprudenciais.

Dito isso, basta um passo para se perceber que o alargamento demasiado do manejo da superação, colocando-a a disposição de todo e qualquer juiz ou tribunal, tem real potencialidade de provocar a sua própria banalização, a ponto de fazer da regra a exceção e vice-versa. É dizer, e sem desprezar a dimensão hermenêutica,[7] a regra, que é o respeito aos provimentos obrigatórios, tornar-se-ia exceção, ao passo que a utilização do overruling, algo excepcional, verter-se-ia em regra. Ao fim e ao cabo, nada menos que esquizofrenia jurisprudencial ao quadrado!

A aspiração hodierna é alterar o panorama de imprevisibilidade que distingue a prática judiciária brasileira, com decisões em sentidos múltiplos para casos semelhantes. Não por acaso, o CPC/15 inflige aos tribunais os deveres de uniformizar sua jurisprudência, mantê-la estável, íntegra e coerente (CPC/15, artigo 926). Contudo, o tiro decerto sairá pela culatra se o modus operandi da superação caracterizar-se pelo descomedimento. Seria dar com uma mão e tirar com a outra.[8]

Portanto, a melhor solução, afinadíssima à lógica do empreendimento, está em excepcionar a técnica para que dela lance mão apenas o órgão judicial responsável pela produção do provimento obrigatório cuja superação se anseia atingir.[9] É apostar numa prática judicial resistente a viradas de ocasião, que se não chega a engessar o Direito, impõe ao menos que o seu avanço se dê a partir de marchas mais lentas, em respeito à tradição e num agir segundo o qual se exija superior esforço argumentativo que justifique a guinada de entendimento.

Outra questão de primeira ordem está atrelada à eterna vigília contra rasgos autoritários perturbadores do esforço contínuo e sempre inacabado de construção do Estado Democrático de Direito.[10] É habitual o uso de argumentos extra-normativos, comumente empregados na seara parlamentar, como fundamento de decisões judiciais que superam provimentos obrigatórios. Por exemplo, aduz-se que o provimento “não pegou” (sociológico), que é injusto (moral), excessivamente protecionista ou libertário (ideológico). Contudo, em que medida argumentos de tal jaez (de política) se mostram legítimos para justificar a amputação peremptória de um provimento obrigatório da ordem jurídica? 

São dois os caminhos possíveis: ou o órgão judicial faz uso incoercível e irrestrito de argumentos de política, ou apenas serve-se deles de forma setorial, como reforço a argumentos de princípio (=fundados na ordem jurídica).[11] A primeira opção indicaria que tribunais operam no modo overruling de maneira atípica, na condição de legisladores, fazendo escolhas decisórias a partir de raciocínios pragmáticos e finalísticos. Como é evidente, ter-se-ia nessa hipótese o incremento da discricionariedade por uma superação reduzida a espécie de picareta normativizada, hábil para abrir fendas enormes na ordem jurídica através das quais elementos exógenos ganhariam passagem incontinente para um mundo que não é seu e no qual não são bem-vindos.[12] Resultado: recrudescimento de decisionismos e arbitrariedades judiciais a engordar o fenômeno da canibalização do Direito.[13]

Sem dúvida, uma tal solução encontra entrave intransponível na Constituição. É verdade que o Judiciário, vez por outra, funciona atipicamente praticando atos próprios dos Poderes Executivo e Legislativo, mas o faz somente quando autorizado pelo constituinte. E como não há permissivo constitucional validando tribunais a metamorfosearem-se de legisladores no exercício do overruling, é dever deles atuar nos limites da racionalidade legal, sob pena de patente atentado contra a separação de poderes. Trocando em miúdos: criando ou superando provimentos obrigatórioso órgão judicial desempenha seu mister manietado à responsabilidade política que distingue sua função, atento à circunstância de que deve reverência à autoridade do Direito, empregando argumentos de política no máximo como reforço aos argumentos de princípio.[14]

Evoluir é aprimorar àquilo que tem se mostrado apropriado no âmbito do sistema normativo e recusar a subsistência do que é ruim. Partes podres são decepadas e energia é dedicada à implementação de estratégias orientadas a inverter aquele estado de coisas cujo relevo está sobretudo na nocividade de suas consequências. Mas todo cuidado é pouco para que os objetivos pretendidos, e o próprio alicerce que a tudo sustenta, não escapem da lembrança, pois do contrário agiremos como a mãe que deixa a torneira aberta com o bebê dentro da banheira para ir cuidar do jantar. Uma negligência tamanha pode custar muito caro…


[1] Dedico estas reflexões a Eduardo José da Fonseca Costa, um amigo-irmão com o qual a vida me presenteou nessas andanças dedicadas ao estudo e à disseminação do direito processual civil. Agradeço aos processualistas Diego Crevelin e Georges Abboud pela colaboração na melhoria do artigo.

[2] A expressão “precedentes” caiu no gosto da doutrina, mas não se apresenta tecnicamente adequada para definir o rol do art. 927 do CPC/15 – basta ver que ali tem-se também a figura das súmulas. Nesse sentido, os comentários de Lenio Streck e Georges Abboud ao art. 927 do CPC/2015: STRECK, Lenio; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da; FREIRE, Alexandre. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.

[3] Como bem percebeu Diego Crevelin, a repercussão normativa é indispensável para que provimentos obrigatórios sejam alvo de superação. Em conversa pelo aplicativo Telegram, pontuou: “O fato de os julgadores mudarem de opinião sobre a interpretação de determinado instituto não pode, por si só, autorizar a superação; e, no extremo, tomar as mudanças sociais como dado suficiente para a superação pode dar ensejo à derrocada do direito pela opinião pública(da), não faltando Ministros dizendo ser necessário ouvir a voz das ruas para julgar … O perigo é descambar para uma (sempre falaciosa) jurisprudência dos valores, além do risco de aniquilação do contramajoritarismo, ou seja, dos próprios direitos fundamentais.”

[4] ROSAS, Roberto; ARAGÃO, Paulo Cezar. Comentários ao Código de Processo Civil. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, v. 5, p. 69. Apud SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2006. p. 305.

[5] É digno de lembrança o raciocínio de Hermes Zaneti Jr.: “(…) a redução da discricionariedade dos juízes e tribunais aumenta a independência e a autonomia destes em relação aos demais poderes, pois a diminuição da subjetividade decisória evita a exposição de julgadores a pressões políticas e sociais de ocasião, já que estarão vinculados unicamente à lei e aos precedentes. Em verdade, tornam-se mais independentes, mais livres dos interesses políticos e privados contingentes, seja em razão de poderes extremos (Poder Executivo e mercado), seja em razão de poderes internos (visto que a cúpula do Poder Judiciário também é vinculada aos seus próprios precedentes).” (ZANETI JR., Hermes. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense. Organizadores: Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. Versão eletrônica).

[6] FONSECA COSTA, Eduardo José da. Código de Processo Civil Comentado. Coordenação: Helder Maroni Câmara. São Paulo: Almedina, 2016. p. 1120.

[7] Por óbvio, não se está aqui a defender que provimentos obrigatórios promovem segurança jurídica e igualdade por prescindirem da dimensão hermenêutica. Provimentos são textos, por isso apenas pontos de partida para a construção da norma. Não se aplicam por mera subsunção. Sobre isso: 1) STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes – afinal, do que estamos falando. Precedentes. Coordenadores: Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Jr. e Lucas Buril. Salvador: Juspodivim, 2015.p. 175-182 e 2) LUNELLI, Guilherme. Direito sumular e fundamentação decisória no CPC/2015. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

[8] Seguimos o entendimento de Eduardo José da Fonseca Costa no sentido de que o art. 927 do CPC/15 faz referência a “precedentes” obrigatórios de distintas naturezas. Dois deles são fontes primárias de direito (CPC/15, art. 927, I e II) porque a sua qualidade vinculativa apresenta origem constitucional, enquanto os demais traduzem-se em fontes de segundo grau (CPC/15, art. 927, III, IV e V), pois a força obrigatória que os caracteriza advém do CPC/15 – uma lei ordinária federal, portanto. As primeiras vinculam a todos indistintamente, Judiciário, Administração Pública e cidadãos; as derradeiras detêm potencial vinculativo capaz de obrigar apenas e tão-somente juízes e tribunais. (Op. cit., p. 1.126). Essa distinção, para além de justificar a constitucionalidade do modelo brasileiro de provimentos obrigatórios, também permite responder quando e como o julgador pode deixar de aplicar um pronunciamento judicial obrigatório. Indo direto ao ponto: i) independentemente da natureza do provimento obrigatório, o julgador não está obrigado a utilizá-lo caso se apresente contrário à Constituição (controle difuso de constitucionalidade); ii) em se tratando de provimento obrigatório de segundo nível (CPC/15, art. 927, III, IV e V), o julgador não está obrigado a aplicá-lo caso se apresente contrário à legalidade – aqui lei e provimento obrigatório não se equiparam, sendo a primeira superior ao segundo; iii) havendo confronto entre lei e provimento obrigatório de primeiro nível, a antinomia será solucionada de acordo com os critérios hierárquico (lex superior derogat legi inferior), cronológico (lex posterior derogat legi priori) e de especialidade (lex specialis derogat legi generali).  Importante: não há overruling nas circunstâncias acima indicadas – afinal, mesmo não sendo aplicado, o provimento continuará vivo, integrado ao sistema normativo, com potencialidade de obrigar órgãos judiciais que não enxergam nele ilegalidade e/ou inconstitucionalidade.

[9] Nesse rumo, Ravi Peixoto: PEIXOTO, Ravi. Superação do precedentes e segurança jurídica. 2a. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. Em reforço, defendemos que a superação de um pronunciamento obrigatório, afora a via legislativa, pode se dar apenas e tão-somente pela atuação do órgão judicial que o ensejou. Significa isso que não há overruling quando o órgão ad quem altera decisão judicial (baseada em provimento vinculativo) porque provocado por recurso (reversal). Conferir: SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente Judicial à Súmula Vinculante. Curitiba: Juruá, 2011.

[10] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 3a. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2016. p. xv.

[11] Sobre o paralelo argumentos de política e argumentos de princípio: DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[12] Para aprofundamento no ponto: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014.

[13] Na companhia segura de Lenio Streck, já denunciamos o fenômeno. Quando decisões judiciais são produzidas em atropelo à normatividade, apoiadas em argumentos pragmáticos direcionados a construção de algo novo à revelia do devido processo legislativo, o Direito simplesmente se canibaliza e passa a nutrir-se à custa da sua própria subsistência. Legalidade, segurança jurídica, devido processo legal e outros fundamentos do Estado Democrático de Direito são consumidos por uma justiça de cunho fortemente decisionista e consequencialista. Conferir: STRECK, Lenio Luiz; DELFINO, Lúcio. Novo CPC e decisão por equidade: a canibalização do Direito. Revista Conjur. Acessado: 16/08/2016. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-29/cpc-decisao-equidade-canabalizacao-direito>.

[14] Nem o Legislativo, criando ou superando leis (ou provimentos vinculativos), tem o respaldo de uma discricionariedade plena. Ali, argumentos de política, conquanto mais habituais, são manejados para justificar metas coletivas eleitas constitucionalmente. Ou seja, no limite, a atuação dos parlamentares dobra-se à Constituição Federal – afinal, o paradigma não é o Estado Legislativo de Direito e sim o Estado Constitucional de Direito.

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    é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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